segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Entrevista – Luís Werneck Vianna

Por Andrei Koerner e Giselle Citadino

Entrevista concedida por Luiz Jorge Werneck Vianna ao Boletim da Associação Brasileira de Ciência Política. Professor titular do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), coordena o Centro de Estudos Direito e Sociedade (CEDES) daquela instituição e integra o Conselho Consultivo do Departamento de Pesquisas Judiciárias, do Conselho Nacional de Justiça. Sua vida acadêmica tem sido dedicada a uma temática múltipla, que inclui democracia, judicialização da política e das relações sociais, sindicalismo, corporativismo, intelectuais brasileiros e pensamento social brasileiro.

Como o senhor chegou ao doutorado na USP? Gostaríamos de ouvi-lo sobre sua trajetória universitária, os caminhos de sua dupla formação, em Direito e Ciências
Sociais.

Sou como todos da minha geração. A primeira marca, para quem nasceu em 1938, é ter vindo ao mundo em meio a um conflito mundial daquelas proporções. Começo a perceber o mundo de forma consciente e que ainda tinha ruídos da Segunda Guerra. Havia blecaute, e, na minha vizinhança, uma pessoa, provavelmente de origem alemã, que ouvia em volume alto entrevistas radiofônicas alemãs. Era um ambiente em que havia presente este elemento de suspeita, de risco, de guerra. Além desta situação houve também o processo de democratização do país em 1945. Tudo isso, portanto fez parte da minha vida. Eu diria que, primeiro, esse foi um acontecimento que exerceu influência sobre mim, e que venho ao mundo muito orientado pela política.
Há também a política de Getúlio, e até mesmo a própria literatura infantil da época,que era altamente politizada, como Monteiro Lobato, de quem eu era um leitor absolutamente voraz. São dele alguns valores, dos sistemas de orientação que foram tomando forma em mim, como o horror à burocracia, ao Estado, àquilo que nos impede de entrar no território da liberdade. E um pouco mais à frente, o tema do petróleo e o segundo governo de Getúlio Vargas vão me encontrar adolescente. Estes são fatos que marcaram muito a minha geração.
Eu era de Ipanema, bairro de classe média para alta, dependendo das ruas e dos lugares,embora minha família certamente não fosse de classe média alta. Nós tínhamos certas dificuldades financeiras, meus pais eram separados, e minha mãe teve que enfrentar a vida sozinha. Mas Ipanema era sobre tudo um lugar anti-getulista, militantemente anti-getulista.
Este era o sentimento daquela população e eu adolescente, com essa inclinação natural para a política, que não vinha de fato da minha família, já que na minha casa ninguém era orientado tão fortemente. Meu pai havia sido militante do Partido Comunista, mas eu não vivia com ele.
Lembro-me do suicídio do Vargas, que foi um divisor. Eu me recordo exatamente a hora que liguei o rádio e comecei a ouvir a carta testamento deixada por ele e como aquilo me deixou marcas profundas. Conversando, mais tarde, com colegas, descobri que esta experiência foi a mesma, todos eles sentiram que alguma coisa tinha mudado em suas vidas a partir daquele acontecimento. Então, por um lado, tinha esta prática de ficar colado no rádio ouvindo o noticiário político; por outro havia as leituras, erráticas, sobretudo de ficção.
Era uma literatura libertária que exerceu enorme influência sobre mim. Autores que ninguém mais lê, mas que tinham grande expressão na época, como Erich Maria Remarque, Roger Martin du Gard, com suas histórias da guerra, com seus heróis libertários e opiniões anti-guerra. O herói do romance-fleuve, Les Thibaud, de Roger Martin du Gard, morre jogando panfletos pacifistas nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial. Eu andava com essa fabulação na cabeça. E também de outras leituras. Eu lia muito também os autores russos, eu tinha uma paixão enorme pela literatura russa, principalmente por Dostoievski. Ele, e Monteiro Lobato, foram as duas traves da minha formação, ele foi para a minha adolescência o que Lobato foi para a minha infância. Depois de adulto não li mais Dostoievski, eu o reli há pouco tempo, mas não gostei tanto. Na época ele me punha num mundo que eu sentia como meu. Essa identidade não era apenas pessoal. Havia uma forte proximidade da intelligentsia brasileira com a literatura russa, como em Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz.
Essas, mais algumas outras leituras e o clima da época me fizeram um jovem romântico, intelectual de esquerda e, logo, de adesão comunista. Eu me tornei comunista antes mesmo de conhecer o partido ou qualquer comunista, por uma “partenogênese” pelos livros e pela cultura da época, a libertação do nazi-fascismo, e todas aquelas informações difusas que existiam.

