segunda-feira, 3 de agosto de 2009

O que fazer com o real?

Luiz Carlos Mendonça de Barros
DEU NO VALOR ECONÔMICO


O real tem se valorizado de forma constante desde maio passado e hoje está sendo negociado abaixo de R$ 1,90. O mercado aposta que, até o fim do mandato do governo Lula, ele pode chegar a R$ 1,80. Oito anos atrás, quando nosso presidente tomou posse, eram precisos quase quatro reais para se comprar um dólar americano. Uma valorização de mais 50%, apesar de um diferencial de inflação - em relação à dos EUA - da ordem de 30% nestes oito anos.

A história do fortalecimento do real durante a chamada era Lula é um bom roteiro para se acompanhar a evolução econômica e, mesmo política, do Brasil neste período. Eleito com uma moeda extremamente desvalorizada, Lula vai entregar o governo em uma situação oposta. Esta me parece uma primeira relevante diferença entre a economia herdada por Lula em 2003 e a que espera o novo presidente.

Uma moeda forte traz grandes benefícios a uma economia emergente, mas também cria novos desafios que precisam ser entendidos. É necessário refletir sobre o que esta situação vai representar para o novo presidente. É o que pretendo fazer hoje neste espaço do Valor.

Antes de entrar propriamente no caso brasileiro, é preciso uma breve menção a uma das grandes transformações em curso na economia mundial e que se aprofundará a partir da superação da crise que vivemos. Refiro-me às mudanças estruturais que ocorrerão no sistema monetário internacional nos próximos anos. Vivemos o início da morte do sistema internacional centrado no dólar americano que prevaleceu durante várias décadas, sem que os contornos de um novo arranjo institucional estejam ainda definidos.

A origem desta transformação está, entre outros fatores, nos dólares em excesso que circulam nos mercados internacionais e que estão entesourados na forma de reservas internacionais dos países credores. Não é só a China, maior credor dos Estados Unidos, que se sente desconfortável com isto. Outros governos e investidores privados também gostariam de diversificar seus recursos e depender menos do dólar como reserva de valor. Este movimento de realocação de moeda já começou de forma muito sutil. Sempre que possível os agentes credores trocam parte de seus dólares por outras moedas, embora ainda em dimensão muito limitada, tendo em vista a ausência de alternativas.

De todo o modo, o desejo de migração está presente de forma clara e ficará mais forte ao longo do tempo. A forma como se chegará a um novo arranjo internacional ainda é obscura. As funções de unidade de conta, meio de troca e reserva de valor no futuro talvez sejam cada vez mais desempenhadas por outras moedas. Discute-se também, como alternativa a esta multipolaridade monetária, a criação de uma nova moeda internacional de referência. Seja qual for o caminho, os obstáculos serão enormes, envolvendo inclusive fatores geopolíticos e cessão voluntária de soberania. Por exemplo, a existência de uma nova moeda internacional vai demandar mecanismos de correção de desequilíbrios externos que vão se chocar com interesses nacionais. Se este sistema estivesse vigente nos últimos anos, provavelmente teria sido imposta à China uma maior valorização cambial. Concordariam os chineses, ou outros países asiáticos, com esta interferência direta em seu modelo de desenvolvimento?

A duração destas negociações será medida em anos e não em meses. E neste período de incertezas os mercados viverão momentos de grande insegurança. Uma boa referência para quem quiser especular sobre a transição é o que aconteceu na criação do euro. Naqueles já longínquos anos noventa a volatilidade entre o marco alemão, o franco francês e as moedas mais fracas dos outros países envolvidos foi extremamente elevada até se chegar às paridades de conversão na nova moeda. Mesmo depois da criação do euro os mercados de câmbio viveram dias de muita especulação com as cotações da libra inglesa.

Imaginem-se quando as mudanças de paridade atingir uma cesta de muitas moedas - inclusive o real - espalhadas por todas as regiões do mundo. Arrisco aqui um palpite: os atores nacionais, especialmente os emergentes, brigarão para preservar certo nível de desvalorização estrutural. E quem não fizer isso sairá perdendo.

Esta será uma nova realidade que o novo presidente da República terá de enfrentar. O real será ator importante neste jogo internacional de grande complexidade e pode vir a sofrer um processo agressivo de valorização. O que quer dizer que a capacidade de controle da taxa de câmbio pelo Banco Central será ainda menor que a de hoje. Como reagir a isto e evitar que uma valorização cambial excessiva afete de maneira direta a dinâmica interna de nossa economia será um tema crítico a ser tratado aqui no Brasil nos próximos anos.

Não me coloco no grupo de economistas que entendem que a taxa de câmbio é apenas uma questão de mercado. Para estes, questões ligadas à competitividade do setor produtivo nacional devem ser tratadas apenas ao nível da microeconomia e pelas próprias empresas. Cabe ao governo, através de reformas institucionais, a criação de um ambiente interno que permita que possamos competir de forma eficiente com as empresas de outros países. No ambiente externo dos primeiros anos da nova década esta postura seria muito perigosa e indesejável.

Por outro lado, uma política agressiva de defesa de um câmbio menos valorizado me parece inviável se o cenário de uma reforma internacional vingar. Mesmo hoje, quando ainda não se busca construir este novo arranjo, esta política exigiria um nível de intervenção elevado e seria potencialmente conflitante com outros objetivos. Desalinhar artificialmente o real hoje em relação a outras moedas de países emergentes exportadores de commodities provocaria um grande movimento internacional de arbitragem. Apenas medidas, de caráter coercitivo, poderiam dar fôlego às intervenções do Banco Central. Mas não sei se teríamos condições objetivas para dar este passo.

Como definir uma política cambial que, ao mesmo tempo, seja realista em relação às condições de mercado e defenda parte importante de nossa indústria me parece um dos grandes desafios no próximo mandato presidencial. Lula não tocará nesta questão, pois ela não afeta seu mandato e ao governo claramente falta a capacidade de entender os verdadeiros desafios estratégicos do futuro.

Luiz Carlos Mendonça de Barros, engenheiro e economista, é diretor-estrategista da Quest Investimentos. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações. Escreve mensalmente às segundas.

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