sexta-feira, 31 de julho de 2009

''América Latina pode estar vivendo recessão democrática''

João Paulo Charleaux
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


Michelle Bachelet: presidente do Chile; Em visita a São Paulo, presidente chilena fala de Honduras e alerta para outras ameaças, veladas e sutis, à democracia

A tensão entre Colômbia, Venezuela e Equador provocada pela possível instalação de bases militares dos EUA na América do Sul é um exemplo do quanto a antiga agenda da Guerra Fria ainda norteia as relações regionais. A resistência ao livre comércio e as seguidas tentativas de mudar a Constituição para ampliar mandatos presidenciais são outras características de uma "recessão democrática", disse ao Estado a presidente do Chile, Michelle Bachelet.

Até onde a comunidade internacional pode ir para resolver o impasse hondurenho? O uso da força contra os golpistas é uma opção?

Espero que o governo de facto de Honduras aceite as condições propostas pelo presidente costa-riquenho, Oscar Arias, que atua como mediador. Essas condições garantem que as eleições de novembro sejam validadas porque, do contrário, elas não serão consideradas legítimas e, portanto, não resolverão o impasse. Por isso, deve haver um acordo que permita a restituição do presidente deposto, Manuel Zelaya, e a formação de um governo de coalizão.
O problema é que não há nenhum sinal de que o os golpistas aceitem o que a senhora está dizendo.

Mas eles não disseram não.

Justamente. A ideia deles parece ser a de protelar qualquer decisão até as eleições de novembro.

A Organização dos Estados Americanos (OEA) está dando um tempo. Mas se for necessário, os Estados tomarão medidas adicionais de pressão como restringir o ingresso de recursos e o apoio econômico.

Isso já foi feito. A sra., que já foi ministra da Defesa do Chile, descarta a opção do uso da força contra o governo golpista em Honduras?

Não é uma opção. Teria de ser algo sobre o capítulo sete (da Carta das Nações Unidas, que determina a imposição da paz). Isso dependeria de uma aprovação dos Estados.

Mas não há um consenso internacional contra o golpe?

Hoje esse me parece mais um problema político do que militar. É preciso recorrer antes a todos os mecanismos políticos e econômicos.

A opção militar não foi levantada?

Não. Nem na Unasul nem na OEA nem nas Nações Unidas.

Daqui a dez dias, a senhora entregará a presidência rotativa da Unasul ao presidente do Equador, Rafael Correa. Ele tem problemas com países vizinhos, como a Colômbia, e aposta num discurso conflitivo. Esse tipo de liderança não ameaça o plano de integração?

Integração exige paciência, exige que os países estejam convencidos - mas convencidos de verdade, não apenas da boca para fora - de que a integração deve acontecer com base na diversidade. Um grupo não pode querer impor seu ponto de vista sobre os outros.

E os sinais emitidos por países como Equador e Venezuela não vão contra essa direção? O Equador prega a extinção da OEA.

Não quero pôr palavras na boca de outros presidentes. O Chile nunca apostou na Unasul como alternativa à OEA nem em qualquer briga entre países do sul e do norte. A Guerra Fria terminou e está na hora de ser coerente com isso. Nós apostamos, por exemplo, em inúmeros tratados de livre comércio, mas eu sei que existem países que não consideram o livre comércio uma opção. É preciso respeitar as diferenças. E acho que o Correa liderará entendendo isso.

Além do golpe em Honduras, há, de acordo com uma corrente de pensamento, a tese de que existem ameaças sutis contra a democracia. Em alguns países da região, foi aprovada a ampliação de mandatos presidenciais e as reeleições ilimitadas. A comunidade internacional também poderia reagir a ações como essas?

Há especialistas que dizem que vivemos tempos de recessão democrática, que existem democracias débeis. É preciso olhar com cuidado os processos que podem estar acontecendo na América Latina e possam estar debilitando a democracia. A democracia precisa ser cuidada por todos o tempo todo. Mas é preciso oferecer, ao mesmo tempo, os bens e serviços que a população necessita. Não basta chegar ao poder, é preciso dar qualidade de vida às pessoas. Afinal, qual a diferença entre não poder sair de casa por um toque de recolher ou porque a violência do crime organizado me obriga a estar trancado? Embora possa haver diferenças, ambos limitam o exercício de direitos.

O Brasil está retomando as buscas por restos mortais de ex-guerrilheiros no Araguaia, o que provoca resistência tanto de políticos quanto de militares. Que sugestão a sra., que preside um país marcado por uma das ditaduras mais violentas do mundo, foi presa e torturada, daria aos brasileiros?

A construção do futuro tem necessariamente de basear-se nas lições do passado. Não há futuro para os que não são capazes de fechar e curar as feridas adequadamente. É importante que as pessoas possam conhecer a verdade, fazer justiça e reparar as vítimas. Mas isso deve ser feito de um jeito sério, equilibrado e responsável. Jogar terra em cima não é a solução. Sendo médica, eu acredito que as feridas só cicatrizam quando realmente estão limpas.

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