Júlio Antônio Bonatti Santos
DEU EM GRAMSCI E O BRASIL
Marco Aurélio Nogueira. Potência, limites e seduções do poder. São Paulo: Editora Unesp, 2008. 140p.
Teorizada, julgada e exaltada por grandes pensadores desde a Antiguidade, a temática do poder enfrenta percalços de conceituação que vão além das meras elucubrações de praxe. Seu léxico abarca uma infindável gama de considerações acerca das relações que caracterizam qualquer tipo de dominação de um ser por outro, tornando assim quase impossível sua compreensão de maneira estática e acabada. No entanto, entender de forma crítica as manifestações do poder no tempo hodierno, mormente no tocante à nossa consistência de zoon politikon, faz-se tarefa premente.
Quando se tem o intuito de pensar o poder, impõe-se primeiramente a necessidade de analisar as razões da obediência — os porquês da submissão de alguns aos ditames de outrem. No que se refere à política, palco por excelência do poder, tem-se a indagação secular que, a despeito das infindáveis teses sobre ela, ainda não encontra respostas suficientes: por que a maioria, naturalmente mais forte, se submete e aceita servir à fraca minoria?
Em muito este livro contribui para elucidar tal questão, não tendo, obviamente, o objetivo último de dar cabo dela. Marco Aurélio Nogueira sintetiza as principais contribuições de vários pensadores que dela se ocuparam (Maquiavel, Hobbes, Rousseau, Weber, Gramsci, Foucault, Bobbio, entre outros) e, com liberdade, busca avançar o debate em torno de conceitos-chave, como disciplina, organização, burocracia, liderança, globalização, neoliberalismo e modernidade, perscrutando suas relações intrínsecas com a ideia central de poder e com o poder específico do Estado.
Ao iniciar seu trabalho, o autor parte de conceituações genéricas, elucidando os múltiplos significados possíveis de depreender do poder em si. Na esfera individual, cada um de nós seria tentado a experimentar a volúpia de senti-lo em mãos. E, a despeito do “perigo diabólico” que envolve todo contato direto com a fonte do poder, é irresistível e inevitável ao indivíduo dele possuidor demonstrar conspicuamente o domínio, em ato e potência, que exerce sobre os outros. Para tanto, o poder precisa ser materializado, distendido da ação pura e simbolizado em alguma imagem instituída de conquista, destruição ou proteção.
Deste ponto em diante, Nogueira desenvolve seu raciocínio em torno das implicações mais contundentes do poder no âmbito da sociedade globalizada. Na ânsia de dominar a natureza e seus demais semelhantes, de conquistar um campo de ação cada vez mais amplo, o homem se vê menor, efêmero e impotente ante a hostilidade do meio físico que o transcende. Há aí, incrustada neste processo, a dialética da dominação: ao impingir sua vontade sobre a natureza e fazer valer seus interesses de exploração, o homem destrói a si próprio — que também é natureza — e se vê refém das forças que esta acumula e lhe devolve.
Ampliando, agregando e aprofundando novas perspectivas para pensar o poder, Nogueira enfrenta o tema da globalização. O autor desnuda os rumos por ela tomados nos últimos anos, no que concerne ao falso consenso de que os campos decisórios de encadeamento global se restringiriam tão somente à esfera econômica. Tece, logo em seguida, uma argumentação crítica bem fundamentada ao neoliberalismo, matizando sua deturpação dos valores democráticos e de outros princípios geradores do liberalismo clássico. Em última instância, a ideologia neoliberal defenderia o poder do mercado sobre o poder do Estado, a dinâmica econômica prescindindo da ação política direta, sendo que, deste modo, “deveríamos todos viver de costas para Estados e governos, indiferentes a partidos, a parlamentos e a regulamentações legais” (p. 29).
Ainda que estes valores neoliberais ensejem um lugar comum no pensamento dos grandes líderes de multinacionais e outros donos do capital fluente no mundo, sabe-se da impossibilidade da ação econômica privada suplantar a função do Estado como mantenedor dos sistemas de proteção social. Ademais, como bem explícito fica nos primeiros capítulos do livro, é patente o consenso de que a globalização sob a égide da ideologia neoliberal não suprimiu as reivindicações e as conquistas políticas de seguridade social, pelo contrário: se espalham e se fortificam cada vez mais os órgãos internacionais de regulação e controle do poder, fundados nos pilares do desenvolvimento humano, em suas várias gradações, e na bandeira triunfante da democracia.
