segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Fábio Wanderley Reis:: Sociologia da polícia democrática?

DEU NO VALOR ECONÔMICO

A Secretaria de Defesa Social de Minas Gerais promoveu na semana passada o I Seminário Internacional sobre Qualidade da Atuação do Sistema de Defesa Social. O foco foi a preocupação, num mundo em que o desafio de preservar a segurança apresenta complicados aspectos novos, com como garanti-la de maneira a um tempo efetiva e democrática. Com a presença de especialistas acadêmicos brasileiros e estrangeiros de diversos países e de experientes e destacadas figuras ligadas à aparelhagem civil e militar de segurança de diferentes Estados do país, as apresentações se estenderam de temas como o papel e as funções da polícia numa sociedade democrática, ou o novo e difundido sentimento de insegurança de raízes domésticas e internacionais e suas consequências para o estado de direito, até o exame de recomendações como a de uma polícia de raízes "comunitárias" e da questão de como regular o uso da força.

Uma perspectiva brasileira a respeito do tema geral, que eu mesmo elaborei brevemente como participante da mesa de encerramento, sugere a relevância de uma sociologia política algo mais ampla do Brasil como referência comparativa de interesse para eventual "sociologia da polícia democrática". Ela se esboça com alguns dados de pesquisas executadas anos atrás no país. Quando se consideram as disposições da população quanto à ideia de democracia tomada com ênfase em sua dimensão político-eleitoral, os dados mostram que, não obstante a correlação positiva geral entre o apoio à democracia e o nível de escolaridade ou de sofisticação intelectual das pessoas, as opiniões favoráveis à democracia são mais frequentes dos que as que se opõem a ela nos diversos níveis de escolaridade e sofisticação. O apoio à democracia, como mostram pesquisas do Latinobarômetro, é em geral mais baixo no Brasil do que em vários países hispanoamericanos; mas isso não impede que o caráter convencional adquirido pela ideia da democracia política e eleitoral leve a que ela se difunda também entre nós.

Se tomamos, porém, a dimensão "liberal" que se supõe associada à ideia de democracia, e na qual se trata dos direitos civis mais diretamente relevantes para questões de segurança e da atuação policial, as coisas são diferentes - e é especialmente revelador que a pesquisa remetia explicitamente, aqui, a temas dramáticos como o linchamento de bandidos, a ação dos "esquadrões da morte" e o recurso à tortura pela polícia. Neste aspecto, não só encontramos, entre as pessoas educadas e sofisticadas, apoio significativamente menor às posições democráticas (em favor da garantia igualitária dos direitos civis para todos) do que o que se tem para a democracia eleitoral; encontramos também, nos estratos populacionais menos educados e sofisticados, maiores proporções de gente pronta a manifestar reservas à garantia dos direitos civis - ou seja, os integrantes desses estratos se mostram amplamente dispostos, com algumas qualificações, a apoiar a tortura, os esquadrões da morte, os linchamentos...

Como se encontram sobretudo nos estratos populares as vítimas da violência criminosa, cabe ligar essa disposição, em parte, à ideia de que garantir os direitos civis resultaria em "proteger bandidos". Mas essa interpretação se ajusta mal ao fato de que estão aí também as vítimas da violência que vem da própria polícia, como resultado quer da corrupção de setores dela pela proximidade e eventual articulação com o mundo do crime violento, quer do mero uso inepto e abusivo da força. De todo modo, ao menos parte da explicação para o padrão geral revelado provavelmente se deve a que, ao contrário do que ocorre com a democracia eleitoral, em nossa sociedade de forte tradição elitista a ideia de direitos civis a serem assegurados igualmente para todos está longe de ser uma ideia convencional e de enraizamento profundo na sociedade. E os mecanismos perversos em jogo permitiriam supor que o fato mesmo de haver reservas importantes aos direitos civis nas camadas mais favorecidas e educadas é talvez parte da explicação para sua penetração nos estratos populares: um certo efeito de "casta" operaria aqui, favorecendo a que as ideias "convencionais" numa sociedade desigual e elitista tendam a ser as ideias elitistas.

Isso não pode senão complicar a consideração da questão de "que fazer". A dinâmica econômica e demográfica aumenta em plano mundial a violência urbana, e a insegurança intensificada no pós-11 de setembro torna mais difícil manter o uso da força em limites compatíveis com a garantia dos direitos civis mesmo nos países de tradição liberal. Alguns desses fatores se conjugam, em nosso caso, com condições estruturais e de psicologia social próprias que representam pesado lastro negativo a ser tido em conta. Não é aceitável, naturalmente, a máxima de que nenhum esforço tópico tenha legitimidade ou valha a pena enquanto não se fizer a transformação radical da sociedade como tal - transformação que, por outro lado, inegavelmente se acha em andamento em processos profundos em grande parte independentes da vontade de quem quer que seja. É indispensável o esforço de engenharia organizacional e institucional-legal orientado pela meta de uma polícia regulada e contida, mas capaz de agir com eficácia como força repressora - e uma ponderação importante é a da necessária atenção para a reforma da Justiça, que a torne mais presente e estreite os limites em que "chamar a polícia" nos exporá fatalmente aos inconvenientes e riscos do uso da força. Mas é bom estar prevenido: o peso de nosso legado, combinado às inevitáveis turbulências da dinâmica em que ele eventualmente venha a superar-se, parece reservar-nos um amplo futuro de violência e insegurança.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da UniversidadeFederal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

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