domingo, 1 de novembro de 2009

Gilberto Dimenstein: Os furos de Lula

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Montou-se um monumental esquema de cooptação no país. O governo virou um cabide de emprego

NA QUINTA-FEIRA passada, Lula pediu aos repórteres que não interpretassem a notícia, apenas relatassem os fatos. Atacou os formadores de opinião -uma categoria que, segundo ele, perde importância. "O povo não quer mais intermediário". Já havia defendido, em entrevista à Folha, que o papel do jornalista não é fiscalizar e denunciar, só deve informar.Fico imaginando qual seria a reação dos petistas se tais frases fossem proferidas por algum presidente durante o regime militar, quando se fiscalizava o que ocorria nas cadeias e se denunciava a tortura. Ou todas as denúncias de corrupção que tanto beneficiaram, no passado, o prestígio do PT no geral e o de Lula, em particular.

Há sinais inquietantes por trás desse incômodo do presidente com a imprensa. Há um clima que podemos chamar de Estado Pós-Novo -uma dificuldade de lidar com os sistemas de intermediação do poder e um culto do poder estatal.

Como Lula é um dos mais importantes formadores de opinião -entre os mais pobres, é o mais importante-, temos um problema grave de educação para a cidadania.

Não há no Brasil, nem remotamente, um ambiente de Estado Novo, criado por Getulio Vargas. Mas o fato é que, na sua irritação crescente com a diversidade e sistemas que brecam o poder, destila-se um olhar de reservas aos mecanismos de controle do Estado -sem os quais não há democracia.

Na Venezuela, na quinta passada, Lula explicou por que o agridem: os poderosos não gostam de seus programas sociais, que priorizam os pobres. É a figura pós-nova do "pai dos pobres", de Vargas. Nessa lógica, ele não para de atacar o Tribunal de Contas da União, acusado de atrasar as obras e, portanto, impedir o crescimento do país. Note-se que, aqui, a única função do TCU é fiscalizar.

Desdenhou as advertências do Supremo Tribunal Federal sobre as viagens presidenciais, que, em essência, são eleitorais -a função do STF é zelar pelo respeito às leis.

Montou-se um monumental esquema de cooptação no país. O governo virou um cabide de emprego para sindicalistas e dirigentes de movimentos sociais, que passaram a ganhar polpudos salários. Muitos deles ganharam ainda mais vagas nos bilionários fundos de pensão.

Para satisfazer as bases partidárias e sindicais, inflou-se a folha de pagamento do governo. Os resultados desse inchaço apareceram, na semana passada, com a divulgação dos buracos nas contas públicas.

Um assunto que só interessa a meia dúzia de pessoas e não tem o menor apelo eleitoral. Quase ninguém ouve o argumento racional de que esses e outros gastos dificultam o aumento dos investimentos -esses, sim, capazes de assegurar o crescimento. Os críticos são, afinal, "insensíveis" aos pobres.

Para reduzir o poder dos "formadores de opinião", gastaram-se milhões num projeto (TV Brasil), cuja audiência é traço. Os inquietos artistas ganham o "vale-cultura", a crônica anunciada de mais um desperdício de recursos públicos.

O mensalão foi apenas uma tentativa de cooptação que deu errado, um acidente de trabalho.

Coerente, portanto, que o Palácio do Planalto indique para o Supremo Tribunal Federal não um jurista, mas um advogado do PT.

Tudo isso é aceito quase placidamente porque, além da cooptação, Lula tem uma extraordinária popularidade e prestígio internacional -há um pressuposto de que a verdade tem a ver com o número de pessoas que seguem uma personalidade ou ideia. No caso brasileiro, há um fascínio servil com o que vem de fora. É, aliás, uma visão de Lula, para quem a eleição de alguém já significa um perdão -é assim que ele apresentou, no palanque, Fernando Collor. Coloca-se na posição de Jesus, obrigado a fazer acordo com Judas.

Não acho, obviamente, que as liberdades estejam ameaçadas. Dá até para dizer que, em sua gestão, houve um notável avanço da educação -tanto quanto o que se verificou no tempo do professor Fernando Henrique Cardoso.

Deve-se à gestão Lula a obrigatoriedade de ensino, aprovada no Senado, na semana passada, dos quatro aos 17 anos. Aumentaram-se os recursos para o ensino médio e infantil. Investiu-se na ampliação da jornada escolar. A força dada ao Enem, em seu mandato, é um importante estímulo para que as escolas valorizem a reflexão. Fala-se agora que, com mais dinheiro no Orçamento do MEC, decidido também na semana passada, no Congresso, haverá bilhões apenas para formar professor.

Mas os ataques de Lula fazem muita gente acreditar que se pode fazer uma democracia forte sem a intermediação do poder -e o que garante a democracia é o controle.

PS - Apesar dos ataques de Ciro Gomes a São Paulo, Lula insiste que o ex-governador do Ceará seja candidato ao Palácio dos Bandeirantes. Não há um único indivíduo sério capaz de acreditar que Ciro tenha qualquer laço afetivo com São Paulo -e nada tem a ver com o fato de ele ter sua vida política do Nordeste. É só um projeto de interventor do Estado Pós-Novo.

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