domingo, 17 de maio de 2009

Transparência e tapeação

Alberto Dines
DEU NO JORNAL DO COMMERCIO(PE)

A vida política tem sido a grande fomentadora do nosso enriquecimento vocabular. A despeito da ausência de grandes tribunos e da sucessão de vexames e escândalos, fabricamos e disponibilizamos na linguagem corrente um número cada vez maior de arcaísmos e neologismos.

Para a vergonha dos moralistas e euforia dos linguistas.

O verbo "lixar" (polir, desbastar) que segundo os etimologistas foi incorporado ao idioma português no século 15, ganhou no Brasil conotação menos restrita. Lixar-se, significa não se incomodar, não ligar, mas na boca de um deputado membro da Comissão de Ética da Câmara, lixar-se e, sobretudo, lixar-se para a opinião pública converteu-se em grave infração, atentado ao sistema representativo. O jornalista Jânio de Freitas, da Folha de S.Paulo, em boa hora resgatou do baú das velharias idiomáticas um precioso verbo e o seu respectivo substantivo, "tapear" e "tapeação", muito apropriados a estes tempos de factóides, mistificações publicitárias e promessas enganosas. Fazem parte do rico manancial de regionalismos brasileiros, significam contornar, mas também blefar, embromar.

Os portugueses têm o seu equivalente em aldrabice e ao tapeador designam de aldrabão que soa como ofensa, mas também significa trapalhão. Transparência é a palavra-chave. Com ela não se brinca, não se presta a relativizações. Conceito indiscutível: coisas, atos e pessoas ou são transparentes ou opacas. Quando uma entidade ou autoridade compromete-se com a transparência não há como tergiversar. Quando a ministra Dilma Rousseff, em 20 de abril, anunciou num seminário organizado pela Unesco em Brasília que o governo apresentaria dentro de um mês os instrumentos legais que garantiriam o acesso universal à informação todos exultaram e não apenas os jornalistas presentes ao evento. A partir da sua promulgação qualquer cidadão poderia obter dos três poderes, sem constrangimentos, os dados que desejasse, sobretudo no tocante a gastos e, de posse deles, questionar a sua aplicação. Passo decisivo em matéria de transparência deverá reverter a histórica tradição da malversação do erário que tantas crises e tanto palavreado já produziu

A ministra cumpriu o prometido: na última quarta-feira, 13 de maio, em evento com a merecida pompa e circunstância, foi anunciado um pacote do qual fazem parte a prometida Lei de Acesso à Informação e também a criação do portal Memórias Reveladas com o edital destinado a recolher a documentação referente à ditadura militar.

O presidente Lula mais de uma vez expressou sua ojeriza aos pacotes, este não escapa ao caráter difuso, um tanto deletério, dos conjuntos de atos oficiais, muitas vezes contraditórios. Este não foge à regra e os problemas que suscita começam a partir da própria concepção da solenidade em que foram anunciados. Colocar um inovador estatuto cívico, prometido há mais de quatro anos, junto com um ato simbólico relativo aos anos de chumbo e convidar para a ocasião as duas mais importantes figuras do cenário político-eleitoral, vítimas da repressão – a ministra Dilma Rousseff e o governador José Serra – foi uma forma criativa de desviar as atenções e minimizar os impactos de uma Lei de Acesso à Informação insuficientemente maturada.

Tapeação ou embromação, não importa o termo, a verdade é que atraída pelo valor mítico de tudo o que diz respeito à repressão política do período 1964-1985, a imprensa foi na onda e fixou-se na subjetividade sugerida pela presença tão próxima dos possíveis candidatos à sucessão do presidente Lula.

A criação do portal Memórias Reveladas é extremamente importante para impedir que o período 1964-1985 seja esquecido ou desvirtuado. Mas ao secundarizar a primeira medida concreta e efetiva na direção de gestão pública transparente o governo expõe uma falta de convicção, alguma inapetência e muitas reservas.

O governo, evidentemente, não está se lixando, mas a sua primeira incursão na era da transparência foi frustrante.

» Alberto Dines é jornalista

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