Na época o consenso internacional da esquerda era em torno do Partido Comunista?

Era, mas na coleção de adolescentes a que eu pertencia, meu comportamento era absolutamente atípico A atipicidade se manifestou quando o colégio que eu estudava se recusou a renovar minha matricula. Ao indagar sobre os motivos, foi-me dito que os pais dos meus colegas haviam se reunido e achado que eu era uma influência negativa para seus filhos. Eles não gostariam que seus filhos convivessem comigo. Fui lá contestar, com o diretor do colégio, suas razões, e ele me indagou: “você é ou não comunista?”. Eu disse que era, na verdade eu não era de fato, pois eu tinha 15 anos, mas era. Não conhecia muito e depois desse episódio comecei a procurar a conhecer, conheci e acabei me vinculando. Fiz minha história pública no interior do Partido Comunista, que foi a minha grande universidade, a universidade de fato, a que me forjou como intelectual.

Com quantos anos o senhor foi para o Partido Comunista?

Eu fui mais tarde, com 18, 19 anos porque ele não existia, principalmente em Ipanema.

Com 17, 18 anos o senhor já estava na Universidade?

Não, eu entrei um pouco depois, com 19 anos. Eu fiz o CPOR... Eu cheguei à academia par défaut, porque não havia lugar na vida pública para a minha inscrição. Eu não chegaria à academia por vocação.

Então a militância política antecede o compromisso acadêmico?

Antecede. Eu entrei na vida acadêmica porque tinha que ter uma profissão e escolhi Direito por uma razão muito simples: porque pertencia ao gênero masculino. Eu queria era fazer Letras, mas na época essa era uma carreira feminina. Eu precisava enfrentar a vida. Precisava de uma profissão que me garantisse um lugar afirmativo no mundo. Fui fazer Direito para ter uma profissão e passei a exercê-la muito precocemente.

O senhor se formou na Faculdade Nacional de Direito?

Não, eu me formei na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).

O senhor exerceu a profissão em qual área?

Advocacia na área penal. No primeiro ano da faculdade, comecei como estagiário em um escritório, onde fiquei os cinco anos de formação, o que me desencantou com o Direito, especialmente nessa área. Nessa época, se praticava o Direito com a legenda de que “advocacia é talento”, uma profissão “poética”, “boemia”. Eram pessoas que rondavam a noite. Cheguei a ter alguma circulação entre eles, eram homens cultos e talentosos, sem dúvida. Mas era uma atividade artesanal, narcísica, especialmente porque o Direito penal era basicamente júri. Eu fiz muitos júris, desde quando era estudante, como estagiário. Naquela época havia uma fase na carreira, a partir do quarto ano, em que você era “solicitador”, e podíamos participar de uma série de atos. Mas enfim, logo que saí do escritório onde trabalhei na minha graduação, montei outro, com uns colegas. Então comecei a me ver, durante as tardes, lendo sobre temas sociais, interpretações do Brasil, que eram os temas da época. E não trabalhando.

E quando o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) entra na sua vida?

O ISEB exerceu grande influência sobre minha geração. Eu acabei indo estudar lá. O ISEB se constitui na época do Juscelino Kubitschek, em que o Ministro da Educação era Cândido Mota Filho, um ex-integralista. Era a realização de um velho ideal dos integralistas, que era derivado de uma idéia de Alberto Torres, de mudar o país pela educação, por uma intelligentsia de escol que iria descobrir os caminhos.

Qual era a sua percepção do meio jurídico, como estudante e depois profissional do Direito, e comunista? Como a faculdade e os profissionais do Direito viam o pensamento de esquerda e a militância?

Não havia muita, não. Eu tinha colegas que compartilhavam comigo um apoio, mas era uma seção do partido.

Havia alguma influência ou referência intelectual?

