segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Entrevista José Augusto Pádua: PV sozinho não será capaz de bancar governo Marina

Mauricio Puls
DEU NA FOLHA DE S. PAULO (13/9)


Historiador diz que senadora terá de buscar mais apoio para implementar suas ideias

Ex-coordenador da área de florestas do Greenpeace na América Latina, o historiador José Augusto Pádua, da UFRJ, acha que a senadora Marina Silva (AC) tentará depurar o PV dos oportunistas "sem qualquer ligação programática com o ambientalismo", mas mesmo assim o partido não é suficiente para implementar suas ideias.

Autor de "Um Sopro de Destruição: Pensamento Político e Crítica Ambiental no Brasil Escravista", ele diz que o "ambientalismo não pertence mais aos ambientalistas" porque se disseminou por diversas correntes e está no "coração do debate político contemporâneo".

FOLHA - O primeiro PV surgiu em 1972. O movimento se disseminou pelo mundo inteiro, mas até hoje não conseguiu se tornar o principal partido em nenhum país. Por quê?

JOSÉ AUGUSTO PÁDUA - Não se pode medir o crescimento político da temática ambiental pelo crescimento dos chamados Partidos Verdes, que são apenas um dos componentes de um processo histórico maior. O ambientalismo não pertence mais aos ambientalistas e aos verdes. A questão ambiental tornou-se um fenômeno multissetorial, que está presente na cultura, na mídia, nas negociações internacionais, nas instituições estatais, nas organizações empresariais e sindicais.

Ela está mais próxima do que nunca do coração do debate político contemporâneo. É claro que a existência dos PVs ajudou a organizar o debate ambiental, influenciando a visão dos diferentes partidos. E os verdes têm sido capazes de manter parte considerável do eleitorado, participando de coligações de governo em vários países. É a mais recente corrente política internacional em processo de consolidação, sendo portadora de muitas das novas questões da contemporaneidade.

FOLHA - O sr. diz que para criar um modelo sustentável de desenvolvimento é preciso ter um bloco político forte, que seja capaz de transformar a economia. O PV brasileiro vem crescendo, mas, como dizem seus dirigentes, não tem a bancada dos sonhos: só metade é de ambientalistas. Quais são as dificuldades para transformar um movimento ambiental em um grande partido?

PÁDUA - O PV brasileiro nasceu nos anos 1980, no mesmo caldo de cultura do movimento verde internacional. De início era um típico partido de ideias. Mais tarde, em muitos casos, por oportunismo ou instinto de sobrevivência, sucumbiu à tentação de tornar-se legenda de aluguel para políticos locais sem qualquer ligação programática com o ambientalismo. Apesar de conseguir crescer, tornou-se um corpo estranho e híbrido, onde convivem lideranças realmente verdes com políticos alheios, ou até antagônicos, aos valores ecologistas.Uma das apostas explícitas de Marina Silva é a de participar de uma espécie de refundação da política verde no Brasil, envolvendo necessariamente uma depuração do partido e uma retomada da proposta inicial. Mas é evidente que o ambientalismo possui um campo de atuação política muito mais amplo, não podendo confundir-se com um partido. Um novo modelo de desenvolvimento só será possível com a formação de um bloco maior: na melhor das hipóteses, o PV poderá vir a ser um dos catalisadores ideológicos dessa nova política.

FOLHA - Mas o que o sr. quer dizer?

Que o PV sozinho não tem força para eleger Marina? Ou que Marina não poderá governar só com o PV?

PÁDUA - As duas coisas são verdadeiras, mas pensei especialmente em um terceiro aspecto.

É provável que o PV, mesmo unido com outros pequenos partidos, não tenha força para eleger Marina. Mas não podemos esquecer que a história recente apresenta o exemplo de Fernando Collor, que cresceu eleitoralmente sem possuir de início uma base partidária relevante. É claro que se trata de um caso bem diferente do de Marina, até mesmo considerando o grande volume de recursos que alguns esquemas empresariais forneceram à campanha. Na eventualidade de uma vitória da candidata, por outro lado, é óbvio que ela não poderá governar apenas com o PV, sendo forçada a fazer alianças. Em um sentido mais amplo, porém, a construção da capacidade política necessária para uma transição ao desenvolvimento sustentável não poderá ser obra apenas do PV. Ele poderia ser um dos catalisadores desse processo: precisaria agregar os setores mais modernos e esclarecidos da política brasileira. Ele requereria uma verdadeira mudança de cultura política e de visão de país. Apesar de não ser uma tarefa fácil, não considero que tal proposta seja utópica. Ela pode ser realizada através de políticas de curto, médio e longo prazo.

