sábado, 21 de novembro de 2009

Miriam Leitão:: Ele vai, por que não?

DEU EM O GLOBO

Caetano é assim mesmo. Crítico dos críticos, opiniões ferinas, ideias densas e franqueza extrema.

Que país não precisa de alguém assim? Ele avisou a que vinha logo no começo da sua rica e produtiva vida artística: “Eu vou, por que não?” Mesmo quando discordo dele, Caetano me faz pensar. E pensar é sublime. Caetano tem um jeito.

Ele foi desta vez num nervo exposto

Ninguém pode falar que Lula estudou pouco. Só Lula pode proclamar isso o tempo todo. Ele transforma seu sucesso em vitórias de quem não estudou sobre quem estudou. Uma estranha luta de classes. De aula.

De um lado os bons, os que não estudaram. De outro os insensíveis e incompetentes, os que estudaram. É isso que está implícito nos discursos. Confira as palavras dele, ditas na sextafeira, dia 6, no dia seguinte ao da entrevista de Caetano a Sonia Racy, numa crítica ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso: — Um intelectual ficar assistindo a um operário que tem o quarto ano primário ganhar tudo o que ele queria ter ganhado e não ganhou por incompetência é muito difícil mesmo.

Se tivesse sido só essa vez, era a briga política apenas.

Mas ele em vários contextos, inúmeras vezes disse algo semelhante, como: “Tem gente que pensa que inteligência está ligado à quantidade de anos de escolaridade que você tem. Nada mais burro que isso.” Em outro: “Vão morrer sem entender por que um metalúrgico que não tem diploma universitário é capaz de fazer mais do que eles.” Enfim, a lista é interminável; a mensagem, a mesma: estudar não faz diferença.

Imagina o impacto disso na cabeça de milhões de crianças e adolescentes no Brasil! Estudar para quê? Se Lula é tudo isso, respeitado aqui e lá fora, e tem apenas o quarto ano primário? Saber inglês para quê? Se Lula vive dizendo que não precisou de inglês para chegar aonde chegou? Isso é perigoso.

É mandar os jovens andarem na contramão da era do conhecimento.

A formatura como torneiro mecânico, que emocionou a dona Lindu, era uma estupenda vitória para a família, num país que sempre desprezou a educação dos pobres. Lula foi, de início, vítima dos mesmos erros educacionais do Brasil que ferem outros jovens. As estatísticas permanecem sendo vergonhosas. Entre os 20% mais pobres, a escolaridade dos homens é hoje de menos de cinco anos. Lula é filho inicialmente desse Brasil que não incluiu os pobres na escola. Depois, a militância sindical foi abrindo portas para ele. Muitos outros brasileiros, quando tiveram chance, ainda que mais tarde, voltaram a estudar.

O que o levou a fazer as opções que fez é assunto privado. O que é assunto de todos é a mensagem que passa.

Lula deveria usar sua liderança para dar o incentivo oposto ao que tem dado nas inúmeras ocasiões em que elogiou-se por ter estudado pouco e conseguido tanto.

Não há essa relação causal: ele conseguiu tanto porque estudou pouco. A causa do seu sucesso é outra: ele foi tão longe, apesar de ter estudado tão pouco, porque é inteligente e persistiu.

O presidente outro dia falou uma palavra mais difícil e depois brincou que Caetano não ia mais chamálo de burro. Louve-se seu bom humor, mas Caetano não disse isso. Na mesma entrevista ele disse que: “Ter tido Fernando Henrique depois Lula é um luxo.

Ambos saíram melhor do que a encomenda.” Na mesma entrevista, ele elogia as decisões de Lula na área econômica, como melhores do que as que José Serra tomaria se tivesse sido eleito em 2002.

Caetano contrapôs ao exemplo dele o da senadora Marina Silva. E de novo acertou.

Como Lula, Marina veio da extrema pobreza. Teve ainda mais obstáculos no caminho da escola. Alfabetizouse com 17 anos ao ir para Rio Branco tratar-se das enfermidades múltiplas que teve na infância. E nunca mais parou de estudar.

Numa entrevista que fiz com Marina Silva, perguntei como tinha conseguido se alfabetizar no Mobral tão tarde e, mesmo assim, ter chegado à universidade. “Quando vejo uma fresta eu passo por ela”, me respondeu. A história de Marina com a escola é inspiradora, seu exemplo é soberbo e deve ser exibido aos jovens do Brasil. E, como disse Caetano, ela tem fala elegante, bonita. “A vitória ou a derrota se mede na história”, disse ela, quando saiu do ministério. Agora, que incluiu a questão ambiental e climática no programa de todos os candidatos, e nas decisões do governo, quem discordaria que a frase, além de bonita, foi profética? O que me incomoda nas críticas veladas ou explícitas ao Caetano é, primeiro, que pouca gente se deu ao trabalho de ler toda a entrevista e entender a complexidade da mensagem que ele passou. Segundo, esse clima de endeusamento do presidente. Na carta que ele escreveu ao “Estadão”, Caetano fala desse veto a tudo que não seja “adulação a Lula”. Não existe tema tabu, e é bom ter um Caetano no país para, com sua irreverência, avisar que é proibido proibir. E o aviso dele veio em boa hora. O filme que projeta Lula como o herói sem defeitos vai para as telas exatamente quando ele precisa do mito para transferir votos para a sua candidata.

Outro dia sonhei com dona Canô. Do nada, sonhei com ela. Não a conheço, não tive esse imenso prazer, mas quem não ama dona Canô? Também amo. No sonho, conversava com ela sobre as sapatilhas de princesa que ela ganhou no aniversário de 100 anos. Em entrevista ao GLOBO, ela discordou do Caetano, mas avisou que não puxaria a orelha dele, sendo a única que teria esse direito. “É o jeito dele”, disse.

O jeito dele faz bem. Sacode, faz pensar, provoca, incomoda, fica na memória, divide opiniões. Isso é bom, esteja você de que lado estiver.

Caetano vai ser sempre assim. Por que não?

Com Alvaro Gribel

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