Não, a grande referência intelectual da minha faculdade era um homem pelo qual eu tinha profunda distância; que era Roberto Lyra, cujas aulas sempre terminavam em ovações.
Entretanto, eu não gostava de seu estilo e do seu tipo de análise, era um positivista.Mas eu me desencantei com o Direito e fiz fui fazer Ciências Sociais no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mas voltemos ao ISEB...
O ISEB foi decisivo. Eu tive dois encontros intelectuais muito significativos: um foi com o ISEB. O outro, com o Centro Popular de Cultura (CPC). No ISEB, fomos motivados a estudar o Brasil e a confiar na história brasileira, nas suas singularidades e possibilidades. As aulas eram numa sala grande, na sede da rua das Palmeiras. Mas se você não chegasse na hora, tinha que ouvir a aula no jardim, transmitida por alto-falantes. Os estudantes assistiam aquelas aulas num clima de unção, eram aulas dadas por Werneck Sodré, Vieira Pinto. Mas o Hélio Jaguaribe, o Guerreiro Ramos e o Cândido Mendes já não estavam mais no ISEB, quando eu fiz o curso, em 1961. Estavam ainda lá o Roland Corbisier e o Cândido Motta. Havia um projeto de intelligentsia cultivada para mudar o Brasil.
Com o CPC, quando eu os conheci, eles estavam começando as atividades, vi a
possibilidade de traduzir para as coisas concretas, práticas e vitais, todo o sistema de orientação e de valores que eu tinha na cabeça. Tínhamos o espaço, o dinheiro e a juventude. Em três anos, o CPC fez uma revolução no Brasil. Fomos criando núcleos por todo o país, eu era um dos responsáveis pela difusão do projeto do CPC. Criei núcleos em várias faculdades e sindicatos, como o Sindicato dos Metalúrgicos e o dos Têxteis. E também o projeto de alfabetização para as favelas. Naquela época favela era um lugar inteiramente pacificado, não havia domínio de crime, e havia organizações de esquerda atuando lá. O Partido Comunista tinha bases nas favelas, nós chegávamos com toda uma
articulação partidária. A igreja também chegava, através da AP. Éramos os “rapazes do PC” e as “moças da AP”, elas eram mais numerosas que nós, e muito ativas, e elas continuaram atuando junto com a teologia da libertação, como quadros da Igreja católica. A mais célebre era a Ana Guerra, ela era a referência, mas eu não sei onde ela se encontra hoje. Enfim, a nossa geração, que tinha uma história recém-saída da Segunda Guerra, do getulismo, das lutas nacionais e das reformas, foi talhada em 1964.

Mas e antes dos acontecimentos de 1964? O senhor possui uma trajetória marcada por aliar teoria e prática. Essa ação acadêmica e a intervenção política no partido. Esse duplo compromisso era uma característica dos intelectuais da sua época?

Não. Acho que na minha geração esse perfil começou a se instituir, no CPC por exemplo.

Era uma aposta partidária ou iniciativa mais ampla?

Não vinha do partido, mas convergia com ele. Minha geração estabeleceu uma relação curiosa com o partido. Nós achávamos o partido fraco, pois em vez do partido exercer uma ação tutelar, orientadora, sobre nós, ele era o lugar que nós confiávamos como a nossa representação, pela sua história e pela sua luta, mas não confiávamos como orientador político. A orientação política era nossa. Essa era uma marca da minha geração, de outros colegas, é só pensar em alguém muito representativo, como o Oduvaldo Vianna Filho.

Qual literatura lhe encantou no início da sua formação em Ciências Sociais?

A gente lia muito Celso Furtado, Nelson Werneck Sodré, Rui Facó, Vieira Pinto, que foi a grande referência intelectual da época. Embora nós pudéssemos discordar totalmente dele, dada a sua perspectiva intelectual “idealista”, como dizíamos na época. Enfim, era uma literatura sobre Brasil.

E Marx?

De Marx não se lia “O Capital”. Mas o “18 Brumário”, “Luta de Classes na França”, “O Manifesto Comunista”.

Quando o senhor diz que o partido foi sua verdadeira universidade, está falando no sentido figurado ou no sentido de formação de leituras?

De leituras, não. O partido era o lugar de um seminário permanente, no sentido de que se procurava traduzir, em práticas, aquilo que se pensava. O tempo todo, nós procurávamos identificar os caminhos para a realização daqueles objetivos.

No sentido de uma influência intelectual?

