Celso Barros, Doutor em Oxford
DEU NO BLOG Na Prática a Teoria é Outra
Esse é um livro sobre as aventuras da esquerda italiana nos últimos cem anos, e, em certo sentido, sobre a Itália. Giuseppe Vacca é o presidente do Instituto Gramsci. Por isso, esse livro nos interessa por duas razões: em primeiro lugar, porque a esquerda italiana sempre foi uma referência (suspeito que “a” referência) para o PT. E, em segundo lugar, porque ilustra alguns temas abordados na Série Gramsci. Vamos ver como se sai o Gramsci jogando em casa.
1.
A Itália se diferencia dos demais países europeus, entre outras coisas, porque seu principal partido de esquerda foi o comunista, e não a social-democracia. Na verdade, o PCI, com o tempo, foi se tornando em quase tudo um partido social-democrata, sendo responsável por importantes reformas sociais na Itália. Esse estilo de partido comunista que se integra no jogo democrático foi o que ficou conhecido como “Eurocomunismo”.
No entanto, o PCI tinha um tremendo peso morto a carregar, o vínculo com a URSS, que o alienava de setores moderados que as social-democracias conquistavam com relativa facilidade. Isso impedia que ele participasse de inúmeros debates a respeito da melhor maneira de reformar o capitalismo, inclusive no que se refere à problemática keynesiana.
Pensando em termos gramscianos (aqui sou eu, NPTO, falando), a luta pela hegemonia do PCI (e dos partidos comunistas que nela se empenharam com alguma competência) foi abortada pela sua identificação com um sistema social historicamente retrógrado (ou, em uma interpretação mais favorável, característico de regiões mais atrasadas), que não incorporava as conquistas políticas democráticas, nem as possibilidades de produção e consumo abertas pelo fordismo.
Vacca, inclusive, admite algo que raramente se admite em meios marxistas: que o comunismo soviético não chegou a constituir um modo de produção da mesma maneira que o capitalismo, que subverteu completamente as relações de tabalho, a cultura, e a forma do poder político feudais. O socialismo não está na mesma ordem de fenômenos que capitalismo, feudalismo, etc., foi antes um modo de regulação da indústria que o capitalismo produziu. Não teve o potencial transformador que o capitalismo teve, nem, portanto, seu potencial hegemônico.
Para piorar as coisas, a URSS era o inimigo das alianças internacionais da Itália; a suspeita de traição era inevitável, e mesmo eleitores que apoiavam propostas do PCI não confiariam a ele a direção do Estado.
Com o fim da URSS, o PCI rapidamente abandonou essa bagagem, e mudou de nome para PDS (partido democrático da esquerda, em italiano), reconhecendo-se como membro da tradição reformista européia ocidental. Mas essa conversão não foi tão fácil, pois, nesse exato momento, o eixo político mundial se deslocava para a direita, e os consensos que sustentavam a social-democracia entravam em crise.
Além disso, na mesma época, o sistema político italiano colapsava em consequência da operação Mãos Limpas, que quebrou a espinha do eixo democracia cristã / partido socialista. Se, por um lado, houve um ganho em termos de ética pública, por outro, perdeu-se o referencial da direita anti-fascista da Democracia Cristã. Assim, no momento em que a necessidade de aderir ao Euro levaria a Itália a uma série de reformas liberais, a direita italiana se dividia entre Berlusconi e os separatistas da Liga Nord.
Essa descrição dos problemas que a fraqueza da direita traz para a esquerda vai soar familiar para o leitor brasileiro atento:
Com o precário início da alternância [de poder, com a vitória da esquerda - NPTO], reapresentou-se um problema histórico da burguesia italiana: a ausência do seu “partido de governo” e a extrema dificuldade de criá-lo. (..) As elites do poder estão inteiramente conscientes da incoerência da atual direita, e, no conjunto, não a apóiam. Todavia, seu maior esforço cultural consiste em sustentar as velhas narrativas, as idéias dominantes na época da guerra fria. É um comportamento esquizóide, revelador de uma fragilidade “orgânica” e de uma persistente incapacidade de elaborar uma nova hegemonia. Demonstram náusea e desprezo pela direita que existe, mas até agora não parecem decididas a buscar os materiais necessários para forjar uma nova direita.
