sexta-feira, 31 de julho de 2009

Dilma e Michelle

Maria Cristina Fernandes
DEU NO VALOR ECONÔMICO


Apenas quatro anos lhes separam a idade. Ambas eram estudantes quando, na clandestinidade, combateram a ditadura. Foram presas e torturadas. Têm filhos e dois casamentos desfeitos. Na redemocratização, incorporaram-se a governos de centro-esquerda. No Executivo, foram as primeiras ministras a chefiar suas respectivas Pastas. Uma foi a primeira mulher presidente de seu país. A outra quer ser.

Hospedadas no mesmo hotel em São Paulo, Michelle Bachelet, 57, e Dilma Rousseff, 61, tiveram ontem seu segundo encontro privado. O primeiro foi em 2007. O terceiro será em setembro, em Santiago, às vésperas de Bachelet deixar a Presidência do Chile. A ministra-chefe da Casa Civil vai apresentar a experiência do PAC num seminário promovido pelo governo chileno.

Durante o café da manhã que tomaram juntas, falaram de crise, do exercício do poder e das dificuldades da mulher na política. A ministra ouviu com atenção o relato das medidas anticíclicas tomadas pela presidente chilena no enfrentamento da crise econômica. "Ela alcançou o reconhecimento da sociedade chilena e hoje chega a 74% de popularidade, que é bem mais do que teve na eleição", conta Dilma, ao telefone, horas depois do café da manhã que tomaram juntas, a convite da presidente chilena.

Michelle Bachelet lhe relatou as dificuldades que enfrentou na sua escalada ao poder: "Ela me falou do estigma da mulher separada que ainda resiste em setores da sociedade chilena. Acho até que o Brasil é um pouco menos machista".

Diz ainda ter-se identificado com a visão da presidente chilena sobre a mulher no poder: "Ela me disse que todo mundo acha que enquanto uma mulher que se emociona é histérica, o homem que expressa suas emoções torna-se cativante".

Michelle e Dilma trocaram impressões sobre a maternidade e o poder. "Concordamos que o que diferencia a mulher no exercício do poder é a capacidade de ser mãe e a propensão ao zelo. O Chile, assim como o Brasil, é um país com grande número de famílias chefiadas por mulheres. A mãe tem propensão a proteger. Quando saí do encontro um repórter me disse que a presidente chilena é acusada de ser mãe. Mas acusada como? A mãe cuida, protege. É isso que faz a diferença."

Filha de um general da Força Aérea fiel a Salvador Allende que morreu em decorrência da tortura, Michelle Bachelet era filiada ao Partido Socialista à época do golpe de 1973. Atuou na clandestinidade em apoio aos perseguidos da ditadura até ser presa, junto com a mãe. Casou-se, no exílio, com um arquiteto chileno de quem teve dois filhos. De volta a Santiago, concluiu Medicina, separou-se e integrou-se aos serviços públicos de epidemiologia, onde conheceria o segundo marido e teria mais uma filha.

Foi convidada pelo presidente Ricardo Lagos para o Ministério da Saúde em meio a uma crise no atendimento público. É o ex-prefeito do Rio Cesar Maia (DEM) quem relata sua trajetória no governo: "Foi para as filas como um cidadão qualquer para sentir o sofrimento das mulheres. Não terminou com as filas mas ganhou enorme popularidade. Lagos a transferiu para o Ministério da Defesa, usando a simbologia do pai. Bachelet vestiu uniforme militar, andou de tanque com capacete, de avião de combate, e sua popularidade foi às nuvens".

Na campanha presidencial, quando construiu sua base de apoio a partir dos mais pobres e menos escolarizados, foi constantemente exposta à exploração de seu passado político. Negou veementemente sua participação na Frente Patriótico Manuel Rodriguez (FPMR), mas reconheceu ter mantido uma relação amorosa com um integrante da organização, a única a continuar na Luta Armada depois do golpe. Foi ainda obrigada a negar as acusações de ter-se envolvido no sequestro do filho do diretor do jornal "El Mercurio", em 1991. As acusações, nunca comprovadas, partiram de um notório fabricante de dossiês ligado à oposição.

Ao contrário de Michelle Bachelet, Dilma não deve enfrentar um candidato herdeiro da ditadura. Mas o fato de o provável adversário da ministra, o governador José Serra, ter atuado ativamente na resistência ao golpe não significa que a exploração do passado de guerrilheira da ministra esteja descartada.

Cesar Maia acha que é um tiro n"água. Preso e condenado pela Lei de Segurança Nacional, diz que o eleitor não entende quando se quer capitalizar o tema em campanha. A opinião não é unânime. Um integrante do núcleo da pré-campanha tucana solta uma pista: "Não sei se essa coisa de guerrilheira pega bem na classe D".

Outro estrategista da oposição diz que a exploração pode funcionar se for para marcar a diferença entre o presidente que estava no chão da fábrica nos anos 1970, enquanto sua candidata militava na guerrilha. Acredita-se que, dessa forma, a campanha do radical ex-presidente da UNE José Serra não ultrapassaria o limiar da hipocrisia.

Além das diferenças significativas de um país em que a direita pinochetista sobreviveu eleitoralmente, Dilma demarca fronteiras nas origens dos dois países: "Tendo a achar que esse tema não tenha muita relevância aqui. Os espanhóis são mais fundamentalistas, enquanto os portugueses, mais pragmáticos".

Na única ocasião até agora em que um integrante da oposição tentou explorar publicamente seu passado, Dilma saiu em vantagem. O senador Agripino Maia (DEM-RN) levantou a bola para a ministra cortar quando insinuou que, se mentira sob tortura, por que não faria o mesmo naquele depoimento ao Congresso. A resposta da ministra, por certeira, levou Agripino a ser visto com desconfiança pela comunidade de blogueiros saudosos da ditadura: "Me orgulho de ter mentido, o que estava em questão era a minha vida e a de meus companheiros. Aguentar tortura é dificílimo. Pau de arara, choque elétrico, não há possibilidade de um diálogo. Qualquer comparação só pode partir de quem não dá importância à democracia".

Ainda que não veja ressonância na sociedade brasileira, a ministra não descarta que a exploração de sua militância na clandestinidade tenha chegado ao fim: "Se além de uma ficha falsa também produziram um sequestro que não existiu, nada me indica que tenham parado por aí".

Maria Cristina Fernandes é editora de Política. Escreve às sextas-feiras

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