sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Sem cartas ao povo brasileiro

Maria Cristina Fernandes
DEU NO VALOR ECONÔMICO


Não cabem numa letra as mudanças no presidente que um dia quis desmontar na CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas) e hoje quer emplacar a CLS (Consolidação das Leis Sociais).

Luiz Inácio Lula da Silva iniciava seu mandato quando chegou a sugerir a abolição da multa de 40% sobre o Fundo de Garantia sobre o Tempo de Serviço (FGTS) e o parcelamento do 13º salário como medidas para incentivar a geração de emprego. Era o mesmo presidente que se fazia veemente na defesa de altos superávits como saída para o país buscar credibilidade. E dava asas às tentativas de aproximação com o PSDB.

Lula ainda não tinha falado da CLS, durante entrevista publicada ontem no Valor, quando um assessor atravessou a sala do Centro Cultural Banco do Brasil onde a Presidência está instalada durante a reforma do Palácio do Planalto. Observado pelos outros sete que assistem à entrevista, entrega um papelzinho amarelo ao presidente, sentado na ponta de imensa mesa oval, tendo ao fundo um mapa-mundi presenteado pela Embrapa. Lia-se em caneta vermelha: "242 mil empregos/agosto".

O recado resumia o presidente que se viu naquela quarta-feira. A economia turbinada lhe permitiria a defesa despudorada da dos gastos estatais - "A gente não deveria ficar preocupado em saber quanto o Estado gasta, mas se o Estado está cumprindo suas funções de tratar bem a população".

O funcionalismo público que Lula I enfrentou no seu primeiro governo com a reforma da Previdência, não receberia uma única ressalva de Lula II, que fez a mais radical política de valorização salarial dos últimos tempos.

Ao defender o papel da trinca Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e BNDES na crise, foi perguntado se não teme que essas instituições, excessivamente fortes, não terminem como os bancos estaduais que, na década de 1990, acabaram sendo socorridos pelo Tesouro.

É aparteado pelo ministro da Secretaria de Comunicação Social, Franklin Martins - "Não foram só os bancos públicos que quebraram. Os privados também" - antes de responder que o problema não foi o instrumento banco público, mas a irresponsabilidade política dos governantes. Usa, nesse momento, uma das raras metáforas populares da entrevista: a da criança jogada fora com a água suja do balde.

Não passou, em nenhum dos 82 minutos da entrevista, a impressão de que sua candidata à sucessão ficará acuada pelo discurso da eficiência gerencial da oposição. O Estado é ele: "Quem sustentou essa crise foi o governo e o povo pobre".

Nesse momento, baixa o Lula pragmático, o mesmo que, no sindicalismo nos anos 1970, tantas brigas arrumou com os comunistas - "Não sou nada por princípio. Entre meu princípio e o bom serviço prestado à população, fico com a população".

Não assumiu ali o discurso oposição-privatista, recusando-se a aceitar que este venha a ser o mote da campanha - "Vamos deixar a candidata construir". Aquele papelzinho amarelo parecia resumir as impressões presidenciais: não é a situação que vai precisar entrar batendo.

Mas Lula não se segura por muito tempo. Questionado sobre a falta de carisma da ministra Dilma Rousseff, prefere considerar a qualidade, ou a falta dela, no ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e no governador José Serra. Sem responder como pretende carregar o palanque da tecnocracia, apela, pela segunda vez , a Jânio Quadros - "Tinha muito carisma, mas não durou seis meses".

Um assessor tira o cinzeiro onde repousa a góia da cigarrilha que Lula acendeu do meio para o fim da entrevista. O presidente pega o cinzeiro de volta. Vai ter risco Serra? Lula ri. Diz que nunca antes ouvira a expressão.

Novamente compenetrado, diz que foi vítima desse discurso em todas as campanhas de que participou, mas prefere se deter na de 1994, quando a lei eleitoral proibiu cenas externas, a falar da de 1992 quando a campanha do candidato José Serra usou o jingle "O que eu conquistei/Não vou jogar pra cima/Com todo respeito/Eu não vou ser outra Argentina".

É tão generoso que até Heloísa Helena entra no rol de candidatos contra os quais ele espera que o discurso do risco nunca mais seja usado. Nunca mais na história desse país uma campanha presidencial vai precisar lançar mão de uma carta ao povo brasileiro.

Os folhetos distribuídos aos jornalistas pelo secretário de imprensa, Nelson Breve, traziam os números mais recentes da redução de pobreza e desigualdade no governo. A um ano e quatro meses de deixar o governo, e doze meses depois do início da crise que abalou o mundo, Lula está nos cascos. O cansaço revelado ao início da conversa dá lugar a uma fala sem pausa para respirar. Dois dias antes, Lula saíra de Brasília às 7 da manhã e voltaria 26 horas depois de visitar Roraima e enfrentar um dos raros protestos deste segundo mandato.

Deixa de targiversar. As tentativas de aproximação entre o PT e o PSDB não deram certo porque os dois partidos são adversários. E mais o presidente não diz. Ao longo de seu governo, Waldomiro Diniz, Maurício Marinho e Lina Vieira saíram do anonimato para dar luz à briga intestina entre os dois partidos. É uma disputa, diz Lula, que exclui a direita. Pelo menos da cabeça de chapa.

É aí que entra a "Consolidação das Leis Sociais" como uma tentativa de se transformar o nunca-na-história-desse-país em lei. A contar pelos 18 meses que um dos projetos a ser consolidado, o da política de reajuste do salário mínimo, tramita no Congresso, não há evidências de que venha a ser aprovada até o final desse governo.

A consolidação em lei dos projetos sociais em curso tira de Lula a condição de seu fiador que alimentou, durante muito tempo, a tese do terceiro mandato. A aprovação de uma lei dessas, por outro lado, confere uma marca a seu governo que a oposição não terá, naturalmente, interesse em referendar. Esse debate, como espera o presidente, pode invadir a campanha eleitoral. Depois da argentinização de 2002 e dos aloprados de 2006, não deixa de ser uma boa notícia.

Maria Cristina Fernandes é editora de Política. Escreve às sextas-feiras

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