segunda-feira, 29 de junho de 2009

O discurso do Capiberibe

João Cabral de Melo Neto

Aquele rio
está na memória
como um cão vivo
dentro de uma sala.
Como um cão vivo
dentro de um bolso.
Como um cão vivo
debaixo dos lençois,
debaixo da camisa,
da pele.

Um cão, porque vive,
é agudo.
O que vive
não entorpece.
O que vive fere.
o homem,
porque vive,
choca com o que vive.
Viver
é ir entre o que vive.

O que vive
incomoda de vida
o silêncio, o sono, o corpo
que sonhou cortar-se
roupas de nuvens.
O que vive choca,
tem dentes, arestas, é espesso.
O que vive é espesso
como um cão, um homem,
como aquele rio.

Como todo o real
é espesso.
Aquele rio
é espesso.
Como uma maça
é espessa.
Como um cachorro
é mais espesso do que uma maçã.
Como é mais espesso
o sangue do cachorro
do que o próprio cachorro.
Como é mais espesso
um homem
do que o sangue de um cachorro.
Como é muito mais espesso
o sangue de um homem
do que o sonho de um homem.

João Cabral de Melo Neto, fragmento de O CÃO SEM PLUMAS. Diplomata, como noticia O Globo de ontem, punido pelo regime de 1964. Como diz Moacyr Felix, no seu livro dedicado à obra do permambucano, poeta do "materialismo dialético", alusão esta que, segundo observadores, lembra nos versos de Cabral o Prefácio marxianos à Contribuição Crítica da Economia Política, de 1857.

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