segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Desigualdade, polarização e coalizões

Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO


Os novos dados da Pnad, com o que contêm de boas e más notícias quanto a nossa desigualdade social, permitem retomar algumas questões gerais a que o assunto remete. A reflexão sociológica sobre os desdobramentos políticos da desigualdade há muito explora (nem sempre com pleno reconhecimento disso) certas intuições que se ligavam, no marxismo clássico, com a ideia de polarização social. Basicamente, a de que a sociedade polarizada, em particular na situação "pré-revolucionária" que seria supostamente produzida pelos automatismos da dinâmica do capitalismo, tenderia a reduzir-se ao enfrentamento unidimensional ao longo de uma grande linha de clivagem. A polarização redundaria em que as posições definidas em termos ocupacionais (trabalhadores e empresários) estariam fortemente correlacionadas com o grau de acesso a recursos de qualquer natureza, incluindo os recursos políticos e os de ordem intelectual - não obstante a simplificação da estrutura de hostilidades e solidariedades resultante ajudar, em conjunto com as condições estruturais modificadas, a produzir o caráter pré-revolucionário ao facilitar a eventual "tomada de consciência" e a mobilização política dos proletários.

A sociologia acadêmica, olhando como que a outra face da mesma medalha, tendeu a ressaltar não só a negação da polarização representada pela emergência das classes médias, mas também o fato de que essa emergência se associava com o surgimento e a relevância de múltiplas dimensões de estratificação que operariam, em maior ou menor grau, com independência umas das outras: ocupação, nível educacional e de renda etc. Se isso já diversifica os fatores relevantes de identificação e lealdade e mitiga o potencial de enfrentamento e conflito, a multidimensionalidade e seus efeitos são intensificados, na complexidade das sociedades contemporâneas, com a operação, ao mesmo tempo, da diversidade de fatores como raça, etnia e religião, cuja natureza adscritícia (ou seja, o fato de se referirem a condições dadas amplamente pelo nascimento e tipicamente menos passíveis de mudança por decisões ou ações do próprio indivíduo) tende a torná-los singularmente importantes na conformação da identidade pessoal.

Estudos recentes das ramificações políticas da multidimensionalidade têm destacado seus efeitos sobre a política de coalizões, com ênfase sobre as consequências para a redistribuição econômica no âmbito das democracias. Como seria de esperar, maior multidimensionalidade abre espaço a um jogo mais complexo de formação de coalizões, e o que temos visto na articulação, nos Estados Unidos, da "guerra cultural" com religiosidade, por um lado, e raça, por outro, ilustra a proposição. De toda maneira, no ensaio de 2006 que aqui tenho citado ("Democracia e Capitalismo"), T. Iversen salienta, com referência a trabalhos de J. Roemer, D. Austen-Smith e A. Przeworski, que os países caracterizados pela relevância de um número maior de dimensões tendem a ter menor redistribuição e que "as políticas de esquerda se tornam menos proeminentes à medida que a competição partidária se mostra mais influenciada por questões não econômicas". Isso pode ser ligado, ainda, à tese, proposta especialmente por R. Inglehart, de que valores "pós-materialistas" (envolvendo participação política significativa, ambientalismo etc.) viriam a sobrepujar, em condições de maior prosperidade econômica, os valores "materialistas" a que a redistribuição se refere; mas a tese foi devastadoramente criticada em seus supostos e metodologia mesmo antes de que a crise atual viesse comprometer de modo mais radical seu interesse.

Esses temas levam a indagações quanto ao Brasil. A incipiente redistribuição que nossos dados recentes revelam sugere a pergunta de como foi possível preservar a desigualdade e prescindir de qualquer redistribuição por tanto tempo - sobretudo em circunstâncias de notável ausência de um campo propício a coalizões multidimensionais. A resposta envolve o reconhecimento de que a desigualdade brasileira, com sua base na duradoura estrutura de castas do escravismo, foi tudo menos "pré-revolucionária", no sentido marxista da polarização propícia à mobilização intelectual e política, onde a simplificação do quadro de lealdades e hostilidades supõe justamente um sentimento de igualdade e dignidade básicas que se transforma em sentimento de injustiça diante da experiência objetiva de desigualdade persistente. A expansão do sufrágio e da participação político-eleitoral, cada vez mais impossível de evitar nas condições do mundo contemporâneo, não pode senão mudar esse quadro. Ao dar um decisivo recurso de poder às maiorias destituídas, ela acaba por corroborar, mesmo no quadro de precário acesso a bens educacionais e intelectuais e de simplismos "populistas", a propensão redistributiva da democracia que outros estudos recentes têm destacado.

Outro aspecto é o das relações entre raça e redistribuição. Apesar da incipiente relevância política da religião, em razão da difusão entre nós de certas formas de protestantismo, o fator raça é o único fator não econômico em torno do qual temos tido alguma movimentação realmente significativa no plano político-administrativo. À parte o debate sobre como situar-se, de um ponto de vista valorativo orientado pelo ideal democrático, perante a questão de raça versus critérios sociais uma vez que se concorde quanto à necessidade de ação do Estado contra a desigualdade, cabe ponderar se a ênfase na raça, à luz do sugerido acima, não poderá vir a representar um obstáculo à eficácia geral da política de redistribuição - e com isso afetar negativamente, talvez, a própria promoção da igualdade em termos raciais.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

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