segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Marco Aurélio Nogueira:: Mato Grosso do Sul: a construção de um Estado

FONTE: GRAMSCI E O BRASIL

Marisa Bittar. Mato Grosso do Sul: a construção de um estado. Regionalismo e divisionismo no Sul de Mato Grosso. Campo Grande: Ed. UFMS, 2009. 2 v.

Nossa época vive sob o signo da crise e da mudança acelerada. Tudo parece convulsionado e em efervescência, ainda que muita coisa não mude e que partes enormes da população mundial vegetem em um universo de miséria e horror. As sociedades avançam de forma meio “despolitizada”, sem densidade cívica, com muita democracia, mas pouco espírito republicano. O que é afinal o “mundo público” hoje, para a maioria das pessoas e dos atores sociais? Um local onde todos podem fazer o que bem entendem, em que tudo pertence a todos e a cada um, ou um ambiente de regras vinculatórias claras, que fixam direitos, mas também impõem obrigações e deveres?

O futuro parece hoje suspenso no ar, tragado pela diluição das esperanças e das utopias, pela reiteração incessante das desigualdades e dos poderes que ferem mesmo quando não conseguem ser produtivos. Na base desse processo, porém, continuam a correr os rios da vida, impondo novidades e desafios sem cessar, mantendo ativa a positividade das experiências humanas.

Nesse contexto, a figura do intelectual ganha peso e relevância estratégica. Como o mundo ficou complicado demais, surpreende e confunde, chega mesmo a atemorizar, ele precisa ser pensado, traduzido, explicado em suas múltiplas determinações e em seus diferentes ritmos, mediante suas distintas racionalidades e sensibilidades, de modo a que seja concebido como um todo, e não apenas como um somatório de fragmentos. É difícil imaginar a construção do futuro sem a dedicação intensiva dessa figura qualificada para esclarecer, educar, agitar ideias e valores, totalizar.

Isto vale especialmente para aquele segmento que podemos chamar de intelectual público, que não deseja dialogar somente com seus pares nem se trancafiar em instituições distan­ciadas dos tormentos e paixões da vida real, mas que deseja, como falava a poesia de Milton Nascimento e Fernando Brant, “ir aonde o povo está”. Ele se dedica a articular em um único corpo o ideólogo e o especialista, o técnico e o humanista, o teórico dos princípios abstratos e o educador que esclarece. Este é o intelectual que um marxista italiano das primeiras décadas do século XX, Antonio Gramsci, definiu com precisão e força evocatória: um agente de atividades gerais que é portador de conhecimentos específicos, um especialista que também é político e que sabe não só superar a divisão intelectual do trabalho como também reunir em si “o pessimismo da inteligência e o otimismo da vontade”.

O intelectual público somente pode se realizar a partir da perspectiva da política. Mas não da política como sinônimo de poder ou de mundo dos profissionais da política, mas como campo onde se disputam as ideias a respeito do viver coletivo e onde se define a maior ou menor virtuosidade da convivência entre as pessoas e os grupos.

Especialmente nos estudos históricos e sociológicos — mas não somente neles —, uma pesquisa científica revela sua grandeza e sua relevância quando consegue preencher alguns requisitos básicos, complexos e desafiadores em si mesmos.

Ela precisa, antes de tudo, atender à expectativa de descobrir algo novo, ou seja, alcançar interpretações que modifiquem o modo de pensar a respeito de certos fatos e realidades. Precisa, também, sustentar uma boa dose de originalidade, demarcar de algum modo uma nova fronteira teórica, revelar aspectos e nuances mal conhecidos, ou mesmo desconhecidos, contribuindo, desse modo, para avanços e revisões. Precisa, por fim, but not least, refletir a máxima busca de rigor, tanto no que diz respeito à objetividade quanto em termos da adoção de procedimentos metódicos, lógicos e conceituais reconhecidos como válidos pela área de conhecimento em questão. E, claro, fazer isto sem produzir um texto hermético demais, inacessível ou incompreensível. Sua força também depende da sua escrita.

Deve haver nela um mix bem-sucedido de convicção, ousadia e determinação. O pesquisador trabalha com hipóteses que pretende confirmar, e que o desafiam, muitas vezes o iludem e o distraem. Esbarra em valores e convicções cristalizadas — em si mesmo, no mundo que o cerca e no próprio objeto que investigará —, que muitas vezes se manifestam como demônios que o cegam e confundem. Deve, por isso, enfrentar com ousadia as barreiras que a ele se antepõem, dispor-se a contestar e contrastar opiniões consolidadas, correr o risco de morrer na praia e pregar no deserto. Sapere aude é o dístico que melhor adorna o pórtico de sua morada.