Se tomarmos por base as tendências centralizadoras do poder político que vingaram alguns decênios atrás, hoje o poder toma novos rumos: está diluído entre várias instâncias, não somente restrito ao Estado, mas representado em algumas instituições pela sociedade civil. Nos trâmites da globalização, o poder encontra-se demasiado fragmentado: houve uma democratização do acesso ao poder no sentido de este passar por um campo decisório e de controle que congrega mais pessoas. Porém, naquilo que compete ao acesso de fato aos benefícios do poder, Nogueira pontua a contradição das desigualdades sociais existentes, sempre recrudescidas, e a miséria de inúmeros povos figurando ao lado do crescimento das riquezas econômicas e melhorias políticas da sociedade global.
Quanto ao percurso histórico de certas doutrinas do poder do Estado e da ciência política, Nogueira ressalta que devemos a Maquiavel a liberação da ideia de poder de suas vinculações teológicas. A “razão de Estado” tem aí sua gênese concisa: a esfera do político não é algo divino, mas terreno; o poder dos homens não se deve pautar em ditames e preceitos da tradição, ou nos preconceitos e crenças religiosas, mas sim na razão, na análise da história e na compreensão de suas exigências conforme as circunstâncias.
De acordo com Nogueira, é mister do poder sua manifestação contínua, recorrente, que refaz sua imagem de dominação para que seus submissos não o ameacem. Todavia, o recurso da força, se utilizado com frequência, evidencia a fraqueza do poderoso: aquilo que demanda um teste, obrigado à coerção para se mostrar e manter, revela um conflito patente de afirmação. Somado a isso, o uso da força requer um alto custo ao Estado, sendo mais racional estruturar um sistema de controle que vigie os cidadãos de forma espontânea, dispensando ou minimizando a ação direta do poder ostensivo. Assim, há em demasia mecanismos controladores, de imputações disciplinares sutis, imiscuídos no convívio prosaico dos indivíduos que comungam de um mesmo território sob a tutela do Estado.
Para o autor, a cristalização do domínio do Estado sobre seus súditos veio com o advento da sociedade moderna, que trouxe consigo o fruto da organização — a burocracia — como princípio básico: o contato entre as forças em cena passa a ser cada vez menos direto, necessitando o poder sempre de intermediações, de encarregados competentes sobre suas áreas que buscam oficializar um caráter impessoal no trato entre os que vão de encontro ao poder e os que o representam. O poder passa a fazer parte de um sistema de poderes. A diversificação técnica e o aprimoramento dos conhecimentos científicos geraram consigo um novo encadeamento de vários nichos de poder.
Mas o poder em exercício, que existe de fato, enfrenta outras dificuldades de aceitação e efetivação. Ele não necessariamente tem autoridade e, nesse sentido, há um ponto nevrálgico a se resolver que é o da “legitimidade”. Ao tratar desta questão, Nogueira toma como base a tipificação weberiana da dominação legítima (o poder tradicional, o poder do carisma e o poder racional-legal). Todo poder de um governo sobre seus governados, para se fazer legítimo, teria suas pilastras fundadas, ou nos costumes, há muito enraizados na memória e nos hábitos que dão identidade ao povo de uma nação; ou nas capacidades extraordinárias de um indivíduo, dotado de uma graça especial que o faz liderar, ou sobre um conjunto de leis expressando a racionalidade e a técnica do poder, numa forma praticamente burocrática de governar.
A “modernidade radicalizada” e a burocratização de nossos tempos trouxeram o desencanto com o mundo: não se incorreria mais na possibilidade do erro, cada vez mais exato e conformado com os padrões técnico-científicos, adequados à racionalização perpétua. Os campos do arbítrio e da moral, por si relativos, seriam banidos do desejável ante o escopo do possível num mundo assaz burocratizado e objetivo. O cotidiano do poder, subdividido e tendenciosamente oligárquico, prontamente suplantaria o carisma de um grande líder, que congregasse as esperanças de quaisquer humanismos.
Não obstante, cônscio da inevitabilidade do poder, principalmente dos aparelhos repressores do Estado, Nogueira aposta a todo custo na democracia. Destarte, a democracia seria a melhor forma possível de convívio político, por congregar o maior número de pessoas com interesses diversos em torno dos campos de debate e decisão dos assuntos públicos. Além do quê, os problemas que um Estado democrático apresenta são significativamente menores que aqueles advindos de uma oligarquia explícita ou uma autocracia constituída.
Enfim, a solução para interromper os caminhos da onipotência do poder (econômico, ideológico, político, burocrático) está na sua “politização”. Precisamos penetrar nesta racionalidade instrumental que escraviza o mundo globalizado com a razão crítica e política. E, nas palavras de Marco Aurélio Nogueira, devemos ter consciência que “podemos usar o poder contra o poder”, fazendo da democracia o poder legítimo e ideal para contestarmos toda forma de opressão e construirmos uma coletividade deveras humana e igualitária.
Júlio Antônio Bonatti Santos é estudante do curso de História da Unesp/Franca.
