terça-feira, 20 de outubro de 2009

Desacoplamento e guerra cambial dissimulada

Yoshiaki Nakano
DEU NO VALOR ECONÔMICO


A economia mundial está se recuperando dos efeitos catastróficos da crise financeira, mas o crescimento dos próximos anos deverá apresentar grandes assimetrias. O processo de desalavancagem e queda no consumo e investimento privados deverá persistir nos Estados Unidos nos próximos anos, sendo a mesma afirmação verdadeira, em menor grau, nos demais países desenvolvidos. Se a demanda doméstica for fraca nos próximos anos nos países desenvolvidos, a saída que resta para retomarem o crescimento será pelas exportações. Daí os riscos de uma guerra de desvalorizações cambiais entre estes países e destes contra os emergentes, já que hoje é mais difícil ampliar o protecionismo do que uma guerra cambial dissimulada. Por outro lado, como os países emergentes já retomaram com vigor o crescimento, desacoplando-se dos desenvolvidos, explorando cada vez mais o potencial de expansão do seu mercado doméstico, os emergentes deverão ser o alvo maior da guerra cambial.

A expectativa para os próximos anos é de que a taxa de crescimento potencial anual dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD, na sigla em inglês) gire em torno de 1,75%, enquanto que a mesma taxa para os países emergentes deverá ser de mais de 5%. Nesse sentido podemos falar em desacoplamento do crescimento dos países emergentes dos Estados Unidos e da Europa. Há razões para acreditar que deveremos ter uma significativa e persistente diferença nas taxas de crescimento nos próximos anos.

Em todo o período pós-guerra até 2007, com a crise financeira do sub-prime, prevaleceu uma estrutura dinâmica única na economia mundial. O seu polo dinâmico era a economia norte-americana que, pelo seu dinamismo tecnológico e, particularmente como importador ou consumidor em última instância, privilégio que lhe cabia como país emissor de moeda reserva internacional, funcionava como a locomotiva da economia mundial. Assim, desde a reconstrução da Europa e Japão, destruídos pela guerra, passando pelo crescimento dos tigres asiáticos e, mais recentemente, o crescimento da China, Índia e outros países tinham um forte componente exportador para os Estados Unidos.

A crise financeira de 2007-09 deverá interromper a mencionada estrutura dinâmica da economia mundial. A recuperação que se inicia nos Estados Unidos e na Europa é singular comparada às demais recuperações no período pós-guerra no sentido de que não é a queda na taxa de juros e retomada do crédito que impulsiona a demanda doméstica. Ao contrário, com elevado endividamento e grande perda de riqueza financeira o consumidor está se desalavancando, aumentando a taxa de poupança, e com isso as empresas, mesmo em melhor situação, veem reduzida oportunidade de investimento produtivo. A sustentação da demanda agregada para evitar maior desemprego vem se dando pela injeção de gastos fiscais que deverão ampliar perigosamente o déficit e a dívida pública nos próximos anos, particularmente nos Estados Unidos.

Além disso, como a economia americana está mais para uma situação deflacionária do que inflacionária, com queda nos salários nominais médios e aumento de desemprego, a taxa de juros deverá continuar bastante baixa por muito tempo e o Federal Reserve (Fed, banco central americano) deverá ter muita dificuldade em voltar a aumentar os juros, devido à elevação do risco de variação da taxa das instituições financeiras. Com taxa de juros muito baixa, excesso de liquidez e desalavancagem do setor privado, os recursos estão em busca de retorno maior e estão sendo canalizados para especulação com petróleo, commodities e bolsas dos emergentes. Como os países emergentes recuperaram-se rapidamente e apresentam perspectivas de crescimento voltadas para o mercado doméstico ou, no caso da China com ampliação de grandes investimentos em infraestrutura para integração das áreas rurais mais atrasadas, os capitais estão se movendo principalmente para essas regiões. Daí a depreciação do dólar e apreciação das demais moedas.

Do ponto de vista dos Estados Unidos essa depreciação do dólar é condição necessária para ajustar o seu grande déficit em transações correntes e terem uma recuperação sustentável ampliando as suas exportações e reduzindo as importações. Do ponto de vista da zona do euro, do Japão, da Inglaterra e dos emergentes que permitem a apreciação da sua moeda trata-se, na prática, de uma guerra cambial dissimulada em que os Estados Unidos estão lhes exportando desemprego.

É preciso lembrar que essa guerra cambial ocorre no contexto de forte queda no comércio mundial e que está fora de cogitação a retomada do ritmo de crescimento do período pré-crise, pois nenhum país ou conjunto de países emergentes tem condições de substituir os Estados Unidos como importador em última instância. Além disso, a recuperação do crescimento dos emergentes está se dando também com a substituição das importações pela produção doméstica, particularmente no setor industrial, para preservar o nível de emprego doméstico. Além desse mecanismo o esforço dos países emergentes para tentar conter a depreciação do dólar se traduz na elevação das reservas cambiais que voltou fortemente a partir de abril último.

E aqui temos dois grupos de países emergentes. De um lado, a China e países do Oriente Médio exportadores de petróleo que fixam a taxa de câmbio em relação ao dólar, criando-se uma espécie de zona do dólar; ou aqueles que a taxa de câmbio é flutuante, mas conseguem evitar a sua apreciação. De outro lado, países como o Brasil cuja intervenção no mercado de câmbio, acumulando reserva, é ineficaz e permitem a apreciação da sua moeda. Nessa guerra cambial dissimulada, o primeiro grupo aliou-se aos Estados Unidos, exportando desemprego para os demais, enquanto que países como o Brasil em que o real já apreciou 29% em relação ao dólar rende-se sem utilizar nem mesmo as armas que dispõem. O real está no topo do ranking de apreciação cambial. Será que os brasileiros se sentem felizes por poderem importar mais ou viajar e gastar no exterior, sentindo-se ricos com real apreciado, e se dar ao luxo de gerar menos emprego internamente e mais nos Estados Unidos ou na China?

Yoshiaki Nakano, ex-secretário da Fazenda do governo Mário Covas (SP), professor e diretor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas - FGV/EESP, escreve mensalmente às terças-feiras.

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