sábado, 7 de novembro de 2009

Vitória de Judas :: Cristovam Buarque

DEU EM O GLOBO

Desconsiderando o deslize da brincadeira com assuntos sagrados, o presidente Lula acertou ao dizer que, no Brasil, os governantes são obrigados a fazer aliança de anjos com demônios.

Mas não completou o raciocínio, esquecendo-se de dizer que, desde o início de nossa História, infelizmente, são os demônios que vencem, dominando os anjos.

Na passagem do século XVIII para o XIX, enquanto nos países vizinhos os líderes nacionais lutavam pela independência e pela república contra a coroa e o colonialismo espanhol, no Brasil preferimos aliança com o próprio inimigo: o império português. Declaramos a Independência mantendo um imperador, filho do rei da metrópole de quem queríamos nos libertar. Os anjos e os demônios se aliaram. Não fizemos guerra de libertação, mas continuamos meio colônia.

Levamos mais 60 anos para abolir a escravidão, utilizando aliança entre abolicionistas e escravocratas, a ponto de a Lei da Abolição ter sido encaminhada ao Parlamento por um governo conser vador. A aliança entre os santos abolicionistas e os demônios escravocratas impediu a necessidade de guerra civil, mas não permitiu distribuir terra aos escravos, nem dar escolas aos filhos deles.

O mesmo aconteceu na Proclamação da República. A República foi feita por um pacto que destituiu o imperador, escolheu um presidente, mas manteve a sociedade dividida em duas camadas tão distintas quanto nos regimes imperiais. De um lado, a elite privilegiada, nobres; do outro, uma massa excluída, plebeus. Os santos e os demônios se uniram, o império acabou, mas a sociedade pouco mudou. No lugar de cidadãos, continuamos súditos. Por cem anos, só tivemos presidentes eleitos pela elite para servir à elite.

Foi preciso esperar o ano de 2002 para eleger um presidente filho do povo e comprometido com o povo.

Mas, como ele reconhece, obrigado a aliar-se aos judas. Não disse, porém, que ele se aliou para seu governo servir aos judas, e não para os judas servirem ao seu governo. Foi como se Judas fizesse acordo para não trair Cristo, salvando-O da Cruz, mas impedindoO de salvar a Humanidade.

Judas vencendo.

O presidente filho do povo mostrou ser melhor do que os presidentes filhos da elite, mas fez alianças para não reformar a estrutura social do Brasil. Foi mais generoso, ampliando um programa de transferência de renda para os pobres, foi capaz de um diálogo fraterno, antes inexistente, com os trabalhadores e o povo. Mas seguiu o mesmo padrão do passado, aliando anjos e demônios para não mudar o país.

Os judas conseguiram manter a corrupção, mesmo que o presidente seja honesto. A educação de base, verdadeiro instrumento da transformação, continuou na mesma lenta evolução, sem qualquer gesto revolucionário que assegurasse aos pobres escolas iguais àquelas dos ricos. O analfabetismo manteve-se no mesmo patamar. O modelo produtivo não mudou na busca do equilíbrio ecológico.

Nossa industrialização não foi reorientada para produtos de alta tecnologia. Sem necessidade de censura, prisão ou tortura, as discussões ideológicas foram anestesiadas: não mais debates de intelectuais; não mais gritos de estudantes. As alianças acabaram com as reivindicações, críticas e denúncias dos partidos de esquerda. Tudo como os judas desejam e impõem há dois séculos.

Na sua perspicaz afirmação sobre a necessidade de alianças espúrias, faltou ao presidente dizer que os judas fizeram acordo a favor deles. Judas não apenas venceu, ele rebaixou os anjos.

O grave é que, na nossa História, a traição não tem sido feita pelos judas, mas pelos anjos que passam a aceitar e praticar a corrupção, o medo de revolução, a manipulação da opinião pública, o abandono de sonhos como a possibilidade de os filhos do povo terem escolas iguais às escolas dos filhos da elite.

Se Cristo e Judas tivessem feito acordo, o mundo não teria tido a Salvação; no Brasil, os acordos dos anjos com os demônios deixaram o Brasil sem revolução. No lugar de trinta moedas e suicídio, nossos judas governam para si e ficam rindo de nós e das metáforas feitas com eles.

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