terça-feira, 8 de setembro de 2009

Figuras da eticidade

Paulo Meneses, S.J.
DEU EM GRAMSCI E O BRASIL

A seriedade, a dor, a paciência e o trabalho do negativo. Fenomenologia. Prefácio, § 19.

Essa frase de Hegel nos leva a buscar situações — ou figuras — que são valorizadas pela presença do negativo, isto é, em que o negativo faz parte da sua estrutura.

Podemos buscar mais longe no tempo, na figura da esperança, que para Aristóteles e S. Tomás se situa no apetite irascível e se caracteriza pela negação do obstáculo que se opõe à sua realização.

Na mentalidade moderna, a tão falada tolerância é, no fundo, “uma negação da negação”, como já era a esperança, pois seu movimento se destina a destruir a intolerância (que é sempre primeira ou a atitude primária), que desejaria “proibir de ser” o outro. Parece muito pouco, mas é fundamental: as nações, classes e culturas estão ainda longe de admitir o outro, de renunciar a eliminá-lo pela violência ou a extirpar sua alteridade, fazendo-o à imagem e semelhança do mesmo.

Hegel desenvolve na Fenomenologia “as três figuras da moralidade”, que, todas, se situam no embate entre a consciência moral do indivíduo e o curso do mundo, que não parece corresponder à lei do coração (§§ 360-393). Luta inglória e, no fundo, contraditória e autodestrutiva.

Sem forçar o paralelismo, talvez pudéssemos dizer que temos aqui “figuras da eticidade”, onde já no “elemento” do Espírito a negatividade destrói os obstáculos para que ele se manifeste, elimina as barreiras para que um “Nós” se constitua: o princípio da esperança abre as cortinas do futuro e da generosidade; a tolerância cria as precondições para que o outro seja aceito e respeitado.

A esperança

Vamos falar primeiro da esperança: tarefa difícil depois das palavras geniais de Péguy. Que força é essa que lança pontes sobre os maiores abismos do desespero, que faz surgir a luz nas trevas mais densas, que transforma a fraqueza em energia, o desânimo em coragem? De onde vem ela? Certamente do mais íntimo do ser humano, de sua vontade de ser, de sua aposta de que a vitória é possível, porque é necessária. O obstáculo, o mal jamais será mais forte do que nós: não passa de um desafio que tem por efeito mobilizar nossas forças para superá-lo.

Hegel é visto como o filósofo que se volta para o passado, porque tomam a metáfora da coruja — que só levanta voo no crepúsculo — como a síntese de toda a filosofia hegeliana. Mas isso é esquecer sua filosofia da história, que é movida pela ânsia da liberdade e tem como sentido sua realização sempre mais plena. Por trás das aparências e decepções presentes, esse dinamismo trabalha como uma “brava toupeira”, indo na direção certa — na direção da luz. Podia-se dar um exemplo recente desse trabalho de toupeira da liberdade: os horrores da era nazista deram ocasião a uma nova mentalidade, que tornou a ordem democrática e os direitos humanos uma aquisição definitiva para a consciência social na atualidade.

Em Hegel, encontra-se ainda radicalizado esse “obstáculo”, que, para S. Tomás, era a condição (e a luta) da esperança. Aqui, o obstáculo não é algo externo, mas é a força da negação contra a qual se debate o Espírito e, quanto mais parece naufragar ante essa potência, maior é sua vitória. Dois textos ilustram essa dialética:

Fenomenologia, § 340: “O Espírito é tanto maior quanto maior é a contradição da qual retorna para si mesmo”. Essa é a esperança hegeliana, que se mostra mais vitoriosa na medida em que o obstáculo — que a afeta como contradição — é por ela superado no seu retorno a si mesma. Para além da imediatez do positivo bei sich, essa esperança é uma conquista de si mesma, mediada pela passagem forçada do poder da negação.

Fenomenologia, § 32: “A vida do Espírito não é a vida que diante da morte se apavora e se conserva intacta da devastação; mas é a vida que a suporta e nela se conserva. Sua verdade, ele somente alcança no dilaceramento absoluto. O Espírito não é essa potência como o positivo que foge do negativo, mas é essa potência só enquanto encara frontalmente o negativo, demora-se (e mora) junto dele.É esse demorar-se o poder mágico que faz o negativo virar ser”.

Veja-se como são fortes as expressões: esse obstáculo, longe de ser algo externo, é “devastação”, “dilaceramento”; e o Espírito tem de “demorar-se” junto ao negativo. Ainda mais: trata-se de um análogo da “criação ex nihilo”, pois tanta é a criatividade do Espírito que faz jorrar essa irrupção do ser a partir da “devastação”, do “dilaceramento”, que nele produz o negativo. Mas é a força da esperança encarar isso sem medo e, demorando junto a ele, fazer, por seu poder mágico, o nada virar ser.

Estamos em pleno campo da eticidade: essa esperança não é um anelo da “bela alma”, uma fuga da realidade dura em busca de utopias consoladoras, mas é toda voltada para um corpo a corpo com o mundo real: “A força do espírito só é tão grande quanto sua exteriorização: sua profundeza só é profunda na medida em que ousa expandir-se e perder-se em seu desdobramento” (Fenomenologia, § 10).

Assim, ficaram longe as três figuras da moralidade (§§ 360 a 393): saímos daqueles lagos de subjetividade para o alto mar da eticidade, da efetividade.