Não. O único que talvez começou a exercer certa influência intelectual sobre mim foi o Mario Alves, que era uma pessoa muito preparada, um estudioso, mas isso logo foi interrompido porque ele passou a ter uma adesão muito esquerdista e isso foi isolando-o, até que ele sai do partido para formar o PCBr e vai morrer na tortura, de maneira atroz. Ele era uma pessoa muito particular, vivia estudando, e procurava nos mobilizar muito para o estudo. Não era a alta cultura, que, aliás, era vista como uma coisa “burguesa”. É só ver a ópera, “O Auto dos 99%” do CPC da UNE, que satiriza a alta cultura da época, a psicanálise, a arquitetura (“A arquitetura? A arquitetura é uma loucura!”). É uma obra muito curiosa.
Essa busca por uma inserção na cultura popular é relacionada com a teoria de Gramsci.

Nesse momento o senhor já tinha lido Gramsci?

Não. Gramsci não tinha chegado, ele chega a nós após o golpe. A primeira vez que eu ouvi falar dele foi de um intelectual do partido, negro e favelado, cujo nome era “Edgar”, que viveu anos na clandestinidade e começou a usar umas explicações “estranhas”, baseadas na leitura de Gramsci. Ele frequentemente trazia outras obras, como o Ocaso do Império, do Oliveira Vianna e insistia para que lêssemos.

A leitura daqueles considerados os clássicos brasileiros também começou nessa época?

Não, fomos ler tudo isso mais tarde. Fomos repaginar depois de 1964, especialmente aqueles que considerávamos na mesma posição.

Então, pensar o golpe 1964 representa um momento crucial?

É. Nós ficamos aturdidos, sem entender, vagando, procurando uns aos outros, tentando formular explicações, compulsivamente. O mundo caiu, inteiro, e a questão era como viver neste mundo que apareceu e nós não sabíamos explicar o que tinha acontecido. Sobretudo nós não tínhamos ainda lucidez, coragem, capacidade de análise para dizer que fomos nós que armamos aquele desastre; este desastre não veio sem nós. Isso demorou, mas é neste processo de descoberta dos nossos erros, que eu faço minha identidade intelectual, como filho de mim e não das minhas circunstâncias, eu nasci aí. Basicamente, a minha data de nascimento está na reunião em que, 40 anos atrás, eu disse: “vem um novo Ato e é necessário tomar providências para nos defendermos desse plano”. Dias depois veio o AI-5.
Nesse momento, eu havia entendido a trama do que estava acontecendo. Ficava claro que tínhamos que começar a interpretar, de verdade, o que tinha acontecido em 1960. No meu caso, isso me levou a uma outra missão, a de interpretar 1930. Os dois momentos, o do primeiro Estado Novo e este “novo” Estado Novo, que estava ali. Esta necessidade acudiu a intelligentsia, de liberais a marxistas. Foi o caso do Simon Schwartzmann, no “Bases do Autoritarismo Brasileiro”, do Raymundo Faoro, no segundo momento da sua obra e da Elisa Reis. O problema não era entender as circunstâncias de 1964, mas compreender as circunstâncias da formação do capitalismo autoritário no Brasil. Vai se estabelecer uma grande clivagem onde uns vão identificar a gênese dessa questão no Estado, como Faoro e Simon, e outros que vão olhar mais e melhor para o tema da sociedade, em particular, o tema agrário – como a Elisa, eu, Otávio Velho e Luciano Martins. Este é o momento da plena conversão daquele político mais ligado à prática da vida para o intelectual orgânico. Mas onde a atividade intelectual se constitui como um instrumento político mais eficaz. Eu fiz a minha tese escondido...

O senhor chegou a ir para o Chile?

Vou, volto e sou preso. Da prisão vou para São Paulo. Lá, me vinculo ao doutoramento da USP e depois fui ser professor na Unicamp, em 1974, 1975. Então sou surpreendido com a repressão de 1974 em São Paulo, que pegou todo mundo. Eu tive sorte, porque não sei se eles iam me matar. Na primeira vez, fui preso uma semana depois de eles terem matado o Stuart Angel. Foi minha sorte, pois eu não sabia que o Stuart estava preso, não sabia quem era ele e nem que tinha falecido, mas percebi um clima de nervosismo, especialmente quando eles estavam “mexendo” comigo e desconfiaram que estava passando mal. Notei muita preocupação. Se eu tivesse sido preso pela segunda vez, não sei o que ia se passar comigo. O fato é que tive que correr com as primeiras sete páginas da minha tese, com os meus livros numa sacola de feira.
Neste momento fui acolhido na casa do Paulo Pontes, que naquele momento estava redigindo a peça Gota d´Água. Ele tinha construído no apartamento dele um quarto falso especialmente para receber pessoas neste tipo de situação. E eu comecei a trabalhar. Eu pensava que eles queriam acabar comigo, pois de certo modo tinha reconstruído minha vida, estava dando aula em Campinas. Mas decidi “eles não podem acabar comigo”, eles não vão conseguir. Naquele momento, em 1975, eu achava que a ditadura iria durar muito tempo, “até o fim do milênio”. Em fevereiro de 1976 defendi minha tese.

