segunda-feira, 17 de agosto de 2009

A candidatura de Marina Silva

Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO


Meses atrás, em abril deste ano, tivemos nos Estados Unidos o senador Arlen Specter a mudar do Partido Republicano para o Partido Democrata. O motivo por ele citado para a decisão foi o de que, com seu voto favorável ao pacote de estímulo econômico de Obama, não teria como ganhar a eleição primária junto ao eleitorado republicano da Pensilvânia contra um desafiante conservador. Apesar de certa ambiguidade, já que está envolvida uma questão de posições sobre política de governo, a decisão de Specter sugere a disposição ao cálculo político mais ou menos estreito que pode ser associado ao "profissionalismo" político negativo de que falei aqui na semana passada. A mudança foi descrita por seus colegas republicanos como "um ato indisfarçado de autopreservação política", aproximando-se, claramente, do nosso troca-troca partidário orientado pelo cálculo de conveniências pessoais - afinal, também nossos políticos partidariamente "infieis" podem alegar razões maiores para os seus deslocamentos, que se fazem geralmente rumo ao governo.

Lembro Specter e a ambiguidade que cercou sua decisão a propósito da grande novidade em nossa cena política representada pelo ingresso de Marina Silva no PV, que aparentemente virá mesmo a acontecer, para disputar a Presidência da República. Não creio que caiba falar, a respeito, de "profissionalismo" miúdo. Mesmo admitindo a indisposição pessoal com relação a Lula ou ao PT que a senadora possa ter pelas circunstâncias de sua saída do governo e o provável efeito disso sobre a motivação da decisão de agora, seria impossível dissociar essa indisposição de uma biografia e de ideias mais que respeitáveis que se ligam à própria ascensão dela ao ministério. E a dose de realismo que a avaliação adequada da ação política requer leva a destacar, nas lideranças que emergem, a capacidade de combinar a promoção do interesse público com o interesse pessoal que está sempre legitimamente presente, na política não menos que nas atividades privadas.

De todo modo, a novidade contém sugestões e indagações sobre o processo político brasileiro em geral. Uma delas é a reiteração das precariedades do nosso quadro partidário.

Seja como for que se devam ver as infidelidades de parlamentares, é notável que, no ano anterior ao da eleição, seja possível a alguém perguntar-se para qual partido deve ir para disputar nada menos do que a Presidência da República - e que sua decisão a respeito possa ter tal impacto sobre o quadro geral das candidaturas e suas perspectivas de êxito. A previsão de "implosão" da candidatura de Dilma Rousseff, feita por Ciro Gomes em entrevista ao Valor, contém uma boa aposta, mesmo pondo de lado os estragos que as denúncias de Lina Vieira dão cada vez mais a impressão de poder trazer a Dilma. Em Marina Silva, a quem as peculiaridades do perfil popular e de "esquerda" permitem provavelmente beneficiar-se tanto de ser semelhante a Lula quanto daquilo que a distanciou dele, esse perfil se combina com uma imagem de consistência que a afasta do caráter folclórico de uma Heloísa Helena como candidata. Parece grande, tudo somado, seu potencial de atração eleitoral sobre muita gente, como indica a pesquisa do PV que se tem divulgado, e ela poderia vir a tornar-se o foco de composições de maior amplitude do que aquilo que sugerem os recursos limitados do próprio PV.

Uma indagação relevante, porém, é a de como avaliar esse impacto possivelmente forte sobre o processo eleitoral em perspectiva de maior alcance. Assim, há um sentido em que se pode pretender atribuir significado positivo ao plebiscitarismo que se vinha esboçando para a eleição de 2010. Não obstante a importância de composições "realistas" do tipo das que Lula e o PSDB tratam igualmente de manter com o PMDB (das quais, nas circunstâncias atuais, é difícil imaginar que Marina Silva, como candidata ou governante, viesse ela própria a ver-se livre), o enfrentamento renovado entre PT e PSDB talvez ajudasse a viabilizar a retomada ou o reforço de identificações partidárias que se vinham consolidando e favorecesse a eventual consolidação de um sistema partidário simplificado, que, bem ou mal, giraria em torno dos dois partidos de melhores características que temos tido há tempos.

A questão que se coloca é a do que traria à dinâmica do jogo partidário o possível êxito, total ou parcial, de Marina Silva como candidata à Presidência. A hipótese do êxito se liga fatalmente com a do amplo impacto negativo sobre o que restou do "sistema" PT-PSDB após as dificuldades recentes dos dois partidos. A respeitabilidade pessoal da senadora e o forte conteúdo programático que uma campanha sua presumivelmente teria (à parte as preocupações quanto à necessidade de equilibrar e diversificar a ênfase talvez excessiva na questão ambiental) permitiam a Rosângela Bittar, em coluna de 5 de agosto neste jornal, a hipérbole de situar essa campanha em "outra galáxia" em relação ao que temos correntemente. Restaria ver até que ponto os traços que distinguem Marina Silva como líder política poderiam representar, ressalvado o inevitável realismo e em contraste com o estilo da liderança exercida por Lula em seu governo, um fator de reconstrução pronta e efetiva - e no rumo certo da maior simplicidade e consistência - do quadro partidário.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

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