segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Canto raro, repleto de sentimento

Lauro Lisboa Garcia, Com Agências Internacionais
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / CADERNO 2

Arte da argentina Mercedes Sosa encerrava um universo em si, baluarte de sua gente e antena das questões de seu tempo

A cantora Mercedes Sosa morreu ontem, aos 74 anos, em Buenos Aires, em consequência de complicações nos rins, no fígado e nos pulmões. Hospitalizada há duas semanas, Mercedes passou os últimos dias respirando com ajuda de aparelhos. Seu corpo foi velado no Congresso Nacional, na capital argentina. Segundo a família, seus restos serão cremados e as cinzas, espalhadas na cidade natal de Tucumán, em Mendoza e Buenos Aires.

Um dos pilares fundamentais da música popular argentina, ao lado de Carlos Gardel e Astor Piazzolla, Haydée Mercedes Sosa fez história pelo dom daquelas raras vozes que encerram um universo em si - pela importância histórica e pelo sentimento que carregam, baluartes artísticos de sua gente, antenas de seu tempo, genuinamente comoventes, gigantes por natureza. É como Luiz Gonzaga no Brasil, Odetta Holmes nos Estados Unidos, Celia Cruz em Cuba, Miriam Makeba na África do Sul.

A seu modo, La Negra - como foi carinhosamente apelidada por causa da cor dos cabelos - tornou-se referência de cantora, da grandeza de uma Ella Fitzgerald, de uma Edith Piaf. Foi a voz combatente da América Latina nos penosos anos da ditadura, quando passou a ser duramente perseguida e censurada por defender os direitos civis.

Herdeira de um movimento de música folclórica com forte compromisso político, tendo Atuahualpa Yupanqui como maior referência, gravou canções simbólicas dos anseios por liberdade e justiça e que valorizavam o trabalho da mulher e do homem comum. Canções como Los Hermanos (Atahualpa Yupanqui), Gracias a la Vida e La Carta (ambas da chilena Violeta Parra) e Hermano Dame Tu Mano (J.Sánchez/J.Sosa) correram mundo em sua voz.

Entre as estrelas internacionais que dividiram palcos e gravações com ela estão Luciano Pavarotti, Sting, Joan Baez, Lucio Dalla, Silvio Rodríguez, Pablo Milanés e Gal Costa, além de outros brasileiros com os quais cultivou grande amizade (leia na página ao lado).

Entre os feitos marcantes de sua carreira estão uma atuação na Capela Sistina do Vaticano (em dezembro de 1994), no Carnegie Hall (Nova York) e no Coliseu de Roma (ambas em 2002) para pedir a paz no Oriente Médio junto a Ray Charles, entre outros.

Em 1979, com a violência militar recrudescendo, Mercedes foi presa na cidade de La Plata, depois de um show, junto com todo seu público. No mesmo ano refugiou-se em Paris e em 1980 mudou-se para Madri. Ela podia voltar à Argentina quando quisesse. Com o princípio de agonia do regime militar, Mercedes pôde voltar ao país em 1982. O show que marcou o reencontro com seu público, no Teatro Colón, em Buenos Aires, causou grande comoção.

Com a volta da democracia, Mercedes passou oscilante pela ressaca dos anos 1980. A América Latina respirava novos ares e ela adaptou seu estilo aos novos tempos, ampliou seu repertório para além de zambas e milongas, cantando tango, baladas de amor, o cancioneiro brasileiro e cubano e até se aproximou do rock, via Charly García. Rodou o mundo com bem-sucedidas turnês, como a de 1986, que passou por vários países europeus e a trouxe de volta ao Brasil.

Identificada como uma espécie de Robin Hood da América Latina, Mercedes disse ao Estado em 2007, acreditar que as coisas tinham mudado para melhor no continente. Em entrevista para a biografia La Negra, de Rodolfo Braceli, confirmou que sua ideologia política sempre foi o comunismo, apesar de ter rompido com o partido comunista. Disse também detestar quem canta música de protesto por puro oportunismo.

A canção de protesto perdeu o significado em tempos mais amenos. Contudo, Mercedes jamais deixou de afrontar as injustiças. "Nosso continente é muito difícil, não há como deixar de ser idealista. Vendo, por exemplo, como a família de Pinochet se tornou milionária não há como se conformar. Não mudei nada na maneira de pensar. O que mudou é o que canto, o que dizem os compositores, mas não sou compositora. Canto de acordo com o que sinto no momento", afirmou há dois anos ao Estado.

Na memória coletiva, a imagem cristalizada de Mercedes é a de tocadora de bumbo, vestida de poncho e gritando palavras de ordem, como nos anos de chumbo. Os detratores, porém, diziam que ela defendia os pobres vestida de Armani e cobrando cachê em dólares. Mercedes sentia o peso do estereótipo e lamentava ter de atender a insistentes pedidos do público para que cantasse canções surradas como Gracias a la Vida (Violeta Parra), um de seus maiores sucessos. Apesar de contrariada, dizia que tinha de cantá-la. "Estive tão doente em 1997 que agora compreendo o que é estar viva e entendi melhor a canção, que não é de amor, mas de agradecimento por estar viva. Para mim é muito importante", disse ao Estado em 2007.

Sua brilhante trajetória artística e pessoal foi reconhecida com diversos prêmios, entre eles o da Unifem (órgão da ONU), em 1995, por seu empenho em defesa dos direitos da mulher. No ano seguinte foi a vez de receber em Porto Alegre a Medalha Simões Lopes Neto, pela contribuição para a união dos povos, como artista e personalidade influente.

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