Mas como o senhor defendeu? Estava escondido? Teve alguma garantia?

Não, depois da morte do Herzog, em 1975, a coisa mudou. E o Francisco Weffort, que era meu orientador, montou uma banca de defesa com Celso Lafer e outros intelectuais liberais, para mostrar que não era uma banca de esquerda. É claro que, por não ser uma banca de esquerda, a coisa complicou na hora da argüição.

Depois de 1976 o senhor não teve mais de ficar na clandestinidade?

Não. Fui, a partir de então, recuperando a vida. E o país começou a distensão.

Na sua tese já existe a necessidade de compreender as transformações de longa duração, ou seja, esta constituição de um corporativismo, da regulação autoritária do mercado de trabalho? O conceito de revolução passiva o senhor já utiliza plenamente, não é mesmo?

Sim, começamos a captar o argumento do Gramsci no final dos anos 60. A primeira leitura do Gramsci era um deslumbramento. Conforme ia lendo, ia se concordando. Foi uma persuasão imediata.

Ao longo de 25 anos existe um processo de reconversão da maneira como o senhor vê a revolução passiva. Em que momento o senhor percebe a transformação molecular, vinculada ao processo da democratização das instituições políticas?

Para mim era a mesma coisa. No curso da luta pela abertura havia duas estratégias muito bem definidas. Primeiro, era a da auto-reforma do antigo regime. A outra era a de uma reforma de verdade, era fazer com que o processo, que estava em curso, significasse uma erosão, um desmonte, uma derruição da ordem autoritária. Para isso o Gramsci servia como uma luva, era o tema da “sociedade civil”, de “agências privadas de hegemonia”. Era a consciência da importância da luta eleitoral, institucional, a valorização do MDB, o significado que foi a vitória eleitoral do Quércia, nas eleições de 1974, disputada com Carvalho Pinto, em São Paulo. E também havia a nossa contraposição com a esquerda que defendia a luta armada. O nosso projeto era “o povo organizado derrota a ditadura”, não era a derrubada, mas a derrota da ditadura, de clara inspiração gramsciana.
Conquistar boas instituições era dar passagem a este processo societal que germinava, era ele que devia passar, era ele que ia mudar, transformar. Nossa grande expectativa residia na democracia representativa e nas instituições político-liberais, que nós íamos encher de vida com a mobilização latitudinária que tinha ocorrido nas décadas recentes, culminando com as “Diretas Já”. Além disso, já estava presente o sindicalismo forte, como o do ABC – houve greves dos trabalhadores agrícolas em Itanhaém, no interior de São Paulo, na construção civil em Belo Horizonte e em Brasília. Era um despertar, toda uma energia que era necessária levar para o interior da esfera pública, uma estratégia habermasiana de adensar e fazer avançar.
Há um elemento de revolução passiva nessa concepção habermasiana da soberania como procedimento. Contudo, fomos surpreendidos pela solução que o constituinte deu, onde ele deixou tudo isso presente, fortalecido, mas abriu outra alternativa, que foi a da via judicial – um espaço publico que o país não conhecia. E mesmo as lideranças políticas, como Ulysses Guimarães e Tancredo não ambicionavam.

Qual era sua atuação neste momento de transição para a Constituinte? O senhor estava no partido, atuava como jornalista?

