quinta-feira, 23 de julho de 2009

Honduras é a segunda Colômbia de Chávez

Demétrio Magnoli
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Honduras, em si mesma, não tem importância econômica e perdeu uma efêmera relevância estratégica desde o encerramento da Revolução Sandinista, na Nicarágua, há duas décadas. Mas no pequeno país se joga a sorte do projeto de expansão da "revolução bolivariana" de Hugo Chávez.

No Parque Central de Tegucigalpa ergue-se a estátua equestre de Francisco Morazán, herói nacional hondurenho e líder da República da América Central, o Estado de inspiração bolivariana que unificou, entre 1823 e 1840, quase todo o istmo centro-americano. O Morazán histórico era um liberal e tinha nos EUA o modelo para sua República federalista. Contudo Eduardo Galeano e Gabriel García Márquez, artesãos de uma mitologia latino-americanista, incorporaram-no a um panteão lendário de personagens anti-imperialistas. Chávez, por sua vez, enxergou na Honduras de Manuel Zelaya a oportunidade para restaurar a República da América Central como uma das peças de seu almejado bloco antiamericano.

A República da América Central desmoronou sob os efeitos do conflito oligárquico entre liberais e conservadores. As duas correntes coagularam-se em Honduras como os Partidos Liberal (PLH) e Nacional (PNH), que configuraram um duopólio e governaram o país durante quase todo o século 20, numa dinâmica interrompida apenas por ciclos de regimes militares. O último desses ciclos se encerrou pela elaboração de uma Constituição que, expressando um consenso entre os dois partidos, estabilizou a democracia oligárquica hondurenha.

A Constituição de 1982 é um documento curioso. Vazada em linguagem democrática, ela assegura a hegemonia do duopólio partidário e a alternância de poder entre o PLH e o PNH. Para evitar a ascensão de um caudilho subordina a realização de consultas populares à aprovação de uma maioria de dois terços do Congresso. O ferrolho completa-se com os artigos 373, que só permite emendas constitucionais pelo voto de dois terços dos parlamentares, e 374, que define o mandato único presidencial de quatro anos como cláusula pétrea. Adicionalmente, o artigo 42 prevê a punição de perda de cidadania pelo crime de "incitar o continuísmo ou a reeleição" presidencial, o artigo 239 determina a "cessação" imediata das funções públicas de quem "proponha a reforma" da cláusula do mandato presidencial único e o artigo 272 consigna, entre as funções das Forças Armadas, a defesa da alternância na presidência. Zelaya, um integrante da elite do PLH, rico criador de gado e comerciante de madeira, elegeu-se em 2005 e sonhou elevar-se a caudilho. A sua pretensão envolveu Honduras no turbilhão da "revolução bolivariana".

Zelaya não se permitiria sonhar, não fosse o chavismo. Mas o candidato a caudilho alinhou Honduras à Aliança Bolivariana das Américas (Alba), o bloco geopolítico liderado por Chávez, incorporou o país à Petrocaribe, um sistema de fornecimento de petróleo a preços subsidiados pela estatal petrolífera venezuelana, e, quando perdia apoio popular, lançou-se à aventura de reformar a Constituição por meio de um referendo. Em Honduras o presidente é pouco mais que um funcionário administrativo da elite política liberal-conservadora. A deposição de Zelaya, por um golpe militar apoiado pelo Congresso e pela Corte Suprema, evidenciou a força do consenso oligárquico num país cuja legislação não prevê o instrumento do impeachment.

A condenação consensual do golpe esconde a divergência de fundo entre as condutas dos EUA e da Venezuela. A Carta Democrática da Organização dos Estados Americanos (OEA), instituída como plataforma para a reinvenção da organização pan-americana no pós-guerra fria, determina a suspensão da participação de Estados que sofrem ruptura da ordem democrática. Em consonância com ela, Washington votou pela suspensão de Honduras. O gesto de coerência com os princípios da democracia inscreve-se na política de preservação da OEA como ponte entre os EUA e a América Latina e estabelece parâmetros a serem aplicados também nos casos de Cuba e, eventualmente, da própria Venezuela. Mas o governo Obama não cortou o tratado comercial bilateral com Honduras. Ele pressiona por um acordo entre Zelaya e o governo de facto que propicie a realização de eleições e afaste o intento continuísta.

Chávez precisa de um outro desfecho da crise: a reinstalação incondicional de Zelaya na presidência e uma ruptura política que o eleve à condição de caudilho. Antes do golpe, o venezuelano providenciou as cédulas para o referendo hondurenho, que havia sido declarado ilegal pela Corte Suprema. Depois, coordenou a tentativa frustrada de retorno de Zelaya, em avião cedido pela Venezuela. Agora, dirige indiretamente os confrontos entre os apoiadores do presidente deposto e as forças do governo de facto no território de Honduras. Diversos indícios sugerem que militantes chavistas ingressam em Honduras, através da Nicarágua de Daniel Ortega, um firme aliado do chavismo.

As iniciativas ousadas de Chávez no teatro hondurenho não refletem o avanço, mas o impasse da "revolução bolivariana" que se desenhou com o fracasso na Colômbia. Há pouco mais de um ano, o desfecho da crise dos reféns na selva colombiana destruiu o projeto chavista de alcançar o reconhecimento internacional das Farc como força beligerante. Hoje, por uma das proverbiais ironias da História, a recessão econômica global corta as rendas petrolíferas que possibilitaram a projeção regional da influência da Venezuela. Na América Central, Honduras tendia a abandonar a Alba após o final do mandato de Zelaya, reduzindo o bloco a uma Cuba que ruma sem leme para o desconhecido e à Nicarágua do governo impopular e autoritário de Ortega.

A "revolução bolivariana", como toda revolução, só tem as alternativas de se expandir ou de estagnar e morrer. Chávez não pode admitir uma segunda Colômbia. Por isso precisa cobrir o cavalo de Morazán com a bandeira da Alba.

Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP.

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