domingo, 19 de julho de 2009

Sêneca e Sarney

Alberto Dines
DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)

Ao encerrar diante de um plenário vazio o semestre mais horroroso da história do Senado Federal, o senador pelo Amapá, dono do Maranhão e vice-rei do Brasil, José Sarney, fez a apologia de Lúcio Aneu Sêneca, conhecido como o Moço, o Estóico e, em rodas mais exigentes, como o Pulha.

Sarney finge agilidade, mas é antes de tudo um leviano: não pensa, embroma, não escreve, enrola, não discursa, engrola. Queria uma figura da antiguidade para espelhar-se, de preferência um senador romano e com o nome começando por um “s”. Na pressa, o dedo podre parou em Sêneca.

Ferrou-se: o estoicismo do espanhol de Córdoba era, aparentemente, de fancaria: envolveu-se com a sobrinha do imperador Cláudio, que por isso o desterrou, mais tarde engraçou-se com a imperatriz Agripina, que fez dele o preceptor do seu filho Nero. Agradecido, ao tornar-se imperador, converteu o mestre no principal conselheiro.

Sêneca foi extremamente complacente com a tirania de Nero e chegou a escrever uma hedionda e hipócrita justificativa ao senado romano sobre o assassinato da velha amiga Agripina. Sua tibieza diante do despotismo e a obsessiva acumulação de riquezas foram denunciadas pelos contemporâneos que viam nelas a negação da pregação estóica. Quando o povo começou a reclamar contra Nero, aderiu à conspiração de Pisão. Descoberto, foi obrigado a suicidar-se.

Símbolo das contradições de Sêneca é uma de suas mais famosas tiradas: “Eu elogio a vida, não a que levo, mas aquela que deve ser vivida.” Por isso não encontrava qualquer contradição entre o seu pretenso estoicismo e a fortuna material que acumulou. Alegava que o sábio não precisa ser pobre desde que o seu dinheiro seja ganho de forma decente. Sarney deve à legião de admiradores algumas explicações a respeito desta controversa proposição.

Solidário com o guru romano, na derradeira catilinária semestral Sarney investiu pesadamente contra a mídia e, sobretudo, contra o Estadão, que iniciou a série de denúncias contra os atos secretos. Ingrato, deixou mal o jornal que o acolhe às sextas-feiras, a Folha de S.Paulo, que tanto se esforça para acompanhar o competidor. Sêneca inspirou-o também neste aspecto ao designar o único medium da época, as Actas Diurnas, como “folhas linguarudas”.

Sarney, porém, é espécime único, fora de série, incomparável. As circunstâncias que o produziram resultam de uma raríssima combinação de ingredientes, aliás todos diminutivos: malandrinho, cinicozinho, oportunistazinho.

Fazia parte da “banda de música” da velha UDN e, ao contrário dos camaradas, avalizou em 1964, sem pestanejar, todos os arbítrios da Redentora. Serviu-a fielmente e quando a ditadura começou a soçobrar, passou-se para o grupo oposto. Tancredo o escolheu como vice não pelos atributos, mas pela mediocridade.

As façanhas posteriores têm sido muito lembradas ultimamente, porém poucos recordam a despudorada adesão à candidatura de Lula em Agosto de 2002, quando deixou escapar esta pérola de pragmatismo: “já que um dia será preciso engolir um triunfo do PT, melhor que fosse logo e acabasse depressa”. Sêneca seria mais gracioso e retórico, diria a mesma coisa de forma a converter-se em inspiração aos pósteros.

Agradecido, o então candidato Lula não viu qualquer perversidade na manifestação do ex-adversário e novo aliado. No berreiro dos palanques é impossível reparar em sutilezas ou examinar a decência das claques. Agora, no recesso parlamentar, talvez consiga o distanciamento para perceber o emaranhado de equívocos nos quais se envolveu a partir do momento em que colocou o sub-Sêneca como figura central do jogo político do próximo ano.

É sabido que Sarney nunca foi uma individualidade, agora ficou visível que, na realidade, é uma patota. Patota na qual militam soberanamente dois enxotados da vida pública: Fernando Collor de Melo e Renan Calheiros. E não contente, escolheu como guarda-costas e fiscal do decoro senatorial, um suplente do suplente de um senador fluminense que estreou dizendo que “não existe independência na política”.

Sêneca não merecia ser enxovalhado desta maneira.

» Alberto Dines é jornalista

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