Eu atuava como publicista. Tínhamos uma revista que procurava ser um lugar de vocalização dessa esquerda gramsciana, que éramos nós e havia sido derrotada. Mas isso leva a um tema paradoxal que merece que a gente se estanque e reflita. Por que a formação política que foi responsável pela estratégia vencedora – que foi a do Partido Comunista Brasileiro contra o regime militar – derrui? Essa é a questão que nós estávamos vivendo. Participamos juntos nesse processo, construindo esta política, a luta pelas liberdades, a afirmação do processo eleitoral, a luta política e não a luta militar, o caminho de massas, e não o caminho do pugilo de heróis. As coisas florescendo e possibilidades abertas para diante de nós com um discurso afinado para as circunstâncias e somos alijados do partido. Os eurocomunistas são alijados e houve abandono de lideranças significativas do próprio PCB. Davi Capistrano, que era uma liderança emergente da geração dele, foi para o PT levando com ele toda a sua geração, a da revolução sanitarista. O Davi foi uma das maiores lideranças da esquerda neste período. Enfim, o partido derrui, nós sobramos e vem o PT, com uma cultura declarada antípoda àquela que a esquerda realizava, que o Partido Comunista realizava, e que era contrária à era Vargas, à legislação sindical trabalhista, à questão nacional. Nós sabemos como estas coisas andam evoluindo e que hoje o PT é o partido que continua a era Vargas, a legislação sindical trabalhista e que levanta a questão nacional.
Ótimo que tenha sido assim, mas os indivíduos foram liquidados e isso leva a pensar “que país é esse em que para passar os processos é preciso liquidar aqueles que os conceberam, que começaram a ativá-los?”, “que máquina de moer carne que é este país?”. Os processos não são escorreitos, porque eles não passam por partidos definidos ou por movimentos definidos, eles são erráticos e isso tem a ver com a natureza da revolução passiva, se você olha e explora bem o significado desse movimento, essas decapitações, essas cooptações de massa que os processos passivos de revolução proporcionam em que os indivíduos são impiedosamente liquidados. Agora mesmo, no próprio PT, lideranças são liquidadas impiedosamente, enquanto o processo passa, mas passa sem a energia, sem a riqueza, sem a sedimentação. E, nessa forma de andamento, perdendo cada vez mais energia. Este problema tornou-se um problema do país.
Aliás, não estou falando mais em revolução passiva sozinho há muito tempo. Enfim, o tema da revolução passiva no Gramsci é absolutamente enigmático. Literalmente, ele condena a revolução. Este é o sentido da operação dele. Porém, ele chama a atenção para um outro lado, que não teve como explorar pelos próprios limites da sua própria posição – ele é um homem da Terceira Internacional. Como a ordem burguesa se impôs no mundo? Pela restauração, ele vai dizer. A Revolução Francesa começou de uma forma catastrófica, mas com o processo, ela se universalizou de forma passiva. Em 1917, ele deixa cair, preguiçosamente, sem explorar “não será mais um desses momentos em que dada a força dos sindicatos no mundo hoje, a força do Parlamento, dos setores subalternos, as novas expressões, será que isso aponta para um processo afim àquele do domínio burguês?” Este é um ponto. O outro é quando ele, analisando o Risorgimento, diz que quem ganhou foi o Cavour. Ele foi suficientemente hábil e clarividente para assumir o ponto do outro, o ponto do Mazzini. Este restou apenas um apóstolo iluminado. O que o Mazzini não soube fazer? Ele não soube aproveitar as circunstâncias que eram efetivamente adversas para montar um sistema de recuo de defesa que lhe permitisse impor determinados limites à vitória de Cavour. Cavour não precisava ganhar tanto se Mazzini não fosse um apóstolo iluminado.
Então eu pensava no caso do MST, e dizia que o movimento é o melhor praticante da forma de revolução passiva que existe no Brasil. Primeiro, só atuava, na época, diante de propriedade fraca, diante de propriedade vulnerável. Atua no marco legal, num movimento de avanço e recuo e com avanços graduais, jogando sempre “no campo do adversário”.
O salto mortal é bom, mas, e daí? E o caminho do Direito, das instituições do Direito, de seus procedimentos, o que têm a ver com isso? É um mapa novo para o qual temos história...

O senhor começou com o convite da AMB para fazer a pesquisa sobre o Judiciário. Foi aí que o senhor voltou a se interessar pelo Direito?

É. Já tinha explorado o Direito em 30, quer dizer, olhando bem eu estou trabalhando com o Direito há muito tempo. Antes de Liberalismo e Sindicato no Brasil, está um artigo chamado “Sistema Liberal do Direito do Trabalho” que saiu na revista do CEBRAP, onde está a prefiguração teórica da tese.

No último capítulo de “Liberalismo e Sindicato no Brasil”, o senhor fala do liberalismo comunitário após 1946, que atribui uma função social ao empresário para alcançar o bem comum. Então, tanto o trabalhador quanto o empresário são instituídos com funções públicas, e, em seguida, afirma que “ não seria mais o Estado, mas o Direito que irá regular essas relações na nova ordem”. Porém, na seqüência do livro o senhor faz uma leitura da desmontagem desse sistema – pós 64. Parece que existem nesse seu livro pontos que poderiam remeter à formação de uma tradição comunitária do Direito brasileiro já a partir daquela época?

