domingo, 23 de agosto de 2009

Eis a depuração?

José de Souza Martins*
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS

Com desligamentos, o partido faz de conta que continua sendo o mesmo para ser o oposto

A saída de Marina Silva do PT amplia o elenco das perdas identitárias que vêm drenando de seus quadros algumas de suas figuras mais emblemáticas: Luiza Erundina, Cristovam Buarque, Heloísa Helena. Na sua diversidade, são nomes expressivos na relação do partido com setores moralmente sensíveis da sociedade brasileira. Faces visíveis de alguns dos grandes eleitores ocultos, decisivos na trajetória de qualquer partido político.

O PT é uma frente partidária que vem se estreitando. Nasceu como coalisão de tendências políticas e sociais de perfis muito desencontrados. Nasceu dos descontentamentos residuais em relação a partidos e tendências, de esquerda e conservadores. O PT se constituiu numa organização partidária fracionada mas articulada, em cujo interior podem ser identificadas duas grandes facções, que são as protagonistas de sua dinâmica e de sua crise atual. De um lado, a facção do poder, dos que, em linhas gerais, procedem da esquerda convencional e do aparelho sindical. De outro lado, a facção religiosa que, mesmo tentada pelo demônio do poder, só tem legitimidade quando expressa o profetismo cristão, particularmente o católico, tão forte em nossa cultura popular.

Nesse embate, o profeta invisível se alça contra o rei, aponta-lhe o dedo, questiona-o em nome da verdade do povo, derruba-o moralmente em nome da utopia de um tempo de fartura, justiça e esperança. Nesses dias, um dos desiludidos com o PT disse que o partido jogou a moral no lixo.

Na verdade, no lixo jogou mais do que a moral. Jogou a utopia que lhe deu cerne e estrutura, jogou sua própria alma. O PT oportunista corrompeu a identidade do PT inovador, o dos novos sujeitos da política que nasceram das exclusões cujo sentido se deu a ver durante os tempos repressivos da ditadura militar.

Lula, oriundo do sindicalismo de resultados e não propriamente do sindicalismo de luta, tornou-se um líder carismático porque em grande parte refabricado na mística do grupo de origem religiosa e, também, nos setores de esquerda que estavam ansiosos pelo poder para demonstrar sua competência como gestores não capitalistas do capital. Foi o modo de fazer com que o que era igual parecesse diferente. Seu carisma protegeu-o não só contra os descontentamentos populares em face de desregramentos como o do mensalão, e os possíveis descontentamentos das elites, mas sobretudo contra os descontentamentos no interior de seu próprio partido. A consequência tem sido o fortalecimento de seu absolutismo, o que se manifesta particularmente quando age como porta-voz da convenção partidária que não houve, do seu e de outros partidos, ao indicar Dilma Rousseff como candidata à Presidência, Ciro Gomes para o governo de São Paulo e Henrique Meirelles para o governo de Goiás. Hoje o PT é governado pelas conveniências do poder.

No entanto, o poder impôs ao PT a missão de transformar-se em partido político, o que tem implicado abrir mão de sua rica diversidade ideológica e suas conflitivas ideologias internas. As expulsões e desligamentos resultam desse processo de depuração, para que o partido faça de conta que continua sendo o mesmo para ser o oposto do que dizia ser. A crise de oportunismo que estamos vendo é a crise de nascimento do novo PT. Se o PT nasceu batizado como partido popular e religioso, está agora passando pelo rito do crisma, tendo como padrinhos Sarney, Collor, Jucá, Calheiros. Renasce modelado segundo as exigências de uma concepção retrógrada e rústica do poder, tendo como referência o reacionário oligarquismo da dominação patrimonial e o fisiologismo que lhe é próprio. Na rendição, ninguém escapa nem Aloizio Mercadante nem Ideli Salvatti cujos radicalismos se perdem na satanização do outro, na incompetência para a radicalidade, a de ir às raízes dos fatos e expô-las. Tornaram-se meros cúmplices.

Parasitando os movimentos sociais, o PT esperava transformar-se num sucedâneo civilizado do populismo rural e urbano. Aliou-se aos partidos e às figuras exponenciais do nosso atraso político na esperança de apossar-se de seu eleitorado. Mas na dialética desse tipo de interação acabou parasitado. Na sessão da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania para ouvir a sra. Lina Vieira, alta funcionária técnica do governo, recém demitida no confronto com a ministra da Casa Civil, a candidata de Lula à Presidência, o que se viu foi o governo do PT sendo defendido na primeira fila pela tropa de choque do oligarquismo e do fisiologismo. O partido substituído e representado por aquilo que foi no passado objeto de sua crítica e de sua contestação. E não faltou um PT policialesco, na retaguarda, inquirindo a depoente como se estivéssemos no tempo da ditadura, como se fosse ela que tivesse que explicar os arranjos que fazem do PT o que ele é hoje.
Os ingênuos dos dois lados do embate não se deram conta de que a depoente, sem nada dizer, fê-los engalfinharem-se contra e a favor do que era até então um mero fantasma, o fantasma de Dilma Rousseff, dando-lhe corpo e alma. Nem mesmo faltou a palavra inoportuna do presidente da República na tarefa que não lhe cabia, a de defender sua criatura desqualificando a funcionária.

O fato de que Marina Silva já apareça como opção eleitoral antes mesmo de ser oficialmente candidata dá bem a medida da ansiedade que setores ponderáveis do PT e do eleitorado têm por uma candidatura que represente o retorno aos valores que deram carnalidade a Lula. O fenômeno Marina Silva é o primeiro e poderoso indício de que o carisma de Lula tem sido silenciosamente abalado em seus fundamentos, mesmo que as pesquisas de opinião dêem-lhe altas porcentagens de apreço popular, que não é a mesma coisa que opção eleitoral e partidária.
Por outro lado, ao revelar que Ciro Gomes tem o mesmo índice de opções da candidata de Lula, as pesquisas indicam que a perda do seu carisma se desdobra também aí, na imaterialidade política da candidatura de Dilma Rousseff, mesmo com as poderosas verbas do PAC. Ou, talvez, por isso.

*Professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Autor de Fronteira - A Degradação do Outro nos Confins do Humano (Contexto, 2009)

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