sábado, 20 de junho de 2009

Curso parado no ar

Míriam Leitão
DEU EM O GLOBO


O que acabou foi a reserva de mercado. Não acabou a necessidade de qualificação, de aprendizado, de domínio da técnica, de acumulação do conhecimento para ser jornalista. A profissão não é trivial. O fim da obrigatoriedade do diploma deixou alguns colegas perplexos, confirmou a convicção de outros, mas ficou mal entendida a questão da formação do jornalista.

Eu amava o curso de História. Ele foi interrompido pela prisão. Quando pude voltar à universidade, já trabalhava em jornal há três anos. Fiz comunicação por obrigação, para ter o diploma, e detestei o curso. Aprendia jornalismo nas redações. Achava meus professores distantes da realidade e aquele ritmo da faculdade lento para a dinâmica nervosa da redação. Já Alvaro Gribel, que trabalha aqui na coluna, saiu do seu curso de comunicação com melhor impressão.

Esta semana, nas primeiras horas após a decisão do Supremo, recebi e-mails e telefonemas desconsolados. Uma antiga colega me pergunta o que deve escrever nos cadastros em que se questiona o nível educacional: "Superior inválido?" Jovens jornalistas acham que foram enganados, que poderiam ter feito outros cursos. Estudantes não sabem se continuam. Vestibulandos estão ainda mais confusos.

Calma gente. Nada mudou na verdade, apenas acabou a reserva de mercado que estabelecia barreiras inaceitáveis a pessoas com competência, conhecimento específico, especialização. As empresas insistiam, mas havia constrangimentos legais para ex-jogadores de futebol atuarem como comentaristas esportivos, ou médicos, advogados e economistas que ajudam no jornalismo de precisão.

Nas minhas décadas de redação conheci brilhantes jornalistas que fizeram e que não fizeram o curso; e incompetentes também dos dois grupos. É conhecido o caso de que os dois jornalistas do Watergate não tinham curso. Fora do jornalismo, também há casos eloquentes de pessoas que abandonaram os cursos que faziam e tiveram enorme sucesso: Bill Gates e Steve Jobs, por exemplo. Não se pode concluir daí que estudar é irrelevante porque o talento pessoal resolve tudo. Por isso, acho que essa divisão entre a torcida a favor do diploma e a torcida contra deixa algo parado no ar: como formar jornalistas?

Os ministros do STF expressaram uma visão desatualizada do jornalismo. Ele não é só literatura e arte. A definição romântica fazia mais sentido em outros tempos. Apesar de termos no nosso jargão a expressão "cozinha do jornal", o paralelo com a culinária é impreciso.

Não é também uma daquelas técnicas banais que se aprende num manual de sete lições. Existem vários jornalismos, é difícil definir como ele é exercido atualmente nas várias mídias, nas ferramentas mutantes, nas regras que permanecem, no toque pessoal e intransferível, na rapidez irrecorrível, na tradução do complexo, no talento indispensável.

O medo de que "qualquer um" possa ocupar os postos é mais corporativista do que real. Não se pode improvisar uma redação com a complexidade de um produto que, em jornal impresso, de manhã não tem nada, de noite tem que estar pronto; na televisão, exige que o repórter grave a reportagem enquanto apura, e que editores em ilhas sincronizem imagens e áudios numa corrida contra o relógio; no online, o produto é instantâneo.

A tecnologia criou novas possibilidades para os "não" jornalistas. O citizen journalism e o i report, em que pessoas registram e postam o que só eles viram, enriquecem o jornalismo. A mídia social só ameaça as tiranias - como se vê no Irã - porque testemunha o que os jornalistas não puderam ver.

Os cursos sempre foram imperfeitos e incompletos. Mesmo assim, os estudantes tem lá uma iniciação que será útil quando eles entrarem de fato no cotidiano de uma redação. Os jornais e emissoras de TV e rádio hoje montam verdadeiros cursos para os estagiários, mas partem de uma base que foi dada pela universidade.

O fim da obrigatoriedade do diploma abre o debate interessante sobre a melhor formação do jornalista. No jornalismo econômico, ele tem que entender economia mas não pode virar um protoeconomista, prisioneiro dos preciosismos e jargões que só fazem sentido para o gueto. Economistas, sociólogos, advogados, cientistas precisam capturar a forma de transmitir o conhecimento deles de forma clara. E agora mais do que nunca é necessário o profissional que fique nas fronteiras do conhecimento e editorias, que fale de economia sabendo das mudanças climáticas; de política, entendendo as restrições fiscais, de cultura vendo as nuances sociais.

Acabou a obrigatoriedade do diploma, não acabou a necessidade de formação do jornalista. Os cursos de graduação e pós-graduação continuam a existir nos Estados Unidos mesmo sem haver a obrigatoriedade. Alguns com prestígio mundial, como os da Columbia. Na Alemanha, as emissoras de televisão selecionam profissionais de varias áreas e os treinam em cursos internos.

O importante é que do jornalista será exigido tanto formação, quanto talento; tanto técnica, quanto inovação. Parte disso será obtido em cursos de formação, parte será nas redações. Quem entender que a hora é de estudar menos, ficará para trás.

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