sábado, 30 de maio de 2009

Uma celebração recatada ao prazer e à dor de existir

Francisco Quinteiro Pires
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / Caderno 2

Ana Maria Machado estreia nos versos com Sinais do Mar, obra inspirada na observação dos movimentos marítimos

Ana Maria Machado está celebrando seu amor à vida, no que ela tem de prazer e dor, com um gesto inédito. Pela primeira vez, a consagrada autora de obras infanto-juvenis publica uma antologia de poemas - Sinais do Mar (Cosac Naify, 56 págs., R$ 32), que chega às livrarias neste fim de semana. "A poesia permite que eu faça essa celebração de modo recatado, escondido", confessa. A sua poética de temática única e ritmos diversos não é para crianças somente. É para aqueles que veem o mar como o maior dos mestres dedicados a ensinar lições sobre a condução da existência. "O mar nos ensina a noção do tempo cíclico - é só lembrar que a onda vai e vem, a maré enche e vaza", diz. "Essa é uma lição que nós, os ocidentais, não temos arraigada."

A situação piorou, segundo Ana Maria, com a urbanização, que trouxe a luz elétrica, alterando a noção de tempo dada pela natureza. Mesmo modificada pelo avanço tecnológico, essa percepção está intacta nos 19 poemas de Sinais do Mar. A explicação talvez esteja na história familiar da autora, cujos genes podem ser classificados de marítimos: a sua bisavó portuguesa era conhecida na aldeia como Rosa, a Marinheira, e os seus avós capixabas tinham o oceano na soleira do quintal. As caminhadas diárias à beira-mar apenas reforçaram essa tendência natural a relacionar-se com as águas salgadas.

Interessa à escritora carioca, de 67 anos, lembrar que, desde pequena, quando ia à praia acompanhada pelos pais, as ondas como a vida exigiam coragem e respeito. "Se você tenta fugir da onda, ela é mais rápida que você", diz. "A única coisa a fazer é enfrentá-la, mergulhando por baixo, e se deixar sacudir." E uma nunca vem sozinha. É bom pegar ar e mergulhar de novo, ela explica. "Quis mostrar isso num poema, mas tive de jogá-lo fora por não ter ficado satisfeita com a sua forma."

Ela compara o ato de escrever ao movimento das ondas. "Primeiro você rema até o fundo, passando a arrebentação, onde tudo está acumulado, fervendo", diz. "Daí você fica à espera da onda certa para aproveitar a forte energia que vem da profundeza." Depois, vem o processo racional da escrita, quando há a consciência de que não é possível conter o impulso arrebatador da inspiração. "A poesia é uma força da natureza que não domamos, mas com a qual podemos navegar."

A navegação literária de Ana Maria Machado durou mais de 20 anos, tempo em que trabalhou nos poemas. "E era capaz de ficar mais 50 anos a reescrevê-los, porque jamais me dou por satisfeita." Para se explicar, a escritora recorre ao norte-americano Henry James que dizia - "Quem não escreve acha que o maior problema de um autor é por onde começar, mas o problema é saber onde colocar o ponto final." É muito difícil lidar com a criação, esse universo em dilatação que tem de ser enquadrado em letras. "Meus escritos originais vão, aos poucos, se contraindo para ver se seguro essa expansão", diz. "Quando escrevo poesia, sou mais da família do Graciliano Ramos do que do Guimarães Rosa, porque estou preocupada com a economia de meios."

Ana Maria Machado percebe três vertentes em Sinais do Mar, classificadas de "concretas, narrativas e sensoriais". A primeira se refere aos poemas que citam animais como a gaivota (Revoada), o siri (Siri), o caramujo (Bernardo Eremita), a arraia (Arraia) e a água-viva (Dúvida). A segunda se estrutura na evocação sensorial de sons, visões e cheiros ligados ao mar: é o caso de Aquarela, Terral, Salsugem, Maresia, Gala Solar, Facho, Maré Baixa e Farol. A terceira é composta de poemas narrativos, Naus e Nós e Primeiro Mar, os dois trabalhos mais longos, que finalizam a antologia.

Inspirado na figura do marroned, homem castigado com o abandono numa ilha deserta, Naus e Nós é um poema sobre o homem abandonado à própria sorte. Primeiro Mar é uma homenagem à literatura, à imaginação que o domínio das palavras proporciona. "O que se leu mostrava o infinito/ Só não se imaginava tão bonito/ Tão pleno de surpresas e imprevistos." O ritmo é variado. "Alguns poemas são francamente musicais, com exploração de aliterações, outros são mais focados no jogo com as palavras e na disposição delas na página." A forma varia da métrica tradicional à estrutura do cancioneiro popular.

Pintora, Ana Maria Machado pensou em fazer as ilustrações da sua obra. Mas desistiu. A editora apresentou um livro gráfico, inspirado em poemas e canções de Fernando Pessoa (Ode Marítima), Martin Codax (Ondas do Mar de Vigo) e Dorival Caymmi (O Mar). As letras mimetizam movimentos marítimos; o papel evoca a textura da areia. Em Sinais do Mar, a imaginação navega livremente. Ela reafirma a validade de uma crença de Ana Maria Machado - apesar das instituições que estabelecem limites, "todos os artistas continuam imaginando". E provocando o desejo de liberdade em todo indivíduo.

"RUBEM BRAGA É MESTRE ABSOLUTO", DIZ AUTORA

BELEZA LETRADA: "No Brasil temos dois mestres absolutos. Machado de Assis e Rubem Braga", diz Ana Maria Machado, ganhadora do Hans Christian Andersen (2000), o mais relevante prêmio de literatura infantil, e membro da Academia Brasileira de Letras. "Você até pode dizer que o Guimarães Rosa era um escritor maior, mas não dá para aprender a escrever com ele", diz. Aos 14 anos, ela conheceu o velho Braga. "Quando tive vontade de escrever igual a alguém, foi com o Rubem, queria participar da beleza que ele criava com as palavras." E falou de cor parágrafos inteiros das crônicas de Braga. "Era um fascínio total pela maneira de escrever de um homem que mal sabia falar e que expressava coisas profundas com simplicidade." Quando conversa sobre Sinais do Mar, Ana Maria se lembra de Mar, publicado em 200 Crônicas Escolhidas (Record). Rubem Braga relata a primeira vez em que vê o mar. E ele conclui: "Este homem esqueceu muita coisa mas há muita coisa que ele aprendeu contigo e que não esqueceu, que ficou, obscura e forte, dentro dele, no seu peito.

"Naus e Nós

Naus

saem de Sagres
e deixam infantes,
partem de portos
e deixam mortos,
sangram amores
e rumam ao longe.

Singram
águas salgadas
algas sargaças
a pouco nós.Lonas e telas
pranchas e cascos
cordas e cabos
rangem e puxam,
fazem e desfazem

nós.

Velas sem vento
almas sem calma
encalham em sargaços
nas águas salgadas.

Algumas naufragam
soçobram em escolhos
só sobram
sem escolha,
sem escolta,
poucas naus
- e nós.

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