quarta-feira, 24 de junho de 2009

Coluna em pedaços: o problema da pessoa comum no Brasil

Roberto DaMatta
DEU EM O GLOBO


"Sarney tem uma história suficiente para não ser tratado como um pessoa comum".
Presidente Lula (2009)

"A primeira coisa que um político de lá (de Bruzundanga) pensa, quando se guinda às altas posições, é supor que é de carne e sangue diferente do resto da população".
Lima Barreto (1923)

Incrível semana. O Supremo Tribunal Federal acaba com as implicações legais do diploma de jornalista e desfere um golpe de morte no velho corporativismo hierárquico dos diplomas oficiais já denunciado por Lima Barreto como inventores de "castas doutorais". Eis uma decisão modernizadora, do lado da igualdade e da liberdade que vai promover uma maior responsabilização do mercado no sentido de separar diploma de capacidade profissional, coisa que - nesta mesma semana - foi confundida pelos presidentes Sarney e Lula que defenderam o velho componente hierárquico-aristocrático do Brasil.

De um lado, uma vértebra aberta; do outro, o ideal da imobilidade que ronda o poder à brasileira.
No STF, a medida que reconhece a igualdade e a liberdade como valores centrais da atividade jornalística, pois o papel do jornal não é embrulhar peixe, mas transformar o chamado "real" numa criatura domesticável, compreensível e, tanto quanto possível, bela, verdadeira e suportável. Uma coisa - diz o STF - é o curso de jornalismo; uma outra é a exclusão de quem não tem diploma de exercer o jornalismo.

Na nossa mania tordesilheana de regulamentar o mundo, nosso horror às fronteiras e a nossa obsessão de resolver a realidade com a lei, inventamos diplomas com efeitos legais que dão direitos exclusivos, garantem aumento de salário e livram a pessoa da prisão. Neste sentido, o "canudo" tira o cidadão de condição de pessoa comum, dando-lhe sangue azul ou, como diz Sarney, uma "biografia".

O discurso de Sarney estarrece pela dissociação entre o orador e a instituição que preside. A crise é do Senado, não é dele, Como, se ele é senador e presidente? A esquizofrenia impede responsabilização e justifica as hipocrisias. Não dá mais para pensar que uma coisa é a lei e outra é a policia ou quem cometeu o crime. Ou as regras produzem efeitos ou elas não têm valor. É o zelo pelas normas que garante a legitimidade institucional. Se um jogador de futebol não honra e internaliza as regras do jogo e diz não é dele, mas do futebol, adeus esporte. Como é possível um motorista que nada tem a ver com o trânsito? Ou um prefeito que nada tem a ver com o ilegal?

A capacidade de dissociar-se das responsabilidades inscritas nos cargos é uma característica dos sistemas de éticas dúplices, como, aliás, digo em "Carnavais, malandros e heróis". Neles, quem é especial não se sujeita às mesmas regras dos comuns. Um Lula-presidente percebeu o problema.
Quando metalúrgico, denunciava mais portentosamente do que os jornais; como presidente e pessoa incomum e com "biografia", acusa a mídia. A perspectiva hierárquica está convencida que ninguém pode se orgulhar de ser uma pessoa comum - esse ponto crucial das democracias liberais e do republicanismo. Eis um belo exemplo de como conceito igualitário de cidadania é reinterpretado hierarquicamente pelo senador e pelo presidente quando observam que, dependendo da "biografia", o sujeito está isento de dar satisfações e de ser cobrado pelo que deve ao país que lhe paga o ordenado e mordomias.

Pela angulo da vertente hierárquica, o sonho é ser um "brâmane" ou nobre - ou ambos! Faz tempo eu sugeri que o papel de renunciante do mundo tem também um lugar importante na política nacional, um universo no qual se entra jurando fazer todos os sacrifícios em nome dos famintos e dos pobres e fica-se imensamente rico justamente por causa disso. Pertencer as "altas esferas" e aninhar-se em alguma "boca" - um emprego sem trabalho - ainda é um projeto.
Emprego público é uma contradição em termos porque os funcionários - com as exceções de sempre - não são do público e o sistema opera ao contrario: é o público que lhes deve boa vontade e respeito. Igualzinho ao discurso de Sarney (e a sua defesa por Lula) que, no fundo, é uma rara e importante peça reveladora de como os políticos profissionais brasileiros (no poder) pensam-se a si mesmos. O sistema é duplo. Há uma ética para o cargo e outra para a pessoa que o ocupa. Os cargos criam aristocracias ou "castas". Mas com uma diferença crucial pois, pela brasilianização do sistema de castas que, na Índia, não contempla o individualismo existente entre nós, quanto mais em cima, menos é preciso cumprir as leis. Na Índia, entretanto, ocorre o exato oposto. Lá, um brâmane justamente por ser mais puro (e não mais poderoso) é obrigado a seguir todas as regras e a dar o exemplo. Aqui, porém, como temos uma hierarquização com igualdade, sem interdependências morais, de modo que só as "castas" mais baixas são obrigados a obedecer as leis. Os "brâmanes", sendo pessoas excepcionais e tendo biografias, estão acima das leis que, um outro pedaço do sistema (que se define - eis o problema - como republicano e igualitário) diz que valem para todos.

É justo este dilema que despedaça a coluna. Pelo menos a minha que, depois de um mês de férias e justo tratamento, só vai voltar em agosto.

Roberto Da Matta é antropólogo.

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