FOLHA - O sr. diz que o ambientalismo possui duas bases: há um "ambientalismo da classe média urbana", incomodada com a especulação imobiliária e a descaracterização das cidades, e um "ambientalismo dos pobres", de seringueiros, catadores de babaçu, pequenos agricultores. O sr. acha que, com a ida de Marina ao PV, os dois grupos acharam um representante comum?

PÁDUA -
Quando se analisa a história do ambientalismo brasileiro, a partir da década de 1970, é possível observar essas duas vertentes. O avanço das fronteiras capitalistas no mundo rural associou o desmatamento com a desarticulação agressiva e autoritária de comunidades locais. Nas periferias urbanas do crescimento industrial, a poluição e a degradação das condições de vida se tornou insuportável. Em ambos os contextos grupos locais começaram a buscar alternativas ambientais, apesar de não conhecerem o vocabulário do ambientalismo internacional.

Os movimentos de classe média também reagiram aos problemas mencionados na pergunta, mas estavam mais antenados com a difusão internacional das ideias ambientalistas. Mais tarde, na década de 1980, aconteceu um encontro entre essas duas vertentes, um processo rico e natural de aprendizado mútuo e abertura de horizontes. A aproximação, na época, entre Chico Mendes e os criadores do PV é um exemplo concreto dessa convergência. Marina é hoje a mais perfeita tradução desse processo. De suas raízes populares, incluindo uma alfabetização muito tardia, ela se transformou em uma das personalidades políticas mais antenadas com as discussões internacionais de ponta sobre o futuro da humanidade. Mais do que absorver, ela se tornou de fato uma formuladora de ideias e valores ambientalistas em escala internacional.

É verdade que não se trata de uma fundamentalista: sabe negociar e ser pragmática. Mas raros políticos brasileiros se guiam tão fortemente por ideias e valores. Ainda é cedo para avaliar quais serão as consequências concretas de sua entrada no jogo eleitoral. Mas não é difícil observar que a política brasileira está profundamente carente de líderes que sejam guiados por valores.

FOLHA - Hoje o debate político brasileiro está centrado no pré-sal. O sr. acha que esse petróleo pode atrapalhar a consolidação de um modelo de desenvolvimento sustentável?

PÁDUA - As descobertas do pré-sal chegaram em um momento histórico complexo e bastante ambíguo. Os combustíveis fósseis ainda dominarão o consumo energético global por um período considerável, mas existe um consenso crescente sobre a necessidade crucial de se fazer a transição mais rápida possível para uma economia de baixo carbono. Só que essa transição não se dará de uma hora para outra, apesar de não poder mais ser adiada. Ou seja, ela precisará envolver um processo claro e acumulativo de mudança nos padrões dominantes de produção e consumo.

Não se trata, como se imaginava nos anos 1970, de um esgotamento das reservas de combustível fóssil, mas da impossibilidade de continuar utilizando-as no longo prazo. As reservas de carvão mineral, bem mais que as de petróleo, ainda são muito grandes. Só que uma regressão do petróleo ao carvão seria uma verdadeira tragédia climática. O petróleo do pré-sal, portanto, será um empecilho ao desenvolvimento sustentável se servir para reforçar o conservadorismo político e econômico, estimulando a pertinência no erro da economia de alto carbono. Mas é possível, além de politicamente realista, imaginar uma utilização que seja cuidadosa, precavida e conscientemente situada em um contexto de transição ecológica. A ênfase estaria em utilizar esses recursos para promover os avanços educacionais, tecnológicos e sociais necessários para a economia limpa do futuro, para a construção de um modelo sustentável de país. A proposta do governo, em seus traços gerais, não se choca com essa visão. Mas é preciso que a sociedade esteja atenta, pois entre a retórica e a prática pode existir um verdadeiro abismo.

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