domingo, 4 de outubro de 2009

Ilegalidade consentida

Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Cena um: a campanha eleitoral para o ano que vem corre solta, à vista de todos, com uso explícito das máquinas públicas, pelo presidente da República, ministros e governadores.

Isso a despeito da existência de leis que reprimem o abuso de poder e determinam que a campanha tem data para começar. No caso, dia 5 de junho de 2010.

Cena dois: a Justiça Eleitoral esclareceu e o Supremo Tribunal Federal corroborou que a Constituição dá aos partidos a posse dos mandatos representativos e, portanto, quem muda de legenda sem justa causa perde o mandato. Apesar disso, o troca-troca nos últimos dias para filiação dos candidatos no ano que vem deu-se mais ou menos no mesmo ritmo de antes de o Judiciário informar ao Legislativo que a Carta elaborada pelo Congresso em 1987/1988 existe para ser cumprida.

Desobediência civil, displicência da Justiça?

Algo mais simples e cínico: um evidente acordo tácito entre os partidos e os políticos em prol da ilegalidade consentida de modo a que todos possam compartilhar do drible na ilegalidade sem ser importunados pela Justiça.

Como os tribunais só agem quando provocados - não tomam iniciativas nem criam lei, apenas interpretam e confirmam o espírito das existentes -, basta que ninguém se mexa. Os políticos adversários não perturbam uns aos outros com ações contra o abuso dos governantes e os partidos não reivindicam seus mandatos, fazendo letra morta da regra da fidelidade partidária.

Grosso modo é assim que as coisas estão se passando.

Com uma agravante: as recentes mudanças na lei eleitoral que dificultam sobremaneira o trabalho da Justiça Eleitoral no tocante ao combate do uso do caixa 2 e na recuperação da trajetória do dinheiro entre o doador e o donatário.

A aprovação do dispositivo que permite a "doação oculta" diretamente ao partido, sem a identificação da origem nem do destino específico do dinheiro, dificulta, no dizer ameno de um ministro do Supremo, "o jogo da verdade".

Na realidade, analisa o mesmo ministro, liberaliza a contabilidade paralela. "E quem doa por baixo dos panos cobra a fatura também por baixo dos panos."

Suas excelências criaram essa dificuldade de caso pensado. Com votação na Câmara e no Senado.Portanto, não deve surpreender - embora obrigatoriamente deva ser condenada - a frouxidão com o troca-troca e a permissividade com o uso mútuo das máquinas.

Os mais atentos perguntarão: e aquela representação do PSDB contra a reunião de prefeitos em fevereiro último, com Lula e Dilma em Brasília? A Justiça não considerou ato de campanha.

Por um único e simples motivo que o ministro do STF que nos fala expõe: "Não apresentaram provas consistentes numa representação redigida de tal forma que dá a impressão de ser mera representação." No sentido teatral do termo.

De lá para cá, nada mais se contestou. Até para que o autor da contestação não venha a ser objeto de um revide, quem sabe, mais bem redigido, sustentado e que dê margem a uma decisão rigorosa da Justiça.

Se a banda tocar assim no ano que vem - e parece que será essa mesmo a toada -, com os políticos fazendo tudo para anular a ativismo do Judiciário, tocará muito mal no que tange ao aperfeiçoamento dos costumes na política do Brasil.

Impasse

PT e PMDB anunciam para este mês a oficialização do compromisso de aliança para 2010. Os pemedebistas pressionaram com receio de perder a vaga de vice para Ciro Gomes, a direção do PT disse que sim e, segundo a versão dos interessados, só falta o presidente Lula bater o martelo.

O problema é que cada um quer uma coisa: o PMDB quer fechar a aliança nacional antes de acertar as coalizões nos Estados. Acha que terá mais força nas composições regionais se já for o parceiro oficial.

Mas o PT avalia justamente no sentido oposto: prefere deixar o acerto nacional para depois porque não quer o PMDB com tanto cacife nas negociações estaduais.

Se, como dizem ambas as partes, assinarem o compromisso em outubro com validade irrevogável para 2010, alguém estará fazendo jogo de cena.

Uso do esporte

Evidente que a escolha do Rio como sede da Olimpíada de 2016 representa muitos pontos e abundantes ganhos políticos para o presidente Lula e o governador Sérgio Cabral. Junto com o Comitê Olímpico são os responsáveis pela competente condução do processo que resultou na vitória.

Agora, daí a dizer que alguém receberá votos daqui a um ano para presidir o Brasil durante quatro ou oito, por causa de um evento esportivo que acontecerá daqui a sete anos, é fazer pouco (ou, melhor, pouquíssimo) do discernimento do eleitor.

É como ocorre na Copa: ninguém, na vigência da democracia, vota referido no resultado do futebol. Ainda que três meses apenas separe a Copa da eleição.

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