Entretanto, como notou Yascha Mounk, não se pode subestimar o papel desempenhado pela desarticulação da esquerda italiana na produção do fenômeno Berlusconi. As tentativas de unificação das várias tendências históricas do reformismo italiano levaram ao surgimento de novos partidos (o PDS, por exemplo, virou PD, partido democrático) e alianças (como a Oliveira), além, é claro, de rachas, como a Refundação Comunista, que, é claro, já rachou também (levando à formação do PCdI). Essa história é detalhadamente contada no Capítulo 10, que, sozinho, justifica a compra do livro.
Mas essa desarticulação, por sua vez, não pode ser entendida sem compreender a crise por que passa o pensamento reformista, como lembra ainda a Mounk: suas principais conquistas sociais, passado o período de euforia Tatcherita (que tem, sem dúvida, legados muito positivos: Vacca critica a esquerda por ter visto no neoliberalismo apenas reação, quando se tratava de um grande esforço de construção do capitalismo global) foram mais ou menos incorporadas pelos partidos conservadores. Líderes mais hábeis, como Zapatero, incorporaram bandeiras dos novos movimentos sociais, como o casamento gay e o ambientalismo, mas é uma questão de pouco tempo até essas medidas se tornarem mainstream (o novo chanceler alemão, por exemplo, é conservador e abertamente gay). Não parece haver algo que sirva como bandeira de longo prazo para o reformismo europeu.
Em outros termos, e adiantando o tema de um post futuro, se coloca a seguinte questão: sem a referência a uma civilização alternativa, o que é lutar pela hegemonia? Para entender o que o Vacca propõe a esse respeito, é preciso retomar outro tema clássico do Gramscismo: a Itália entre as regiões e a Europa.
2.
O problema do diferencial de desenvolvimento entre as região sul e norte da Itália é uma das questões fundantes da nacionalidade italiana. Ele reemergiu com força a partir dos anos 70, quando da crise do consenso keynesiano. O norte da Itália emergiu como região de capitalismo dinâmico e “pós-fordista”, enquanto que o sul não consguiu fazer essa transição. Em consequência, uma das forças importantes da política italiana contemporânea é o movimento separatista do norte.
A crise do consenso keynesiano, que, anos mais tarde, refletiria na crise dos partidos que o sustentaram, recolocaram a questão nacional italiana. Pois a Itália que cresceu espetacularmente no pós-guerra derivava grande parte de sua identidade do anti-fascismo, e dos vários pactos entre os partidos anti-fascistas que sustentaram a democracia cristã – que, por seu lado, resolvia(ou ao menos acomodava) outra grande questão da nacionalidade italiana: como ser uma nação em cuja capital se encontra o centro do catolicismo, como país independente.
A crise desse sistema, e a divergência econômica entre as regiões, recolocou grande parte das questões que a Itália tentou resolver de várias formas em gerações anteriores (inclusive com o fascismo). Entretanto, isso agora se colocava de outra forma: pois a própria Itália já era, ela própria, parte atuante de uma construção política cosmopolita e moderna, a União Européia.
Vacca é entusiasticamente europeísta. Acredita que a construção de uma união política européia forte no cenário internacional é uma das chaves para equilibrar o sistema mundial em favor de valores democráticos e reformistas. Cita várias vezes um negócio que eu acho brilhante, o Gramsci dizendo que a crise de 29 era consequência da convivência entre o cosmopolitismo da economia e o nacionalismo da política. Sua esperança, portanto, parece repousar em uma internacionalização da política reformista para a esfera européia, e a transformação da UE em uma força internacional a favor dos valores que o PCI aprendeu a defender na prática (uma vez que começou como partido não-democrático). Eventualmente, suponho, alguma forma de ordem mundial reformada emergiria (é aquela conspiração do OC, à qual eu sempre tento aderir e nunca consigo).
Até aí, tudo bem, mas vamos pensar um pouco sobre o que isso significa em termos de hegemonia. A proposta é, no fundo, converter-se em um dispositivo da hegemonia capitalista, levando o sistema (que é intrinsecamente globalista) além do que as direitas nacionais conseguem fazer, mas suficientemente domesticado por normas de justiça que se produzem na discussão democrática (a popular social-democracia).
Por outro lado, há uma valorização definitiva da democracia como objetivo da luta hegemônica, não como seu cenário. A democracia moderna nasce dentro da civilização do capitalismo, é certo, mas é algo surpreendentemente autônomo, e, honestamente, ainda não bem compreendido. Ninguém sabe no que ela vai dar, e isso faz parte de sua natureza. Isto é, embora o gramscismo seja indubitavelmente um marxismo, há algo nele que ao menos abre espaço para alguma outra coisa, nascida da democracia, que ainda não sabemos o que seja. Gramsci afirmava que quando a utopia comunista se realizasse, a visão marxista do mundo se tornaria obsoleta. Embora ninguém mais acredite na utopia comunista, há algo dessa liberdade, como vislumbre, mais ou menos nítido conforme a situação, dentro da democracia. Além de avançar a causa dos pobres, a esquerda deve se encarregar de proteger esses espaços, e esperar para ver no que vão dar.
