quinta-feira, 4 de junho de 2009

Um terraço aberto para a poesia

Luiz Sérgio Henriques
DEU EM GRAMSCI E O BRASIL


Francisco Orban. Terraço das estações. Apresentação de Cícero Sandroni. Montes Claros: Orobó Edições, 2008. 45p.

A percepção lírica do mundo é algo que se equilibra no fio de uma navalha, cujo corte é fundo e, não raro, fundo até demais. Fingidor ou veraz, ilusionista ou confessional, o poeta é como que um escafandrista implacável de valas e fossos do seu “mar de dentro”; quando é poeta para valer, arranca destes desvãos algum documento único, singularíssimo, da própria vida interior. E, por um desses milagres da poesia, assim é que ele se universaliza, torna-se um prisma que refrange não só as coisas do mundo, como também as dores e os afetos de muitos outros: supera a solidão do indivíduo e expressa-se, como diria o poeta Carlos, na linguagem em que os homens se comunicam.

Pergunto-me o que pode esperar o leitor dos trinta e cinco densos poemas reunidos por Francisco Orban neste privilegiado terraço de estações imaginárias. Um terraço de onde se descortina, por exemplo, um dezembro arrancado às águas e que “agora é só uma notícia”; mas onde também se aguarda um janeiro, “mês das enseadas”, em cujo ventre o poeta vaticina “que as sementes do sempre / se encontrem / com a poesia”. Não, o leitor não deve esperar amanhãs radiantes, utopias que se concretizam e consolam belas almas contentes de si mesmas. Pelo contrário: neste terraço de lendas e ventos, de mares e naufrágios, não há “nada além da palavra / árida / e incompleta”. Nenhuma comiseração, nenhuma condescendência. Tal como a de outro poeta maior, esta faca é só lâmina.

E, no entanto, à diferença da poética cabralina, há aqui uma nota comovida, pungente, dolorida, que assinala a rememoração dos amores que se encontraram, como que reinaugurando o mundo, ou dos amores que se foram e, afinal, não puderam ser “o escape do nosso degredo”. Mas, como sabemos, de tudo fica um pouco, e devemos estar certos de que:

Para além dos violinos
há um reino onde pernoitam
meninos
exilados das palavras
e dos rios.

Há, pois, nas camadas mais profundas deste terraço, uma infância, “como uma granada calada”; e não só por isso, mas também pela evocação recorrente de um passado que não passa nunca, a memória parece ser o dispositivo poético fundamental acionado por Francisco Orban, com maestria e excelência.

Fino leitor de versos, sabedor do tempo e do ser da poesia, Alfredo Bosi certa vez escreveu que talvez coubesse precisamente à memória um papel central na lírica moderna, a contrabalançar o inevitável “desencantamento do mundo” entranhado na modernidade. É bem possível que aqui seja mesmo assim. Desafiando a prosa dos dias e a trivialidade das palavras que se desgastam como moedas comuns, “a sombra de um poema fica / como saga de navegações”.

Desta saga pretérita de mares e navegantes e destes poemas que, apesar de tudo, se erguem como sombra e vestígio revestidos de grande dignidade artística, dificilmente o leitor sairá ileso. De alguma forma modificará sua experiência interior, e a poesia terá cumprido uma das suas mais altas missões.

Luiz Sérgio Henriques é editor de Gramsci e o Brasil.

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