domingo, 8 de novembro de 2009

Historiador acha lulismo pior do que peronismo

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Há no Brasil hoje um “superpresidencialismo desbussolado e pitoresco”, em que se produz “a montagem de um novo bloco de poder”, diz o historiador Carlos Guilherme Mota em entrevista a Gabriel Manzano Filho. Para ele, é algo pior que o subperonismo apontado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. “O populismo de Perón politizava, enquanto o pobrismo do Brasil avilta”.

""Defino cenário como superpresidencialismo""

Para estudioso, descolamento de Lula do PT foi ruim para a consolidação de uma cultura de partidos no País

Gabriel Manzano Filho
Entrevista Carlos Guilherme Mota: professor de História Contemporânea


O que se vê no Brasil, hoje, é um "superpresidencialismo desbussolado e pitoresco", em que se produz "a montagem de um novo bloco de poder". Talvez não seja um subperonismo, como alertou no domingo passado, em artigo no Estado, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso - mas algo pior. "Porque o populismo de Perón politizava, enquanto o pobrismo do Brasil avilta."

A comparação é do historiador Carlos Guilherme Mota, professor titular de História Contemporânea da USP (aposentado) e de História da Cultura na Universidade Mackenzie, para quem Lula pratica "uma forma cordial, mas matreira, de evitar a implantação de uma moderna sociedade civil". Respondendo ao "para onde vamos" de FHC, Mota diz que "há um fenômeno novo, estimulante, de uma nova esquerda liberal, republicana, socializante", aparecendo nos EUA, na União Europeia, no Chile e até no Brasil, com figuras como Barack Obama, Michelle Bachelet, Segolène Royal.

O ex-presidente FHC acertou ao dizer que o governo Lula conduz o Brasil para um subperonismo?

Não sei se o termo é esse, mas concordo que se trata da crise mais grave desde os anos 80. Prefiro definir o cenário como um superpresidencialismo desbussolado e pitoresco. A nação assiste, bestificada, à montagem de um novo bloco de poder. O tratamento dado ao segmento social que o governo entende por povo tem algo em comum com o dos descamisados de Evita e de Perón, mas é pior.

No que é pior?

Porque o populismo de Perón politizava e o pobrismo daqui avilta. O assistencialismo brasileiro é deprimente, pois trata esses condenados da terra como fracassados. E as condições de melhoria social - tão sonhada e ensinada por figuras como Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro ou Florestan Fernandes - são pífias. Aqui o capitalismo andou para um lado e a política social andou para outro. Basta ver que o governo não consegue encaminhar a questão dos sem-terra, por exemplo. Mas há, de fato, uma semelhança até física de um certo tipo de "neossindicalista" brasileiro de hoje com aqueles pelegos dos tempos de Getúlio Vargas, Perón, Ademar de Barros...

Como Perón nos anos 50 e nos 70, Lula tem uma enorme aprovação para si e para seu governo.

Ele consegue isso porque põe em marcha uma mobilização autoritária em que aplica, magistral e perversamente, a velha metodologia da conciliação. O autoritarismo popular ao qual FHC se referiu, praticado por Lula, é uma forma cordial, mas matreira, de se evitar a implantação democrática de uma moderna sociedade civil. Com valores e regras respeitados, que valorize a formação da cidadania.

O governo não caminha nessa direção?

Os indicadores vão bem, mas a sociedade vai mal. E o poder é algo muito tentador quando os indicadores se tornam favoráveis. O governo Lula vem instaurando o que um de seus ministros, Franklin Martins, denominava "lambança". O Brasil assiste atônito a uma guerra civil nos grandes centros urbanos e a outra, menos estridente, no campo. O presidente chegou a declarar na semana passada que não sabe como equacionar o problema do narcotráfico. À semelhança da Argentina de Perón, existe aqui o assalto às estatais, que desviou o PT de seu papel histórico de criador de um trabalhismo moderno.

FHC não poupou grupo nenhum, nem o PSDB, ao afirmar que "os partidos estão desmoralizados". Por que as oposições não conseguem fazer nada?

A sociedade brasileira, que vinha se politizando até o final do primeiro governo Lula, perdeu o pique com o aviltamento dos partidos, sobretudo o PSDB na oposição, depois da opaca atuação do ex-candidato a presidente Geraldo Alckmin e das sucessivas indecisões dos pré-candidatos. O descolamento de Lula do seu partido não foi nada educativo para a consolidação de uma cultura de partidos no País.

Há um esvaziamento dos oposições que não acontece apenas no Brasil.

Esse esvaziamento dos partidos de esquerda é um fenômeno mais amplo. Faltam lideranças firmes, falta transparência nas negociações do interesse público. A quebra de confiança nos políticos é geral. Isso resulta, em grande parte, de uma reorganização da ordem mundial, mas, sobretudo, de uma brutal concentração de poder do Estado, por toda parte. Esse fenômeno dá força a Lula para um percurso despolitizante, em que a cada semana se anuncia uma novidade, desde o biodiesel ao pré-sal, à Olimpíada... O PAC e os discursos grandiosos do presidente lembram um pouco os projetos de impacto de Ernesto Geisel. Mas os projetos militares ainda deixaram o País mais estruturado. Lula está deixando pencas de aspones pendurados em altos salários nas estatais.

Por isso o debate direita-esquerda perdeu importância?

A direita se modernizou, a globalização a beneficia com o avanço das novas tecnologias e formas de dominação turbinadas pela cultura digital. Esta acelerou a vida econômico-financeira num ritmo que pulveriza as iniciativas da velha esquerda.

Repetindo FHC, para onde o País vai?

O Brasil duplicou sua população em 40 anos, mas a elite dirigente não se planejou nem criou mecanismos para um crescimento tão desafiador. Não tivemos uma revolução burguesa criativa, como a de outros momentos da História, mas sim uma burguesia em geral predadora, associada a interesses do capital internacional. Mas a crise de agora é mais profunda. Ela vem fazendo com que algumas lideranças se deem conta de que, em uma sociedade de massas, e com a pesada herança de uma mentalidade escravista-bragantina, só pode esperar um desastre. Que virá mais cedo ou mais tarde, e em algumas cidades já começou. Falta um estadista de pulso para, nesse contexto de guerra civil disfarçada, mobilizar a Nação.

Perdeu-se, ao que parece, o caminho para uma social-democracia. Como recuperá-lo?

O que falta a partidos social-democratas, como PSDB e PPS imaginam ser, um conteúdo programático e uma liderança - coisa que FHC cobrou com ênfase. Mas há lideranças surgindo, novas gerações de professores, juízes, promotores, pesquisadores, militares, profissionais liberais com boa formação e visão moderna do País.

Como a política detesta o vácuo, vai aparecer alguma coisa no lugar?

Acredito que sim. Há um fenômeno novo, muito estimulante, de uma nova esquerda liberal, republicana, bem formada e socializante. Ela vem aparecendo nos EUA, na União Europeia, no Chile, aqui mesmo no Brasil - onde é menos visível porque, neste momento, Lula ofusca tudo. Obama, Michelle Bachelet no Chile, Segolène Royal na França, são algumas pontas desse iceberg.

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