Por mim está ótimo. Entretanto.
3.
Esse é um livro sobre as aventuras da esquerda italiana nos últimos cem anos, e, em certo sentido, sobre a Itália. Giuseppe Vacca é o presidente do Instituto Gramsci. Por isso, esse livro nos interessa por duas razões: em primeiro lugar, porque a esquerda italiana sempre foi uma referência (suspeito que “a” referência) para o PT. E, em segundo lugar, porque ilustra alguns temas abordados na Série Gramsci. Vamos ver como se sai o Gramsci jogando em casa.
1.
A Itália se diferencia dos demais países europeus, entre outras coisas, porque seu principal partido de esquerda foi o comunista, e não a social-democracia. Na verdade, o PCI, com o tempo, foi se tornando em quase tudo um partido social-democrata, sendo responsável por importantes reformas sociais na Itália. Esse estilo de partido comunista que se integra no jogo democrático foi o que ficou conhecido como “Eurocomunismo”.
No entanto, o PCI tinha um tremendo peso morto a carregar, o vínculo com a URSS, que o alienava de setores moderados que as social-democracias conquistavam com relativa facilidade. Isso impedia que ele participasse de inúmeros debates a respeito da melhor maneira de reformar o capitalismo, inclusive no que se refere à problemática keynesiana.
Pensando em termos gramscianos (aqui sou eu, NPTO, falando), a luta pela hegemonia do PCI (e dos partidos comunistas que nela se empenharam com alguma competência) foi abortada pela sua identificação com um sistema social historicamente retrógrado (ou, em uma interpretação mais favorável, característico de regiões mais atrasadas), que não incorporava as conquistas políticas democráticas, nem as possibilidades de produção e consumo abertas pelo fordismo.
Vacca, inclusive, admite algo que raramente se admite em meios marxistas: que o comunismo soviético não chegou a constituir um modo de produção da mesma maneira que o capitalismo, que subverteu completamente as relações de tabalho, a cultura, e a forma do poder político feudais. O socialismo não está na mesma ordem de fenômenos que capitalismo, feudalismo, etc., foi antes um modo de regulação da indústria que o capitalismo produziu. Não teve o potencial transformador que o capitalismo teve, nem, portanto, seu potencial hegemônico.
Para piorar as coisas, a URSS era o inimigo das alianças internacionais da Itália; a suspeita de traição era inevitável, e mesmo eleitores que apoiavam propostas do PCI não confiariam a ele a direção do Estado.
Com o fim da URSS, o PCI rapidamente abandonou essa bagagem, e mudou de nome para PDS (partido democrático da esquerda, em italiano), reconhecendo-se como membro da tradição reformista européia ocidental. Mas essa conversão não foi tão fácil, pois, nesse exato momento, o eixo político mundial se deslocava para a direita, e os consensos que sustentavam a social-democracia entravam em crise.
Além disso, na mesma época, o sistema político italiano colapsava em consequência da operação Mãos Limpas, que quebrou a espinha do eixo democracia cristã / partido socialista. Se, por um lado, houve um ganho em termos de ética pública, por outro, perdeu-se o referencial da direita anti-fascista da Democracia Cristã. Assim, no momento em que a necessidade de aderir ao Euro levaria a Itália a uma série de reformas liberais, a direita italiana se dividia entre Berlusconi e os separatistas da Liga Nord.
Essa descrição dos problemas que a fraqueza da direita traz para a esquerda vai soar familiar para o leitor brasileiro atento:
Com o precário início da alternância [de poder, com a vitória da esquerda - NPTO], reapresentou-se um problema histórico da burguesia italiana: a ausência do seu “partido de governo” e a extrema dificuldade de criá-lo. (..) As elites do poder estão inteiramente conscientes da incoerência da atual direita, e, no conjunto, não a apóiam. Todavia, seu maior esforço cultural consiste em sustentar as velhas narrativas, as idéias dominantes na época da guerra fria. É um comportamento esquizóide, revelador de uma fragilidade “orgânica” e de uma persistente incapacidade de elaborar uma nova hegemonia. Demonstram náusea e desprezo pela direita que existe, mas até agora não parecem decididas a buscar os materiais necessários para forjar uma nova direita.