DEU EM GRAMSCI E O BRASIL
Marco Aurélio Nogueira. Potência, limites e seduções do poder. São Paulo: Editora Unesp, 2008. 140p.
Teorizada, julgada e exaltada por grandes pensadores desde a Antiguidade, a temática do poder enfrenta percalços de conceituação que vão além das meras elucubrações de praxe. Seu léxico abarca uma infindável gama de considerações acerca das relações que caracterizam qualquer tipo de dominação de um ser por outro, tornando assim quase impossível sua compreensão de maneira estática e acabada. No entanto, entender de forma crítica as manifestações do poder no tempo hodierno, mormente no tocante à nossa consistência de zoon politikon, faz-se tarefa premente.
Quando se tem o intuito de pensar o poder, impõe-se primeiramente a necessidade de analisar as razões da obediência — os porquês da submissão de alguns aos ditames de outrem. No que se refere à política, palco por excelência do poder, tem-se a indagação secular que, a despeito das infindáveis teses sobre ela, ainda não encontra respostas suficientes: por que a maioria, naturalmente mais forte, se submete e aceita servir à fraca minoria?
Em muito este livro contribui para elucidar tal questão, não tendo, obviamente, o objetivo último de dar cabo dela. Marco Aurélio Nogueira sintetiza as principais contribuições de vários pensadores que dela se ocuparam (Maquiavel, Hobbes, Rousseau, Weber, Gramsci, Foucault, Bobbio, entre outros) e, com liberdade, busca avançar o debate em torno de conceitos-chave, como disciplina, organização, burocracia, liderança, globalização, neoliberalismo e modernidade, perscrutando suas relações intrínsecas com a ideia central de poder e com o poder específico do Estado.
Ao iniciar seu trabalho, o autor parte de conceituações genéricas, elucidando os múltiplos significados possíveis de depreender do poder em si. Na esfera individual, cada um de nós seria tentado a experimentar a volúpia de senti-lo em mãos. E, a despeito do “perigo diabólico” que envolve todo contato direto com a fonte do poder, é irresistível e inevitável ao indivíduo dele possuidor demonstrar conspicuamente o domínio, em ato e potência, que exerce sobre os outros. Para tanto, o poder precisa ser materializado, distendido da ação pura e simbolizado em alguma imagem instituída de conquista, destruição ou proteção.
Deste ponto em diante, Nogueira desenvolve seu raciocínio em torno das implicações mais contundentes do poder no âmbito da sociedade globalizada. Na ânsia de dominar a natureza e seus demais semelhantes, de conquistar um campo de ação cada vez mais amplo, o homem se vê menor, efêmero e impotente ante a hostilidade do meio físico que o transcende. Há aí, incrustada neste processo, a dialética da dominação: ao impingir sua vontade sobre a natureza e fazer valer seus interesses de exploração, o homem destrói a si próprio — que também é natureza — e se vê refém das forças que esta acumula e lhe devolve.
Ampliando, agregando e aprofundando novas perspectivas para pensar o poder, Nogueira enfrenta o tema da globalização. O autor desnuda os rumos por ela tomados nos últimos anos, no que concerne ao falso consenso de que os campos decisórios de encadeamento global se restringiriam tão somente à esfera econômica. Tece, logo em seguida, uma argumentação crítica bem fundamentada ao neoliberalismo, matizando sua deturpação dos valores democráticos e de outros princípios geradores do liberalismo clássico. Em última instância, a ideologia neoliberal defenderia o poder do mercado sobre o poder do Estado, a dinâmica econômica prescindindo da ação política direta, sendo que, deste modo, “deveríamos todos viver de costas para Estados e governos, indiferentes a partidos, a parlamentos e a regulamentações legais” (p. 29).
Ainda que estes valores neoliberais ensejem um lugar comum no pensamento dos grandes líderes de multinacionais e outros donos do capital fluente no mundo, sabe-se da impossibilidade da ação econômica privada suplantar a função do Estado como mantenedor dos sistemas de proteção social. Ademais, como bem explícito fica nos primeiros capítulos do livro, é patente o consenso de que a globalização sob a égide da ideologia neoliberal não suprimiu as reivindicações e as conquistas políticas de seguridade social, pelo contrário: se espalham e se fortificam cada vez mais os órgãos internacionais de regulação e controle do poder, fundados nos pilares do desenvolvimento humano, em suas várias gradações, e na bandeira triunfante da democracia.
Se tomarmos por base as tendências centralizadoras do poder político que vingaram alguns decênios atrás, hoje o poder toma novos rumos: está diluído entre várias instâncias, não somente restrito ao Estado, mas representado em algumas instituições pela sociedade civil. Nos trâmites da globalização, o poder encontra-se demasiado fragmentado: houve uma democratização do acesso ao poder no sentido de este passar por um campo decisório e de controle que congrega mais pessoas. Porém, naquilo que compete ao acesso de fato aos benefícios do poder, Nogueira pontua a contradição das desigualdades sociais existentes, sempre recrudescidas, e a miséria de inúmeros povos figurando ao lado do crescimento das riquezas econômicas e melhorias políticas da sociedade global.