Essa esperança, que nada tem a ver com a utopia, é a que perpassa o sistema hegeliano. Na expressão vulgar, consiste em “tirar leite das pedras” e, na verdade, mergulha até o fundo do negativo para daí operar a reversão dialética rumo ao ser, à efetividade.

A tolerância

A concepção da tolerância é dificultada pela atitude do entendimento classificador, que não capta sua natureza dialética devido a seu viés de tudo reduzir a “instantâneos”. Na verdade, a tolerância não é uma atitude indiferente e anódina, mas uma “negação da negação”: tem um componente “beligerante”, consistindo em voltar-se contra a intolerância, que é uma rejeição da alteridade e, no fundo, uma tentativa de “proibir de ser” (Paulo Freire) o outro, quer eliminando sua existência, quer destruindo sua alteridade. A tolerância estabelece esse direito de ser do diferente e rejeita essa rejeição.

A tolerância é um conceito histórico surgido com a modernidade e as Luzes, numa luta violenta com a intolerância dominante. Polemistas irados como Voltaire e Locke travaram uma batalha desigual contra a intolerância que reinava nas instituições e nas mentalidades. Essa “beligerância” caracterizou desde o início a defesa da tolerância, que exige não só uma morna resignação — como quando se fala de “casas de tolerância” —, mas requer a abolição de qualquer atitude de estigmatização.

A primeira reação do mesmo frente ao outro não é o acolhimento nem muito menos o amor. A “dialética do senhor e do escravo” ilustra o paroxismo dessa oposição, que passa por uma luta de vida ou morte. De fato, é de vida e morte que se trata: enquanto houver povos massacrando raças, e religiões exterminando a vida dos diferentes, a própria diversidade de sexos dando lugar a assassinatos frequentes das mulheres, não se pode dizer que a tolerância está superada e que já está na hora de falar em atitudes mais acolhedoras da diversidade. O século 20 foi o século dos genocídios, e nada garante que o século presente vá ser mais humano.

Então, a tolerância começa por deixar que o outro exista, o que já é grande coisa quando em tantas partes do mundo continua a haver massacres de populações e, até mesmo nos países mais desenvolvidos, a vida das mulheres não está nada garantida dentro de suas casas: como se o movimento da libertação das mulheres tivesse estimulado ainda mais a sanha assassina dos machistas.

E ainda há outro passo a ser dado rumo à tolerância: não basta respeitar a existência do outro, é preciso respeitar também sua alteridade. Nem sempre a intolerância parte em guerra para eliminar o diferente; muitas vezes se contenta com extirpar sua alteridade, fazendo-o assumir as formas e a cultura do mesmo. Notável estratégia dos colonizadores esclarecidos e mesmo de missionários salesianos, que na Amazônia proibiam os índios tukano de falarem sua própria língua. Essa assimilação é muitas vezes buscada pelo oprimido para tirar vantagens da situação.

Descaracterizando-se na medida exigida pelo colonizador, salva-se talvez a vida, mas se perde a razão de viver e de ser: sacrifica-se sua própria alma. Grande parte de nossa juventude tem hoje a síndrome porto-riquenha, preferindo ser integrada no império, mesmo sabendo que nele vai ter uma posição discriminada de cidadão de terceira classe. É de notar como as elites dos países que constituíam a cortina de ferro têm hoje como ideal o neoliberalismo mais ortodoxo, voltando as costas para os tremendos problemas sociais de seus países. Como se vê, um fator ideológico acompanha esse tipo de colonialismo, segundo a frase de Rousseau: “Os escravos perdem tudo sob o jugo de seus grilhões, até mesmo o desejo de rompê-los”.

Pertence à tolerância, por seu caráter de “negação da negação”, essa beligerância em defesa de nossa identidade, esse apego cioso à nossa diferença, contrapondo-se a todo etnocentrismo (eurocentrismo, imperialismo) que atente contra nossa diferença constitutiva.

Uma luta sempre atual, que hoje tem de enfrentar a grande corrente midiática controlada pelas forças dominantes para “formar opiniões” alinhadas em favor da dominação, da desinformação, da descaracterização de nossa realidade.

Mas a tolerância, como a conceituamos, em sua característica dialética, tem a necessidade de ultrapassar-se, de ir além de si mesma. Vemos o que aconteceu no domínio político-religioso, que foi o primeiro campo de luta contra a intolerância. O que no início era simples tolerância da diversidade de crenças deu um salto qualitativo para a situação de hoje: o respeito de todas as crenças ou opiniões em nome da liberdade de consciência, que é admitida como uma evidência não só pelos Estados modernos, mas também pela Igreja Católica pós-conciliar. Existe, para falar como Hegel, um “instinto de razão” no íntimo da tolerância, que aponta para a igualdade efetiva e o reconhecimento do outro na sua diferença. Assim o próprio dinamismo da tolerância tem um núcleo positivo, e sua “beligerância”, uma vez negada a negação que proibia o outro de ser, tende para a positividade do respeito da liberdade e igualdade de todos.

A verdade da tolerância está no reconhecimento.

Paulo Meneses, S.J., filósofo, é o tradutor da primeira edição brasileira da Fenomenologia do Espírito (Vozes, 1999). Escreveu, entre outros livros, as Homilias na Unicap.

Um comentário:

  1. Foi muito bom reencontrar Paulo Meneses - de quem fui aluna no IBRADES há mais de 30 - nesse belo texto sobre Hegel. Parabéns ao Blog por tê-lo publicado

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