quarta-feira, 13 de maio de 2009

Um discurso abolicionista no Recife

Joaquim Nabuco
Fonte: Gramsci e o Brasil


Desde a observação de Joaquim Nabuco segundo a qual a Abolição precisava completar-se com a quebra do “monopólio da terra”, muito já se chamou a atenção para o fato de nossa modernização ter avançado, nos seus momentos mais importantes, sem se fazer acompanhar da democratização da vida política nacional.

O pensamento brasileiro se ocupou desse descompasso. Gilberto Freyre e Caio Prado Jr. radicaram suas teorias revolucionárias no 1888 inconcluso. Pensando nele, o sociólogo pernambucano propôs uma “política social” rurbana que viesse reequilibrar o contraste cidade–campo, acentuado pelo “pan-industrialismo” contemporâneo. Também tendo como referência a Abolição, Caio Prado, desde suas primeiras obras, concebeu a revolução como uma reestruturação simultânea da economia (debilmente produtiva) e do nosso mundo político, carente de partidos e opinião pública.

Esse último tipo de reformismo amadureceu na época do desenvolvimentismo e do constitucionalismo democrático do segundo pós-guerra. Recebeu, nos anos 1950, contribuição decisiva do Iseb. Recorde-se ainda que intelectuais comunistas dessa época retomaram aquela tematização a partir do nexo leniniano revolução–democracia política.

Essa tradição continuou presente nas controvérsias da esquerda brasileira na segunda metade dos anos 1970, quando novos autores de raiz pecebista tornaram aquele desencontro uma questão que redefinia a revolução brasileira como processo de progressiva democratização política da vida nacional. Com o decorrer dos anos, a democracia política passou a ser entendida — em distintos registros intelectuais — como principal meio para resolver conflitos e reformar a sociedade.

Assim, é de muita atualidade, na celebração de 1888, recordar os grandes ensaístas. Os clássicos vêm nos mostrar um estilo de pensar os problemas nacionais que ainda não esgotou sua energia pedagógica. Isto vale, particularmente, para o mais antigo deles, Joaquim Nabuco, de quem dizia em 1885 o Dr. Annibal Falcão, prefaciador da obra da qual foram extraídas as passagens aqui republicadas: “Era elle, desde annos, o chefe real do abolicionismo, quer simplesmente propagandista, quer militante do partido de reforma social”.

Daí a importância da republicação de trechos deste discurso de Joaquim Nabuco, de resto muito pouco conhecido, proferido num “meeting popular”, na Praça de S. José de Ribamar, Recife, em 5 de novembro de 1884. (
Raimundo Santos)

Eleitores de S. Jose

[...] Candidato liberal, sustentado por todas as forças do partido liberal, posso ufanar-me de ter igualmente do meu lado todos os elementos progressistas da opinião, qualquer que seja o seu nome. Se não digo que sou abolicionista antes de ser liberal, é porque penso que o liberal deve começar por ser abolicionista, e não comprehendo uma só hypothese em que, favorecendo o interesse do abolicionismo, eu prejudicasse os interesses do partido liberal. Mas, candidato, como sou, desse partido, represento acima de tudo uma idea, a saber: que a escravidão, palavra que os brazileiros não deviam mais pronunciar porque queima como ferro em braza a consciência humana, deve ser banida para sempre das nossas leis.

É triste, senhores, que até hoje, quando apenas cinco annos nos separam do centenário glorioso dos direitos do homem, nesta América que parecia dever ser o refugio de todos os perseguidos, o asylo de todas as consciências, a praça inexpugnável de todos os direitos, a escravidão ainda manche a face do continente, e um grande paiz, como o Brazil, seja aos olhos do mundo nada mais, nada menos, do que um mercado de escravos. (Grandes Applausos)

Senhores, a propriedade não tem somente direitos, tem tambem deveres, e o estado da pobreza entre nós, a indifferença com que todos olham para a condição do povo, não faz honra á propriedade, como não faz honra aos poderes do Estado. Eu, pois, se for eleito, não separarei mais as duas questões — a da emancipação dos escravos e a da democratização do solo. (Longos applausos)

Uma é o complemento da outra. Acabar com a escravidão, não nos basta; é preciso destruir a obra da escravidão. Comprehende-se que em paizes velhos, de população excessiva, a miséria acompanhe a civilisação como a sua sombra, mas em paizes novos, onde a terra não está senão nominalmente occupada, não é justo que um systema de leis concebidas pelo monopolio da escravidão produza a miséria no seio da abundancia, a paralyzação das fôrças deante de um mundo novo que só reclama trabalho.

Sei que fallando assim serei accusado de ser um nivelador. Mas não tenho medo de qualificativos. Sim, eu quizera nivelar a sociedade, mas para cima, fazendo-a chegar ao nível do art. 179 da Constituição que nos declara todos iguaes deante a lei. (Applausos)

Vós não calculaes quanto perde o nosso paiz por haver um abysmo entre senhores e escravos por não existir o nivelamento social.

Sei que nos chamam anarchistas, demolidores, petroleiros, não sei que mais, como chamam aos homens do trabalho e do salário os que nada têm que perder. Todos aquelles que de qualquer modo adquiriram fortuna entre nós, bem ou mal ganha, entendem que são elles, elles os que têm que perder, quem deve governar e dirigir este paiz!

Não preciso dizer-vos quanto essa pretenção tem de absurda. Elles são uma insignificante minoria, e vós, do outro lado, sois a nação inteira. Elles representam a riqueza accumulada, vós representais o trabalho, e as sociedades não vivem pela riqueza accumulada, vivem pelo trabalho. (Applausos)

Elles têm, por certo, interesse na ordem publica, mas vós tanto como elles, porque para elles mesmo grandes abalos sociaes resultariam na privação de alguns prazeres da vida, de alguma satisfação de vaidade, de algum luxo dispendioso tão prejudicial á saúde do corpo como á do caracter — e vós, perdendo o trabalho, vos achais deante da divida, que é uma escravidão também, deante da necessidade, em cuja noite sombria murmuram os demônios das tentações mercenárias, os filhos sem pão, a família sem roupa, o mandado de despejo nas mãos do official de justiça, o raio da penhora trazendo sobre a casa todos os horrores da miséria! Quem tem á vista desse quadro mais interesse em que a marcha da sociedade seja tão regular e continua como a de um relógio ou a das estações — o capitalista ou o operário? (Applausos)

Quanto a mim, tenho tanto medo de abalar a propriedade destruindo a escravidão quanto teria de destruir o commercio acabando com qualquer forma de pirataria. Por outro lado, não tenho receio de destruir a propriedade fazendo com que ella não seja um monopólio e generalizando-a, porque onde há grande numero de pequenos proprietários a propriedade está muito mais firme e solidamente fundada do que onde por leis injustas ella é o privilegio de muitos poucos. [...]

Extraído de: Campanha abolicionista no Recife (Eleições de 1884). Discursos de Joaquim Nabuco. (Propriedade da Comissão Central Emancipadora). Rio de Janeiro: Typ. de O. Leuzinger e Filhos, 1885.

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