Quanto ao percurso histórico de certas doutrinas do poder do Estado e da ciência política, Nogueira ressalta que devemos a Maquiavel a liberação da ideia de poder de suas vinculações teológicas. A “razão de Estado” tem aí sua gênese concisa: a esfera do político não é algo divino, mas terreno; o poder dos homens não se deve pautar em ditames e preceitos da tradição, ou nos preconceitos e crenças religiosas, mas sim na razão, na análise da história e na compreensão de suas exigências conforme as circunstâncias.
De acordo com Nogueira, é mister do poder sua manifestação contínua, recorrente, que refaz sua imagem de dominação para que seus submissos não o ameacem. Todavia, o recurso da força, se utilizado com frequência, evidencia a fraqueza do poderoso: aquilo que demanda um teste, obrigado à coerção para se mostrar e manter, revela um conflito patente de afirmação. Somado a isso, o uso da força requer um alto custo ao Estado, sendo mais racional estruturar um sistema de controle que vigie os cidadãos de forma espontânea, dispensando ou minimizando a ação direta do poder ostensivo. Assim, há em demasia mecanismos controladores, de imputações disciplinares sutis, imiscuídos no convívio prosaico dos indivíduos que comungam de um mesmo território sob a tutela do Estado.
Para o autor, a cristalização do domínio do Estado sobre seus súditos veio com o advento da sociedade moderna, que trouxe consigo o fruto da organização — a burocracia — como princípio básico: o contato entre as forças em cena passa a ser cada vez menos direto, necessitando o poder sempre de intermediações, de encarregados competentes sobre suas áreas que buscam oficializar um caráter impessoal no trato entre os que vão de encontro ao poder e os que o representam. O poder passa a fazer parte de um sistema de poderes. A diversificação técnica e o aprimoramento dos conhecimentos científicos geraram consigo um novo encadeamento de vários nichos de poder.
Mas o poder em exercício, que existe de fato, enfrenta outras dificuldades de aceitação e efetivação. Ele não necessariamente tem autoridade e, nesse sentido, há um ponto nevrálgico a se resolver que é o da “legitimidade”. Ao tratar desta questão, Nogueira toma como base a tipificação weberiana da dominação legítima (o poder tradicional, o poder do carisma e o poder racional-legal). Todo poder de um governo sobre seus governados, para se fazer legítimo, teria suas pilastras fundadas, ou nos costumes, há muito enraizados na memória e nos hábitos que dão identidade ao povo de uma nação; ou nas capacidades extraordinárias de um indivíduo, dotado de uma graça especial que o faz liderar, ou sobre um conjunto de leis expressando a racionalidade e a técnica do poder, numa forma praticamente burocrática de governar.
A “modernidade radicalizada” e a burocratização de nossos tempos trouxeram o desencanto com o mundo: não se incorreria mais na possibilidade do erro, cada vez mais exato e conformado com os padrões técnico-científicos, adequados à racionalização perpétua. Os campos do arbítrio e da moral, por si relativos, seriam banidos do desejável ante o escopo do possível num mundo assaz burocratizado e objetivo. O cotidiano do poder, subdividido e tendenciosamente oligárquico, prontamente suplantaria o carisma de um grande líder, que congregasse as esperanças de quaisquer humanismos.
Não obstante, cônscio da inevitabilidade do poder, principalmente dos aparelhos repressores do Estado, Nogueira aposta a todo custo na democracia. Destarte, a democracia seria a melhor forma possível de convívio político, por congregar o maior número de pessoas com interesses diversos em torno dos campos de debate e decisão dos assuntos públicos. Além do quê, os problemas que um Estado democrático apresenta são significativamente menores que aqueles advindos de uma oligarquia explícita ou uma autocracia constituída.
Enfim, a solução para interromper os caminhos da onipotência do poder (econômico, ideológico, político, burocrático) está na sua “politização”. Precisamos penetrar nesta racionalidade instrumental que escraviza o mundo globalizado com a razão crítica e política. E, nas palavras de Marco Aurélio Nogueira, devemos ter consciência que “podemos usar o poder contra o poder”, fazendo da democracia o poder legítimo e ideal para contestarmos toda forma de opressão e construirmos uma coletividade deveras humana e igualitária.
Júlio Antônio Bonatti Santos é estudante do curso de História da Unesp/Franca.
Agradeço pela atenção em ter postado a resenha. Aproveito para parabenizá-lo pelo blog - sempre atualizado com o que é pertinente à nossa democracia.
ResponderExcluirJúlio Bonatti