terça-feira, 16 de junho de 2009

Ódio ambiental

Xico Graziano
DEU EMO O ESTADO DE S. PAULO

Época de festas juninas, o caipirismo reverenciado. Mas os agricultores brasileiros voltaram à berlinda. Acabam de receber do ministro Carlos Minc um feio xingamento: o de vigaristas. A polêmica esquentou o frio da estação. Novamente o ambientalismo trombou com o ruralismo.

Segundo o Dicionário Aurélio, vigarista significa velhaco, ladrão que passa o conto do vigário. E o vigário, todos sabem, vale o padre que se faz às vezes de bispo, aquele que se passa por outro, fingindo ser bonzinho. No mau sentido, um trapaceiro.

O embaraço criado pelo ministro do Meio Ambiente brota das divergências quanto ao Código Florestal. Falastrão juramentado, o carioca do colete sugeriu que, nessa discussão, os ruralistas estão querendo enganar outrem. Ele deve ter lá seus motivos. Mas, generalizando, agrediu a roça inteira.

Existem lideranças do campo, é verdade, que não gostam da legislação ambiental, colocando os interesses da produção acima da conservação da natureza. Os tradicionalistas ainda raciocinam como naquela época dos desbravadores, quando as florestas se derrubavam impiedosamente para abrir espaço ao progresso material da sociedade. Tempos de outrora.

Essa lógica do crescimento econômico imperou até meados do século passado. Desde então, crescentemente, surgiram interesses urbanos ligados à preservação ambiental. A nascente tendência influenciou a lei florestal aprovada em 1965. Há 44 anos.

O Código Florestal, conforme ficou conhecido, obrigou as propriedades rurais a manterem uma "reserva legal" de 20% de sua área, onde se impede o corte da vegetação nativa. Somente o uso não predatório pode ocorrer na reserva legal, como, por exemplo, a exploração de mel de abelhas ou de lenha seca. Na Amazônia, tal reserva subia para 50%. Mais ainda: a lei também definiu que as beiradas de córregos e rios, as nascentes d?água, as terras muito inclinadas e os topos de morros se tornassem áreas de preservação permanente. Nessas ninguém poderia bulir.

Arrojada, única no mundo, a legislação florestal brasileira permaneceu - essa é a verdade - ignorada durante décadas. Na realidade, os agricultores continuaram sua senha produtiva, pouco se importando com a proteção ambiental. E a fiscalização do Estado nunca intimidou ninguém pelo descumprimento da legislação florestal.

Até que, em 1995, o presidente Fernando Henrique Cardoso elevou, por medida provisória, a reserva legal na Amazônia de 50% para 80%, aumentando a proteção da floresta tropical. O governo, motivado por Gustavo Krause, então ministro do Meio Ambiente, dava uma rápida resposta à piora do desmatamento da Hileia.

O susto provocado pela ousadia oficial fez todos acordarem. E divergirem. O xis da questão reside no seguinte ponto: quem derrubou a mata virgem antes de valer a nova restrição como fica? Suponha que um cidadão tenha comprado uma terra no Pará e desmatado metade dela, de acordo com a regra anterior. Fica agora irregular?

O raciocínio pode ser também utilizado para os antigos agricultores do País. O Estado de São Paulo começou a ser fortemente aberto na época da expansão cafeeira, no século retrasado. Quando chegou o Código Florestal, boa parte do território já estava desmatada. A grande maioria das fazendas não manteve reservas florestais, ocupando até mesmo as matas ciliares, com culturas ou criações. Desde a época das bandeiras, valorizados na sociedade eram exatamente os desbravadores do sertão.

Hoje, noutro contexto, os produtores rurais estão sendo compelidos, nas palavras dos ferrenhos ambientalistas, a resgatar seu "passivo ambiental". Mas como? Recuperando as áreas que, inadvertidamente, surrupiaram no passado. Se não o fizerem na sua propriedade, que adquiram, em compensação, outra área ainda florestada. Para mantê-la virgem.

Óbvia surge a dificuldade: quem paga a conta desse acerto com o passado?

Até hoje ninguém respondeu a contento a essa pergunta. A fatura da restauração ambiental normalmente se coloca no colo, ou no bolso, do agricultor. Ele que se vire, e rápido, para não ser tachado de criminoso. Coisa impossível.

Como na matemática, porém, todo problema apresenta uma solução. Sim, existe sobre a mesa um acordo viável entre ruralistas e ambientalistas.

O trato poderia ser o seguinte: ninguém derruba mais nenhuma mata, em nenhum lugar, exceto quando necessário e autorizado. Em troca, podem permanecer produzindo nas áreas anteriores, salvo onde existe risco ambiental. Desmatamento zero, produção consolidada. Ganham os dois lados. Perdem apenas os radicais e os reacionários.

Há espaço para uma boa negociação, atualizando a legislação ambiental no rumo da agricultura sustentável. Mas a radicalização do processo político azedou o caldo da discussão. Ministros de Lula batem boca abertamente, cada um atirando para um lado. As entidades ambientalistas retraíram-se, enquanto os produtores, apavorados, prometem dar o troco. Ódio gera insensatez.

Nas festas juninas, passa do ponto quem trata a cultura caipira com desdém, como se os homens do campo fossem inferiores aos da cidade. Terrível preconceito esconde-se maliciosamente no linguajar arrastado, nos chapéus desfiados ou no traje da rasgada calça pula-brejo. Pintado para parecer banguela, o dentinho preto das crianças aflora um mau gosto típico dos incautos.

Há limites para tudo na vida. A infeliz declaração do ministro ultrapassou o bom senso. Serviu apenas para fortalecer um ranço urbano contra o agricultor brasileiro, maculado historicamente pela má fama dos latifundiários. Insuportável.

Caipiras, sim.

Vigaristas, não.

Xico Graziano, agrônomo, é secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo.

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