Entretanto, como notou Yascha Mounk, não se pode subestimar o papel desempenhado pela desarticulação da esquerda italiana na produção do fenômeno Berlusconi. As tentativas de unificação das várias tendências históricas do reformismo italiano levaram ao surgimento de novos partidos (o PDS, por exemplo, virou PD, partido democrático) e alianças (como a Oliveira), além, é claro, de rachas, como a Refundação Comunista, que, é claro, já rachou também (levando à formação do PCdI). Essa história é detalhadamente contada no Capítulo 10, que, sozinho, justifica a compra do livro.
Mas essa desarticulação, por sua vez, não pode ser entendida sem compreender a crise por que passa o pensamento reformista, como lembra ainda a Mounk: suas principais conquistas sociais, passado o período de euforia Tatcherita (que tem, sem dúvida, legados muito positivos: Vacca critica a esquerda por ter visto no neoliberalismo apenas reação, quando se tratava de um grande esforço de construção do capitalismo global) foram mais ou menos incorporadas pelos partidos conservadores. Líderes mais hábeis, como Zapatero, incorporaram bandeiras dos novos movimentos sociais, como o casamento gay e o ambientalismo, mas é uma questão de pouco tempo até essas medidas se tornarem mainstream (o novo chanceler alemão, por exemplo, é conservador e abertamente gay). Não parece haver algo que sirva como bandeira de longo prazo para o reformismo europeu.
Em outros termos, e adiantando o tema de um post futuro, se coloca a seguinte questão: sem a referência a uma civilização alternativa, o que é lutar pela hegemonia? Para entender o que o Vacca propõe a esse respeito, é preciso retomar outro tema clássico do Gramscismo: a Itália entre as regiões e a Europa.
2.
O problema do diferencial de desenvolvimento entre as região sul e norte da Itália é uma das questões fundantes da nacionalidade italiana. Ele reemergiu com força a partir dos anos 70, quando da crise do consenso keynesiano. O norte da Itália emergiu como região de capitalismo dinâmico e “pós-fordista”, enquanto que o sul não consguiu fazer essa transição. Em consequência, uma das forças importantes da política italiana contemporânea é o movimento separatista do norte.
A crise do consenso keynesiano, que, anos mais tarde, refletiria na crise dos partidos que o sustentaram, recolocaram a questão nacional italiana. Pois a Itália que cresceu espetacularmente no pós-guerra derivava grande parte de sua identidade do anti-fascismo, e dos vários pactos entre os partidos anti-fascistas que sustentaram a democracia cristã – que, por seu lado, resolvia(ou ao menos acomodava) outra grande questão da nacionalidade italiana: como ser uma nação em cuja capital se encontra o centro do catolicismo, como país independente.
A crise desse sistema, e a divergência econômica entre as regiões, recolocou grande parte das questões que a Itália tentou resolver de várias formas em gerações anteriores (inclusive com o fascismo). Entretanto, isso agora se colocava de outra forma: pois a própria Itália já era, ela própria, parte atuante de uma construção política cosmopolita e moderna, a União Européia.
Vacca é entusiasticamente europeísta. Acredita que a construção de uma união política européia forte no cenário internacional é uma das chaves para equilibrar o sistema mundial em favor de valores democráticos e reformistas. Cita várias vezes um negócio que eu acho brilhante, o Gramsci dizendo que a crise de 29 era consequência da convivência entre o cosmopolitismo da economia e o nacionalismo da política. Sua esperança, portanto, parece repousar em uma internacionalização da política reformista para a esfera européia, e a transformação da UE em uma força internacional a favor dos valores que o PCI aprendeu a defender na prática (uma vez que começou como partido não-democrático). Eventualmente, suponho, alguma forma de ordem mundial reformada emergiria (é aquela conspiração do OC, à qual eu sempre tento aderir e nunca consigo).
Até aí, tudo bem, mas vamos pensar um pouco sobre o que isso significa em termos de hegemonia. A proposta é, no fundo, converter-se em um dispositivo da hegemonia capitalista, levando o sistema (que é intrinsecamente globalista) além do que as direitas nacionais conseguem fazer, mas suficientemente domesticado por normas de justiça que se produzem na discussão democrática (a popular social-democracia).