Eu acabei fazendo uma linha reta no meio de um ziguezague. Quando você olha o fim do processo, se torna uma linha reta. Só consegue se perceber no final. O tema do Direito, a esta altura, não é apenas de relevância nacional e sim mundial.

Foi uma surpresa para o senhor o contato com os Juízes?

A minha estratégia com eles foi a de fazer junto. Então, nós nos reuníamos semanalmente, durante dois anos, e nos tornamos amigos. Mantivemos uma relação próxima com eles, que nos permitiu fazer prospecções de natureza intimista, em que fomos entendendo que tipo particular de burocracia eles são. Então, quando fizemos o questionário e começamos a analisar, nós tínhamos também uma etnografia vivida. Tivemos também a felicidade de encontrar a pesquisa de um francês, Jean-Luc Bodiguel sobre o magistrado francês, que nos ajudou muito. Aliás a conclusão que ele chega sobre a magistratura francesa foi a mesma que chegamos sobre a brasileira, de que é um personagem comum, um burocrata, com virtudes, defeitos... Mas que agora envolvido numa situação ruim. O Judiciário foi o último poder a passar pelo processo de transição da ditadura para a democracia. E isso foi feito a ferro e fogo pela mídia, pelas denúncias e pelos escândalos. E também, na época, com uma direita procurando cercear o Judiciário, especialmente como o tema das privatizações, controle externo. Meu convencimento é que precisamos de um Judiciário autônomo de verdade, essa é uma conquista “inarredável”, como acho também uma conquista “inarredável” o tema da integridade dos direitos, não podemos abrir mão disso, não tem direito achado na rua, não tem direito alternativo...
Mas a discussão sobre o direito achado na rua e o direito alternativo é da época da ditadura. Depois da Constituinte, essa discussão torna-se marginal nas Faculdades de Direito...
O Direito é esse que esta aí, que vem dos gregos, dos romanos, das revoluções de 1789 de 1917, dos tratadistas, das práticas sociais vencedoras. Enfim, o que foi selecionado pela história do homem. Esse é o Direito.

A imagem que se tem desse Judiciário é que ele se tornou rígido, fechado sobre si mesmo, mais aristocrático, no mau sentido. Cheio de formalismos. Quando faz a pesquisa, o senhor pega exatamente o momento do início de transição. Foi surpreendente ter encontrado estas figuras?

Foi, a gente teve várias surpresas. E também a convicção de que eles precisam se resguardar, seu papel implica num personagem em particular.

O seu trabalho alia uma interpretação do Brasil a uma concepção normativa de democracia, da Constituição e do papel dos juízes e do prática do Direito. Este é um argumento muito forte para o seu principal destinatário, que é o próprio profissional do Direito, esse indivíduo que não tem uma percepção da sua importância nesse processo. O senhor hoje, de alguma forma, resgata aquele trabalho do CPC? Porque, além da pesquisa sobre Judiciário, a publicação dos trabalhos e livros, há uma certa militância política, junto aos juízes, que tem feito nesses últimos anos, que é um pouco o CPC renovado.

Sem dúvida, junto aos movimentos sociais também. As atividades têm tido uma boa recepção pelos profissionais do Direito e dos juízes, com efeitos multiplicadores nas suas regiões. E mesmo receptividade por parte de membros de tribunais superiores. Nós procuramos alcançar também movimentos sociais, líderes comunitários. Fizemos vários seminários, de que participaram muitas pessoas. Recentemente, fizemos uma discussão sobre o tema do usucapião coletivo. E essas ações tem tido algum êxito, o tema do Direito está no debate atual, sobre o estatuto da cidade.

Poderia falar um pouco sobre o CEDES (Centro de Estudos Direito e Sociedade)?

Ele nasceu primeiro da tentativa de continuar a fazer política com a corporação. Segundo, de aproximar a corporação de outros personagens da Ciências Sociais e da vida popular, enfim um objetivo ambicioso. No começo, tivemos algumas iniciativas bem sucedidas, mas de forma minimalista conseguimos estabelecer uma rede, que a gente consegue ver pelo tipo de recepção que temos, e em que cidades somos lidos. Fazemos reuniões com juízes e líderes, publicamos um boletim.

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