sábado, 20 de junho de 2009

Vício insanável

Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


Praticamente todos os dias o presidente do Senado, José Sarney, é desmentido pelos fatos. A cada tentativa malsucedida de negar uma denúncia de irregularidade, Sarney conta uma nova história a fim de remodelar a versão da véspera.

Do auxílio-moradia de R$ 3.800 que negara e depois disse não saber que recebia, à contratação de parentes cuja conta começou com um neto e hoje somam oito familiares, segundo ele contratados à sua revelia, passando pelo completo desconhecimento da existência de atos secretos assinados por um diretor de sua notória confiança, o senador coleciona um compêndio de fábulas.

Compreende-se a saia justa. José Sarney provavelmente considera essa a forma mais correta - talvez a única - de não aumentar o tamanho do estrago.

Só não é compreensível como o presidente do Senado espera que o público avalie esse conjunto de episódios de outra maneira a não ser à luz da seguinte evidência: é absolutamente impossível que ele, e todos os outros integrantes da Mesa Diretora nos últimos anos, não soubessem o que se passava na Casa.

Sob pena de terem incorrido em grave falta de total ausência de responsabilidade com a delegação cega de todos os poderes a dois ou três diretores.

Fica difícil escolher a pior hipótese: a da culpa compartilhada ou a do alheamento completo que equivale a uma confissão de negligência institucional incompatível com o exercício do mandato.

Que o senador José Sarney não saiba o valor do próprio salário, admite-se; que não prive de um convívio familiar próximo o suficiente para conhecer da presença de oito parentes em seu local de trabalho, admite-se também.

Agora, que tenha sido informado só ontem, por meio da declaração do chefe do serviço de publicação do boletim de pessoal do Senado, Franklin Paes Landim, à Folha de S. Paulo, de que não houve "erros técnicos" e sim atos de fato secretos, já é exigir demais da boa vontade da freguesia.

Recapitulando: a denúncia sobre a existência dos atos secretos, descobertos por um grupo de técnicos do Senado, foi publicada há dias pelo Estado. Primeiro soube-se que eram cerca de 300, depois seriam 500 e, finalmente, confirmou-se a edição de 623 atos ao arrepio da obrigatoriedade legal de publicação.

Não houve revogação, a despeito da comprovada ilegalidade, e, para justificar a continuidade da vigência, José Sarney negou o caráter secreto alegando "erro técnico" na falta de publicidade.

Foi desmentido pelo funcionário responsável pelos boletins, que contou ter recebido ordens diretas dos ex-diretores Agaciel Maia (de cuja filha Sarney foi padrinho de casamento na semana passada) e João Carlos Zoghbi.

Só então Sarney admitiu a possibilidade de haver mesmo atos ilegais, mas não admoestou ninguém. Como se estivesse diante de uma suposição e não de provas concretas de irregularidade com cadeia de comando estabelecida, abriu uma (mais uma) comissão de sindicância.

É de se perguntar: por que não mandou averiguar a denúncia logo de início, preferindo negar para recuar quando apareceu uma testemunha. Aliás, se desconhecia os atos, de onde a convicção para a negativa?

Afinal de contas, se não sabia de tantas coisas, se não sabia que recebia auxílio-moradia e o dinheiro entrava na sua conta, se não sabia da contratação de parentes e os parentes estavam lá, natural seria que no mínimo tivesse a curiosidade - para não dizer a acuidade - de conferir se havia, ou não, atos sigilosos.

O presidente do Senado há de convir o quanto é difícil deixar de concluir que houve tentativa deliberada de simplesmente ocultar os fatos.

Também não é fácil evitar a constatação de que continua havendo a intenção de protelar providências, uma vez que, diante de tantas e tão fartas evidências, ocorre-lhe apenas abrir uma sindicância e sequer aventar a hipótese de que existam senadores envolvidos.

Provocado a se manifestar sobre essa possibilidade, limitou-se à formalidade de remeter o assunto à alçada do Supremo Tribunal Federal. Por tratar-se de questão da esfera criminal.

Perfeitamente. Mas, se houve crime, houve também quebra de decoro parlamentar, questão a ser tratada na esfera do Parlamento. Algo de que Sarney sequer cogita.

Pensou na sindicância, numa auditoria externa da folha de pagamento (e o trabalho da Fundação Getúlio Vargas?), em discutir o assunto na semana que vem (e o sentido de urgência que requer a preservação da imagem do Congresso?) com colegas da Mesa e pensou também na criação de um portal de transparência para publicar tudo sobre o Senado "sem negar nenhuma informação ao público".

O que significa que no sítio já existente (www.senado.gov.br) há sonegação de informações a um público que assiste ao espetáculo do vício insanável da mistificação continuada.

Seria de bom alvitre, contudo, que não se invocasse, como fez ontem o presidente a título de justificativa para a lentidão dos procedimentos, o santo nome do Estado de Direito em vão.

Um comentário:

  1. A ignorância do Sarney com relação aos atos é quase tão plausível quanto a existência do lobisomem ou de mula sem cabeça. Os parlamentares do corte do senador José Sarney, com o tempo de vida pública que tem,costumam operar com desenvoltura entre os meandros da liturgia burocrática. Na melhor das hipóteses eles costumam escolhera dedo os burocratas do serviço público que o cercam e que acabam botando a mão na massa e realizando o serviço sujo. Ele não é padrinho de casamento da filha do Agaciel Maia a troco de nada.O presente do padrinho não costuma ser barato e não vai ser diferente desta vez.
    Esse escândalo tem volume é robusto o suficiente para se começar a falar em afastamento da presidência e falta de decoro. Mas aí o medo toma conta do parlamento. O governo pq pode ver o controle exercido no Senado ameaçado. A chantagem vai ser intensa e caso Sarney caia vai haver uma disputa titânica pelos despojos. A oposição, que nos últimos anos também já dirigiu a mesa, teme ser colhida em meio as denuncias e acabar acontecendo como no caso do Mensalão, onde por mais sérias que fossem as denuncias contra o esquema Petista ficou a acusação de que o esquema foi inventado pelos tucanos mineiros.
    Lula não está preservando o Sarney pela sacralidade dos cargos que já ocupou ou por causa da sua contribuição histórica para democracia. O que está em jogo para o governo é a frágil estabilidade da maioria no Senado. É a possibilidade da luta política permitir a instalação da Petrobrás ou que essa instalada traga dificuldades para o governo. Em meio a tormenta o preço pela aprovação de projetos ou pela composição das chapas e governador nos estados vai subir. Só isso justifica de verdade o pedido de tratamento diferenciado formulado pelo Lula.
    Culpar o denuncismo pelo enfraquecimento das instituições democráticas é outra balela do presidente. Sarney, Collor, Renan Calheiros, Severino Cavalcanti, José Dirceu, Roberto Jefferson, Jader Barbalho. Essa é uma pequena lista de aliados do presidente que de uma maneira ou de outra contribuíram, nos últimos anos, para enxovalhar a imagem do parlamento e por extensão das instituições democráticas. Tirando Roberto Jefferson todos continuam prestigiados pelo Planalto. Se existe alguma chance de surgir alguma coisa virtuosa da atual crise do Senado não vai ser com tratamento privilegiado ao Sarney.
    Do contrário é melhor acreditar em lobisomem e na mula sem cabeça.

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