Por outro lado, há uma valorização definitiva da democracia como objetivo da luta hegemônica, não como seu cenário. A democracia moderna nasce dentro da civilização do capitalismo, é certo, mas é algo surpreendentemente autônomo, e, honestamente, ainda não bem compreendido. Ninguém sabe no que ela vai dar, e isso faz parte de sua natureza. Isto é, embora o gramscismo seja indubitavelmente um marxismo, há algo nele que ao menos abre espaço para alguma outra coisa, nascida da democracia, que ainda não sabemos o que seja. Gramsci afirmava que quando a utopia comunista se realizasse, a visão marxista do mundo se tornaria obsoleta. Embora ninguém mais acredite na utopia comunista, há algo dessa liberdade, como vislumbre, mais ou menos nítido conforme a situação, dentro da democracia. Além de avançar a causa dos pobres, a esquerda deve se encarregar de proteger esses espaços, e esperar para ver no que vão dar.
Por mim está ótimo. Entretanto.
3.
Em primeiro lugar, podemos objetar que um Estado Mundial é um risco grande demais, porque, se o negócio descambar para o autoritarismo, você foge pra onde? Suponho que o Vacca responderia que o importante agora é a construção da Europa, onde o risco de autoritarismo parece nulo, e pensar no mundo quando o risco for semelhante. Beleza. E, se ele só tiver solução para os social-democratas europeus, já é muito.
Em segundo lugar, podemos reclamar que para quem lê o Vacca fora da Europa, fica uma certa frustração: a que União Européia nós deveríamos nos unir? Bem, na verdade, no caso brasileiro e terceiro-mundista, em geral, a tarefa principal é, em um certo sentido, mais simples: ainda não conquistamos a maior parte das vitórias que os reformistas europeus conseguiram no século XX. A tarefa da esquerda latino-americana é conseguir educação e saúde gratuita para todos. Quando esbarrarmos nos problemas dos social-democratas europeus, pensaremos em alguma coisa. No meio tempo, podemos evitar os excessos de burocratismo que marcaram a experiência reformista na Europa e negociar melhor com os liberais algumas soluções de mercado.
Mas o problema mesmo com a leitura do Vacca é: quem vai fazer isso aí? A social-democracia não era um negócio tucano, muito pelo contrário: era um movimento de massas, organizado como força eleitoral pelos militantes operários. Boa parte da crise atual da social-democracia européia vem da dificuldade de mobilizar a classe operária com as poucas promessas possíveis (uma vez que as grandes conquistas estão dadas) dentro do quadro do capitalismo global. E, embora os novos movimentos sociais – feministas, ambientalistas, etc. – tenham se revelado excepcionais enquanto grupos de pressão, são mais focados do que era o movimento operário. E o movimento operário era mais universalista porque era socialista.
Como mobilizar para lutas tão difíceis sem um grande projeto, que faça com que o cara arrisque perder o emprego para lutar por um melhor plano de saúde para os empregados da fábrica, ou coisa que o valha? Que grande iniciativa pública justificaria que os trabalhadores de setores tão diversos, cujos interesses imediatos são simplesmente inconciliáveis, se unam sob a mesma bandeira? A previdência pública, por exemplo, foi algo assim.
Meu palpite, que não tenho como provar: por enquanto, o horizonte é construir a social-democracia no terceiro mundo. No Brasil, na Índia, na grande revolução democrática que um dia acontecerá na China, no mundo Árabe, para derrubar as teocracias obscurantistas reacionárias (a social-democracia palestina deveria ser uma de nossas prioridades). Isso demorará décadas, porque, como vocês já podem intuir, esses problemas, como foi na Itália, são atravessados pela construção de identidades nacionais e religiosas.
Só então algo como uma federação reformista será concebível, e até que seja possível, já iria muito tempo se ainda não tivéssemos que levar em conta as inúmeras reações (que fascismos poderão ser criados no futuro?) e desvios contra o projeto (como, hoje, é o bolivarianismo). E nesse processo, quando a democracia já for uma realidade sólida no mundo pobre, voltará a cena o projeto interrompido da tradição social-democrata, a redução da jornada de trabalho.
Enfim, um livro escrito em estilo continental, ao qual não estava mais tão habituado, e citando autores de quem não ouvia falar fazia tempo (Barcelona, Teló). Talvez o leitor possa ser perdoado por pular alguns capítulos iniciais e voltar a eles quando estiver mais familiarizado com os debates dentro do PCI.
Mas, se você gosta desse tipo de discussão, faz tempo que não sai um livro tão bom para você no Brasil.
Ô, rapaz, valeu por divulgar a resenha. O livro é ótimo, mesmo.
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