sábado, 2 de maio de 2009

SOBRE A REMOÇÃO DAS FAVELAS

Maria Alice Rezende de Carvalho1
DEU NO BOLETIM CEDES/IUPERJ
MARÇO/ABRIL

Anos atrás desenvolvi a noção de cidade escassa para dar conta de contextos urbanos com graves limitações à experiência cidadã. Nessa chave, a cidade seria “escassa” sempre que não comportasse ética e politicamente o conjunto de seus habitantes, isto é, sempre que não garantisse a todos e a cada um a possibilidade de viver em liberdade e de agir com autonomia.

A principal implicação dessa idéia é a de que as políticas públicas voltadas a segmentos populares urbanos não são importantes apenas porque “compensam” carências e reparam injustiças históricas. É claro que objetivos compensatórios são relevantes e mesmo imperiosos, em se tratando de sociedades tão profundamente desiguais como a brasileira. Mas, informado pela noção de cidade escassa, o aspecto mais importante das políticas sociais urbanas passa a ser o de que tais políticas tendem a liberar a população pobre das redes hierárquicas, informais ou ilegais, de mando e obediência. Habitação, trabalho, educação, saúde e segurança são, pois, bens de cidadania na medida em que impedem o controle e a dominação pessoal dos mais fracos pelos mais fortes. Portanto, cidade, nessa acepção, não é propriamente o ambiente sociológico com que nos habituamos desde o século XIX, mas um ethos político, isto é, um modo de vida, um hábito, político.

Falar em cidade como um hábito de polis não significa desconsiderar o caminho percorrido pelo Ocidente moderno e estabelecer parâmetros irrealistas de avaliação das nossas cidades. Não significa, em bom português, uma perspectiva nostálgica das cidades antigas ou dos estados livres do republicanismo renascentista, com sua cidadania ativa, na falta do que, toda cidade parecerá escassa. Afinal, as cidades modernas e seus habitantes possuem outra “natureza”, moldada por pressupostos que conformaram a trajetória ocidental nos últimos 2 ou 3 séculos. Mas reconhecer essa configuração eminentemente sociológica das cidades não significa fechar os olhos para dinâmicas de interação que não se encaixam finamente nessa moldura.

O Rio de Janeiro é particularmente interessante desse ponto de vista, porque a sua trajetória moderna – no que se refere às camadas populares – tem sido uma longa e inconclusa negociação, até agora, quanto à forma, extensão e traduções desse ethos da cidade. Dois exemplos serão suficientes para caracterizar a tensão que se estabelece no Rio entre a modernidade urbana e práticas sociais pouco redutíveis a ela.

Em primeiro lugar, a existência de corpos da pobreza que se impõem desnudos, indóceis e mesmo hegemônicos em algumas formas de interação social, como a dança. Não é preciso evocar Foucault para lembrarmos que a pobreza dos aglomerados urbano-industriais, desde o século XIX, usa uniforme, mantém seus corpos sob dura disciplina e, onde a fábrica não cumpriu bem ou na extensão desejada esse papel, fizeram-no as paradas militares – as nazi-fascistas ainda hoje impressionantes pelo grau de comprometimento dos corpos com o regime.

No Rio, a revolução dos corpos é permanente: atuou na Revolta da Vacina, talvez a mais evidente insurgência contra o domínio moderno do corpo e se mantém presente nas praias, sobre as quais a pobreza urbana tem conquistado direito de posse.

O tema mereceria incursão mais larga, mas serve aqui ao propósito de apontar uma das formas mais efetivas de negociação entre a disciplina que constitui a modernidade e a experiência de um modo de vida, de um ethos político da cidade, que envolve luta, mobilização de agências intelectuais e políticas, instituições de todo tipo, inclusive a Universidade. Norbert Elias, ao escrever sobre o processo pelo qual o Ocidente produziu um padrão de auto-reconhecimento, chamou a atenção para as práticas de imitação que levaram pobres europeus de muitas gerações a se espelharem em figurinos aristocráticos ou socialmente mais elevados que o seu.

Na nossa civilização urbana, a marca cultural dos pobres é infinitamente mais forte e exerce força centrípeta em relação aos demais segmentos sociais. Há exemplos disso no vocabulário das ruas, na moda, na música e em muitas outras dimensões da vida social. Somente isso, esse singelo registro ético-político, deveria bastar para que o enunciado sociológico da “exclusão”, que permeia nove entre dez diagnósticos sobre o mundo popular carioca, moderasse as ênfases a que se habituou.

O segundo exemplo são as favelas de assentamento antigo, com mais de cinco décadas de história, e que, se hoje crescem com velocidade inédita, fruto da especulação imobiliária que chega àquelas áreas, nem por isso deixam de representar a permanência e duração de certo ethos político carioca. Quero dizer que as formas de que se revestem estão sendo alteradas, mas as favelas não são exatamente, ou exclusivamente, uma forma, um item do vocabulário urbanístico.

Favelas são configurações sociais complexas, multiplamente determinadas, que condenam ao fracasso tentativas de abordagem muito rápidas como a ensaiada aqui. Mas a relevância do presente registro se prende ao fato de que, contrariando todas as evidências fenomenológicas e todos os embates intelectuais e políticos que já se desenvolveram sobre o tema, está claro que as favelas não foram ainda assimiladas como um modo de vida, um hábito de polis. Prova disso é o fato de que a mais nova polêmica instaurada por agências da municipalidade consiste no reaquecimento da idéia de remoção, como se tal idéia tivesse se tornado tabu e fosse necessário demovê-lo para bem e paz da cidade.

Cuidados, nesse passo, são necessários: não defendo, evidentemente, o assentamento de populações em áreas de risco, não sou compassiva em relação ao crescimento desordenado e ecologicamente incorreto das favelas tradicionais, não considero admissível a permanência de bandidos e chefes do terror, de qualquer procedência, naquelas comunidades e não descarto, é claro, políticas públicas devotadas à melhoria das condições de vida dos residentes em favela, inclusive os planos integrados de construção de moradias para populações de baixa renda. A todas essas dimensões sociológicas contidas na expressão “favela” estou atenta. Mas gostaria de acrescentar a elas outro aspecto, referido à tensão constitutiva que as favelas introduzem no processo de modernização da cidade do Rio de Janeiro, dando lastro a ele.

Páginas memoráveis da sociologia urbana norte-americana e da filosofia social européia foram escritas em torno da figura do estrangeiro, do “outro”, que tensiona a cidade disciplinar, funcionalmente organizada. Ora, é dessa tensão que a cidade do Rio de Janeiro é constituída, uma tensão que permite desconfiar da certeza com que ela se organiza e introduzir elementos de crítica à ordem que apregoa.

Com a diferença de que o estrangeiro, nesse caso, está permanentemente entre nós e talvez sejamos nós próprios, já que a força e a energia constituinte do modo de vida carioca vêm das cidadelas que aí estão.

1 Professora do Departamento de Sociologia da PUC-Rio, membro da coordenação do Centro de Estudos Direito e Sociedade (CEDES/IUPERJ) e presidente da Associação Nacional de Pós Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), biênio 2009-2010.

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