terça-feira, 15 de setembro de 2009

O mito da redução do Estado

Luiz Gonzaga Belluzo
DEU NO VALOR ECONÔMICO


Na edição de segunda-feira, 14 de setembro, a "Folha de São Paulo" publicou entrevista com a "especialista em desenvolvimento" australiana Linda Weiss. Ela proclama que a "a redução do papel do Estado na economia sempre foi um mito". Disso já sabia o celebrado historiador Fernand Braudel. Em sua obra maior, "Civilização Material e Capitalismo", Braudel escreveu: "o erro mais grave (dos economistas ) é sustentar que o capitalismo é um sistema econômico... Não devemos nos enganar, o Estado e o Capital são companheiros inseparáveis, ontem como hoje."

Em seu curso no College de France, oferecido entre 1978 e 1979, mais tarde publicado sob o título de "Nascimento da Biopolítica", Michel Foucault cuidou de examinar as condições da governabilidade nas sociedades de mercado. A certa altura, Foucault concluiu que a teoria econômica move-se num vazio institucional e histórico, enquanto a vida econômica dos homens concretos se movimenta numa ordem social economicamente regulada pelo direito "com base na economia de mercado". Não se trata de mercado ou Estado, senão de uma coisa e outra.

As reformas ditas liberalizantes não afastaram, de fato, o Estado da arena econômica, mas foram empreendidas, desde o crepúsculo dos anos 70 do século passado, com o propósito de mobilizar os recursos políticos e financeiros dos Estados Nacionais para fortalecer os respectivos sistemas empresariais envolvidos na concorrência global.

O Estado não saiu da cena, apenas mudou de agenda. Na esteira do apoio decisivo do Estado, as corporações globais passaram a adotar padrões de governança agressivamente competitivos.
Entre outros procedimentos, as empresas subordinaram seu desempenho econômico à "criação de valor" na esfera financeira, repercutindo a ampliação dos poderes dos acionistas. Aliados aos administradores, agora remunerados com bônus generosos e comprometidos com o exercício de opções de compra das ações da empresa, os acionistas exercitaram um individualismo agressivo e exigiram surtos intensos e recorrentes de reengenharia administrativa, de flexibilização das relações de trabalho e de redução de custos.

As estratégias de localização da corporação globalizada introduziram importantes mutações nos padrões organizacionais: constituição de empresas-rede, com centralização das funções de decisão e de inovação e terceirização das operações comerciais, industriais e de serviços em geral.
A cartilha neoliberal pretendia nos ensinar que a globalização nasceu de uma espantosa revolução tecnológica capaz de aproximar o homem do momento em que vai se livrar da maldição do trabalho e gozar dos encantos da vida cosmopolita. A microeletrônica, a informática, a automação dos processos industriais etc. prometem nos libertar das limitações impostas pelo espaço e pelo tempo. O indivíduo livre pode trabalhar em casa e se tornar, além de patrão de si mesmo, um partícipe da prosperidade universal. A globalização, associando tecnologia e transformação das formas de trabalho, realizaria essa maravilhosa promessa da modernidade.

Mas a realidade da globalização neoliberal foi outra. A individualização das relações trabalhistas promoveu a intensificação do ritmo de trabalho, conforme estudo recente da OIT e de outras instituições que lidam com o assunto. O trabalho se intensificou, sobretudo, entre os que se tornaram independentes das relações formais, os que negociam diariamente a venda de sua capacidade de trabalho nos mercados livres.

Isso aconteceu no mesmo período em que as novas formas financeiras contribuíram para aumentar o poder das grandes corporações nos parlamentos e nos executivos. As fusões e aquisições suscitaram um maior controle dos mercados e promoveram campanhas contra os direitos sociais e econômicos, considerados um obstáculo à operação das leis de concorrência. A abertura dos mercados e o acirramento da concorrência coexistiram com a tendência ao monopólio e, assim, impediram que os cidadãos, no exercício da política democrática, tivessem força suficiente para decidir sobre a própria vida.

Os neorreformistas, na realidade, cuidaram de transferir os riscos para os indivíduos dispersos, ao mesmo tempo em que utilizaram o Estado e sua força financeira coletiva para limitar as perdas provocadas pelos episódios de desvalorização da riqueza. A intensificação da concorrência entre as empresas no espaço global não só acelerou o processo de financeirização e concentração da riqueza e da renda como, ironicamente, incrementou a fúria legislativa do Estado em matéria econômica, o que, em consequência sobrecarregou os aparelhos judiciários. O acirramento da concorrência em todas as esferas multiplicou os conflitos entre empresas e entre estas e os trabalhadores.

Os empenhos do Novo Estado promoveram, ademais, a reversão das tendências à maior igualdade observadas no período que vai do final da Segunda Guerra até meados dos anos 70 - tanto no interior das classes sociais quanto entre elas. Na era do capitalismo "turbinado", financeirizado e "estatizado", os frutos do crescimento se concentraram nas mãos dos detentores de carteiras de títulos que representam direitos à apropriação da renda e da riqueza. Para os demais, perduravam a ameaça do desemprego, a crescente insegurança e precariedade das novas ocupações, a exclusão social.

O projeto da autonomia do indivíduo está inscrito no pórtico da modernidade. Significa a sua autorrealização dentro das regras das liberdades republicanas e do respeito ao outro. Opõe-se à submissão aos poderes, públicos e privados, que o cidadão não controla. A disseminação das formas mais agressivas de concorrência, fomentadas pela nova configuração de funções do Estado, encontra débil resistência em seu trabalho de reduzir os "conteúdos" da vida humana às relações dominadas pela expansão do valor de troca. Mas pode se tornar intolerável para os indivíduos a sensação de que o seu quotidiano e seu destino são governados pelas tropas de uma "racionalização" sufocante, destruidora do projeto de uma vida boa e decente.

Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, escreve mensalmente às terças-feiras.

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