Os dois volumes com que Marisa Bittar mergulha na história de Mato Grosso do Sul preenchem com folga e brilhantismo esses requisitos. São o resultado de uma pesquisa portentosa, dedicada, minuciosa, à qual a pesquisadora dedicou muitos anos de trabalho — de excitação, dúvidas, revelações e descobertas, sofrimento, empenho e prazer —, no correr dos quais tomou conta, soberana e inequivocamente, do problema instigante que se propôs.

Atuando como competente historiadora, Marisa Bittar definiu com clareza o foco de sua pesquisa.

De que maneira as classes dominantes do sul de Mato Grosso se organizaram para desenhar e construir uma estrutura político-administrativa que refletisse seu poder e seus interesses? Como atuaram politicamente as elites dirigentes sul-mato-grossenses, ao longo de mais de um século, para reforçar a condição econômica daquelas classes, compor uma hegemonia e, por fim, criar seu próprio estado? A “saga divisionista” foi por ela acompanhada quase passo a passo, mediante um exaustivo trabalho de manuseio de fontes — jornais, arquivos pessoais, papéis variados, livros, revistas, entrevistas detalhadas. Marisa pôde, assim, colocar às claras o peso específico do regionalismo, os interesses e valores que sustentaram a batalha pela formação do novo estado, os traços de psicologia social que animaram o quadro geral, a contribuição decisiva da geopolítica militar que, no âmbito do sistema derivado da ditadura de 1964, acabou por decidir a favor da criação de Mato Grosso do Sul em outubro de 1977.

Uma de suas conclusões expõe por inteiro o eixo de sua investigação: “O sentimento de que o sul deveria se separar do restante do então estado de Mato Grosso pareceu ser aos sulistas a solução, mas nunca chegou a ser consenso nem mesmo entre a classe social que a engendrou: os grandes proprietários da terra”.

A sua foi uma pesquisa de história política, mas em sentido amplo. Há muita, e boa, sociologia nela. Há muita, e boa, teoria política. Há muita elegância estilística e vigor literário nela. Marisa Bittar é historiadora por vocação e convicção, não tanto por formação especializada, ainda que tenha muito disto também.

Em decorrência, seu texto tem sabor original, seduz o leitor logo nas primeiras linhas, levando-o pelo cenário quase épico de uma longa construção política e cultural. Ao percorrê-lo, vamos descobrindo um Mato Grosso e um Mato Grosso do Sul que pareciam ocultos pelo silêncio ou pelo desconhecimento, mal concatenados em uma explicação totalizante e reveladora. O percurso que vai “do Sul de Mato Grosso a Mato Grosso do Sul” e se completa no livro 2, com o estudo das elites dirigentes e de suas práticas políticas, é contagiante e esclarecedor. Com ele, aprendemos a conhecer a estrutura desse importante pedaço do Brasil e muita coisa da própria história brasileira.

Penso, como Marisa Bittar, que há uma recompensa adicional no fato de sua pesquisa ser publicada no momento mesmo em que Mato Grosso do Sul completa 30 anos de existência.

As efemérides cumprem a função de chamar a atenção para os tempos longos — para os processos lentos, tensos e contraditó­rios de que é feita a História —, como se quisessem nos lembrar de que as coisas não começaram ontem nem caíram do céu, mas têm raízes profundas e personagens de carne e osso, que merecem ser resgatadas e precisam ser conhecidas.

A publicação deste belo livro, em um momento emblemático da história do estado, é a melhor forma que a inteligência teórica e o intelectual público encontraram de se fazer presentes nos debates e reflexões que deverão abrir o futuro de Mato Grosso do Sul.

Conhecendo e admirando Marisa Bittar há mais de 25 anos, creio poder imaginar como ela se sente: com a consciência de estar realizando a missão do intelectual (aquele de Gramsci, a quem ela, como eu, prestamos tantos tributos), missão esta que se materializa toda vez que se põem ao alcance do público novos e mais rigorosos conhecimentos a respeito daquilo que faz a vida ser vida.

Marco Aurélio Nogueira, professor de Teoria Política da Unesp/Araraquara, é autor, entre outros, de Em defesa da política (2001), Um Estado para a sociedade civil (2004) e Potência, limites e seduções do poder (2008). Este texto foi publicado como prefácio para o livro de Marisa Bittar.

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