segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Carlos Lessa:: Venceríamos todos...

DEU NO VALOR ECONÔMICO

É insólito o ministro falar da necessidade de uma desvalorização cambial de 34%

Dia 18 deste mês, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, proclamou que, "se o dólar no Brasil estivesse a R$ 2,60, venceríamos todos". Prosseguiu afirmando que, assim, "a indústria nacional poderia enfrentar a concorrência dos chineses e coreanos" e enfatizou: "a indústria brasileira tem muita competência e capacidade, mas nós temos uma desvantagem cambial".

Concordo inteiramente com o ministro, pois após a crise, o yuan chinês se valorizou apenas 3% em relação ao dólar, enquanto o real brasileiro se valorizou quase 30% (um primeiro lugar altamente negativo). Porém, fiquei perplexo: é insólito para o mercado de capitais e financeiro atrelado ao câmbio flutuante um ministro da Fazenda falar da necessidade de uma desvalorização cambial de 34%, mas praticamente nada aconteceu. Essa é outra surpresa.

De duas, uma: ou "o mercado" não escuta a Fazenda ou teria acontecido outra notícia neutralizando a declaração. Creio que a última hipótese ocorreu, pois no mesmo dia, Mário Torós abandonou a diretoria do Banco Central e o dr. Meirelles disse que, a pedido de Lula, ficará no cargo até o fim de 2010. Se alguém tinha qualquer dúvida sobre quem comanda "o mercado", percebeu que vivemos sob o Império do CMN e do Presidente Meirelles: no mesmo dia, correu a notícia de que os membros do CMN escolheram o substituto do demissionário Torós. Nada de novo no Quartel de Abrantes?

Obviamente, por trás da declaração de Mantega está sua inequívoca preocupação com a atrofia das exportações de produtos manufaturados e a explosão de gastos pouco prioritários, como no turismo. Deve prevalecer a preocupação com a brutal perda financeira que o Brasil tem ao comprar dólares que afluem em busca dos juros a 8,75% a.a. e são aplicados, pelo BC, em Títulos do Tesouro americano, que rendem cerca de 1% a.a. O ministro da Fazenda sabe que, nessa absurda operação, o Brasil perde mais que os gastos federais em Saúde e Educação. Sabe, também, que num mundo em crise o Brasil é o paraíso dos aplicadores de capitais de curto prazo, atraídos pelos juros reais que o BC paga, pela ausência de tributação, pela cláusula cambial e pela facilidade de retorno. Essa cadeia de felicidade para os especuladores se realimenta, pois o afluxo de dólares valoriza o real e aumenta os ganhos especulativos dos pioneiros da cadeia. O coro que apresenta o Brasil como "uma ilha de felicidade no oceano da crise mundial" reforça a atratividade da aplicação suicida dos dólares afluentes. Quero crer que o ministro Mantega não aprova essa política do Presidente Meirelles, mas tem que agüentar a versão tupiniquim da Doença Holandesa e perceber a atrofia da renda da agropecuária e o desestímulo à atividade industrial.

Imaginei que, nas catacumbas da política econômica, alguma alquimia estivesse sendo desenhada. Alguns sinais já haviam sido emitidos: a aplicação do IOF de 2% aos capitais estrangeiros afluentes (um modesto ensaio de freio), o boato de que os brasileiros poderiam manter contas em dólar em bancos no Brasil (remuneradas a 8,75%? ), e o rumor cada vez mais insistente de que o BC estaria avaliando a possibilidade de os bancos que operam no Brasil poderem fazer operações de derivativos a partir daqui. Desatar as regras de estruturação e derivativos a partir do Brasil "seria uma simplificação burocrática" e soaria como avant première de que o Brasil estaria dissolvendo qualquer "amarra cambial", estaria dissolvida qualquer "pérfida reminiscência de uma passada situação de escassez de moeda estrangeira". Estaria em estudo a autorização para que fundos multimercados possam aplicar recursos no exterior - afinal de contas, as exportadoras já mantêm mais de US$ 10 bilhões no exterior! Houve a elevação da nota do Moody´s e estaríamos vivendo a "era da fartura de dólares".

A idéia da superação da crise e de que a nau brasileira navegará com as velas enfunadas em um oceano esplêndido é a mais espetacular invenção tupiniquim. Sem esgotar sinais, apenas citando alguns veiculados pela mídia no último mês, vejamos a qualidade da meteorologia futurística do BC e da onda esfuziante de autocongratulações pré-sucessórias do Governo: todos os analistas americanos falam da ameaça de uma bolha de cartões de crédito, deploram o "empobrecimento" das famílias americanas, sinalizam debilidades estruturais nas entidades financeiras (nas últimas semanas, a CIT, maior financiadora de varejo, vacilou), o FCC esgotou sua possibilidade de apoiar agentes financeiros norte-americanos vacilantes etc.

A Europa ainda em recessão, do Japão não vêm boas notícias. A China é exceção, porém é uma economia fechada à especulação internacional, mantém o yuan sintonizado com o dólar e está realizando um gigantesco investimento público em infraestrutura (o contrário do Brasil). No G-2, a atrofia norte-americana abre caminho para uma neo geopolítica chinesa, vitoriosa na Ásia, fortemente instalada na África subsaariana e em rápida penetração no Cone Sul do continente americano.

Agora Dubai pré-anuncia um calote; o Dubai World pediu uma moratória de seis meses. Dubai deve US$ 80 bilhões e anunciou o fechamento de seu mercado financeiro. Nesse país, um mar de areia sobre um leito de petróleo, estourou uma bolha imobiliária e seus hotéis imaginosos estão vazios. Espero que não prospere, com alicerce no Pré-Sal, um trem-bala-bolha equivalente à torre hoteleira instalada em águas salgadas com mais de 20 andares formatados com inspiração de velas.

O mar tempestuoso da crise mundial poderá fazer da "nau brasileira" a repetição da sinistra caricatura que o governo FHC fez da lancha travestida de caravela, que enguiçou antes de chegar a Coroa Vermelha para replicar as naus cabralinas. O Brasil do Presidente Meirelles e do Ministro Mantega parece estar sendo preparado para mergulhar, sem bóia, num mar tempestuoso.

Em tempo: Os depósitos de exportadores brasileiros no exterior não evidenciam retenção de dólares; pelas alquimias do sistema financeiro e pelas facilidades dos anonimatos dos paraísos fiscais, é sabido que uma parcela substancial dos "capitais estrangeiros" de curto prazo pertencem, de fato, a brasileiros que se sentem mais confortáveis tendo fantasia de estrangeiro. Desconheço o tamanho da diáspora de dólares de brasileiros que retornam travestidos em busca dos juros do Presidente Meirelles. Na Argentina, o governo estima que estão no exterior US$ 90 bilhões de dólares de argentinos. Com a abertura cambial total, sem salvaguardas e com uma pseudo-ingenuidade, nada mais fácil que operar transmutações financeiras alquímicas e desfrutar ganhos de arbitragem. Sai de vez o povo brasileiro e, parafreaseando João Ubaldo, "Viva o BC brasileiro" e sua constelação de clientes!

Carlos Lessa é professor emérito de economia brasileira da UFRJ.

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