segunda-feira, 6 de julho de 2009

A cor do golpe

Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO

Em 2005, Wanderley Guilherme dos Santos qualificou de "golpe branco", em artigo na imprensa, os acontecimentos relacionados com a crise do mensalão. Também em artigo na imprensa, formulei a pergunta sobre qual seria o significado real da qualificação. Se todos sabíamos o que seria um golpe "preto" (ou, talvez melhor, "vermelho"), isto é, aquele em que as normas legais são atropeladas pelos tanques e a força bruta prevalece, golpe branco seria aquele em que se afastaria um governo com observância das normas legais? Se as leis são observadas, como no caso do impeachment de Collor, por definição não há golpe, e pode mesmo haver fortalecimento das instituições.

Essa evocação vem a propósito da confusão que envolveu Honduras nos últimos dias. Segundo o noticiário a respeito, Obama teria declarado que "o golpe é ilegal", sem se preocupar com a redundância que a declaração contém à luz da definição que proponho acima. Mas a grande questão posta pela confusão de Honduras é, nos termos de Wanderley dos Santos, a de qual é afinal a cor do golpe - ou, em termos mais precisos, a de até que ponto terá havido, de fato, e de parte de quem, golpe ou conduta ilegal.

Não há dúvida quanto à avassaladora disposição internacional de tratar como golpe o movimento que afastou do poder o presidente Manuel Zelaya - e de condená-lo como tal, exigindo a recondução de Zelaya à presidência. Condenações prontas vieram da Assembleia Geral da ONU e da OEA (de onde veio mesmo um ultimatum com ameaça de expulsão), da ALBA e do governo de Hugo Chávez, num curioso "pendant" com a do governo de Obama (provavelmente desconcertante para o presidente venezuelano); embaixadores dos países latinoamericanos e da Espanha foram retirados; o Banco Mundial ameaçou suspender operações; o "El País" proclamou que já passou o tempo das desordens políticas na América Latina... Nesse consenso, as reações populares introduzem um primeiro fator dissonante: apesar de notícias algo desencontradas, a população hondurenha parece majoritariamente favorável ao afastamento de Zelaya, como destacou sobretudo "The Economist". Mas o povo, naturalmente, pode apoiar golpes, de maneira que não temos aí um critério para esclarecer a confusão.

Há, contudo, as ações do próprio Zelaya. Confuso que seja, o noticiário indica com clareza que Zelaya se empenhava, por caminhos ilegais (ademais de truculentos) que suscitaram a oposição do poder legislativo e da Corte Suprema do país, num referendo visando à mudança constitucional que lhe assegurasse o direito de disputar a reeleição, aparentemente levado por uma espécie de conversão esquerdista de inspiração chavista, oportuna diante do fim próximo de seu mandato. Como sugerido de novo recentemente com a introdução do tema das "democracias iliberais", proposto por Fareed Zakaria, o fato de que um chefe de governo tenha sido eleito não garante, por si só, a unção de todos os seus atos como democráticos. Cabe lembrar que, com todo o apoio da OEA a Zelaya, as negociações patrocinadas por ela para o seu eventual retorno ao poder preveem garantias por parte dele de não buscar novo mandato. E pudemos ver, por exemplo, manifestações como a de Ray Walser, em artigo no "Washington Post", a designar o afastamento do presidente como "um golpe para proteger a constituição" - o que faz lembrar nossa remota "novembrada" de 1955, em que o golpe de Lott contra o golpe, com o famoso "retorno aos quadros constitucionais vigentes", propiciou à oposição golpista e derrotada quando nada a ironia contra a inconsistência formal do rótulo.

De todo modo, a questão é justamente a das possíveis contradições envolvidas nas relações entre formalidades e ações reais. Os militares hondurenhos alegam ter agido por ordem da Justiça. Sobretudo com a precariedade das informações disponíveis de imediato na imprensa internacional, é difícil situar-se com segurança nos meandros legais da situação criada. Mas as informações parecem suficientes para permitir colocar o que vemos em Honduras à parte do que ocorre tradicionalmente em nossos golpes militares, em que os poderes legislativo e judiciário simplesmente se dispõem com presteza a "acochambrar" e dar revestimento "institucional" à violência consumada.

Claro, a confusão hondurenha comporta outras nuances importantes. Nada justificaria a forma estouvada e pouco civilizada da ação militar contra Zelaya, preso de pijamas na madrugada e enviado sem mais para o exterior. Declarações de Roberto Micheletti, o novo ocupante da Presidência, divulgadas em 2 de julho, assinalavam que se Zelaya voltar ao país, como diz ser sua intenção, deverá submeter-se aos tribunais. Ora, por que esse encaminhamento não foi dado, desde o primeiro momento e de forma legalmente apropriada, pelos líderes sob cuja autoridade formal supostamente aconteceu o movimento contra Zelaya?

É bom, com certeza, que a naturalidade com que os golpes eram recebidos em nosso velho pretorianismo se veja agora substituída pela pronta e geral indisposição suscitada por qualquer coisa que se assemelhe a militarismo golpista. Sem dúvida, há fatores mais amplos ligados a isso, com destaque para a superação da Guerra Fria: para os Estados Unidos como ator decisivo, o risco de alianças com uma potência nuclear rival é bem diferente mesmo do de uma Venezuela "bolivariana", que dizer do de uma eventual Honduras de simpatias chavistas - ainda que se ponha de lado a novidade dos Estados Unidos de Obama. E o confronto entre a palidez cor de rosa do, digamos, golpe anti-Zelaya e a movimentação golpista de tons aparentemente mais sombrios (ou rubros) do próprio Zelaya nos traz pelo menos uma lição a mais sobre as dificuldades do aprendizado institucional de convívio democrático. Que a confusão se resolva com a rapidez possível.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

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