terça-feira, 9 de junho de 2009

Desarmamento perde especialista no voo AF-447

Antônio Rangel Bandeira
Sociólogo do Viva Rio
DEU NO CORREIO BRAZILIENSE

Para os defensores do controle de armas, o desaparecimento de Pablo Dreyfus foi uma perda irreparável. Considerado uma das maiores autoridades mundiais nessa especialidade, esse argentino procurou o Viva Rio há 9 anos, “para ajudar os brasileiros a controlar as armas e deixarem de ser campeões em mortes por arma de fogo”. Nesse período, foi figura essencial em todas as medidas de sucesso tomadas para combater o tráfico ilícito de armas e reduzir o que chamava de “genocídio em tempo de paz”.

Foi o grande inspirador do Estatuto do Desarmamento, consultado pelos parlamentares na sua formulação. Por exemplo, a marcação de munição, para permitir seu rastreamento, transcendeu a lei brasileira e entrou na agenda internacional de política contra o seu tráfico ilícito. A campanha de desarmamento, em que foram entregues 459 mil armas, utilizou o resultado de suas pesquisas, que apontavam os riscos de se ter arma em casa. Em 2000, como membro da delegação enviada pelo Brasil para solicitar ao presidente do Paraguai medidas contra o contrabando de armas, foi decisivo nas negociações; os dados que levantou sobre os desvios de armas levou o governo paraguaio a suspender a importação de armamento brasileiro e a melhor controlar a venda de armas.

Após a nossa derrota no referendo sobre a proibição do comércio de armas, Pablo não se deu por vencido. Fomos desanuviar a cabeça percorrendo as fronteiras dos países vizinhos com o Brasil, onde constatamos uma enorme queda na venda ilegal de armas e munições brasileiras. Queda devida à aplicação da Resolução 17, da Carteira de Comércio Exterior do Banco do Brasil (Cacex), que aumentou para 150% a alíquota de exportação de armamento para esses países, medida ainda hoje ameaçada pelo lobby das armas.

Pablo coordenou a pioneira, e única, pesquisa nacional sobre armas no Brasil. Publicada no livro Brasil: as armas e as vítimas, demonstrou que circulam entre nós mais de 17 milhões de armas, 90% nas mãos da sociedade e 50% delas na ilegalidade, pesquisa elogiada pelo Exército e pela Polícia Federal, por seu rigor científico. Requisitado a dar cursos de controle e rastreamento de armas para a Polícia Federal e para a polícia do Rio de Janeiro, elaborou o Manual de Classificação e Rastreamento de Armas, adotado por várias secretarias de segurança e utilizado em outros países.

À CPI do Tráfico de Armas entregou relação de 36 mil armas brasileiras apreendidas na ilegalidade no Rio de Janeiro. Assim, com a orientação desse especialista, cerca de 15 mil dessas armas puderam ser rastreadas pela Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados (DFPC) do Exército, pela PF e pelas indústrias, concluindo-se que grande parte havia sido desviada via “cidadãos de bem”, lojistas, empresas de segurança privada e das próprias polícias. A revelação levou a polícia do Rio de Janeiro a reformular o controle sobre seu armamento, hoje o mais moderno do país.

Seu último trabalho foi uma pesquisa, solicitada pela Subcomissão de Armas da Câmara, e apoiada pelo Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), sobre o controle de armamento em todos os estados, para orientar o Ministério da Justiça na aplicação de recursos no combate ao desvio de armas. Pablo colaborou no controle de armas também em Moçambique, Argentina, Paraguai, Bolívia, El Salvador e Colômbia.

Há dois meses, estivemos em Angola, assessorando o seu governo. Pablo se angustiava com as tentativas de desmanche do Estatuto do Desarmamento. “Como podem querer mudar o que está dando certo?”, lamentava, referindo-se à redução em 18% no número de mortes por arma de fogo nos últimos cinco anos, devido à proibição do porte de arma e à campanha do desarmamento. Preocupava-se com os vários projetos de lei apresentados pela “bancada da bala” para acabar com essa proibição. Sua última anotação se referia à recente votação na Comissão de Segurança visando derrubar a obrigatoriedade de testes psicológico e de manuseio para os proprietários de rifles calibre 22. Ele escreveu: “O massacre na Finlândia, em que o estudante Pekka-Eric teve um surto psicótico e matou sete colegas com uma arma calibre 22, demonstra a importância dos testes psicológicos”.

Após a viagem, tragicamente interrompida, Pablo viria para Brasília, falar no seminário da Rede Desarma Brasil com a Conferência Nacional de Segurança (Conseg). Nós temos uma enorme dívida de gratidão para com esse argentino alegre, que cantava tango e celebrava a vida, e que contribuiu decisivamente para evitar a morte até agora de 6 mil brasileiros.

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