quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Editorial :: Revanchismo

DEU EM O GLOBO

A conhecida ambiguidade do presidente Lula deriva de uma característica da montagem do seu governo, uma estrutura sem unidade, composta de capitanias hereditárias, sob controle de agrupamentos políticos de tendências disparatadas.

Há segmentos sob as ordens de conservadores, existem áreas doadas a organizações ditas sociais, e cargos influentes cedidos a egressos da luta armada dos tempos da ditadura. Daí a proverbial ambiguidade de Lula, obrigado a adotar um discurso multifacetado, para contentar a todos. Ou pelo menos continuar de pé sobre esta geleia político-ideológica.

Mas nem sempre Lula consegue reproduzir o chinês de circo que tenta manter pratos rodando na ponta de varetas de bambu. O grave caso da proposta do Programa Nacional de Direitos Humanos, razão do pedido de demissão do ministro da Defesa, Nelson Jobim, e dos chefes militares, significa que o presidente não conseguiu concluir com êxito mais este número de equilibrismo. Pediu a todos para ficar e embarcou rumo a alguns dias de descanso na Bahia — se é que isto será possível — , deixando em Brasília o embrião de uma crise militar, risco que se pensava fazer parte do passado. O problema era previsível, pois há algum tempo um desses núcleos do governo, o de esquerda, tenta rever a Lei da Anistia.

Autoridades de primeiro escalão, Paulo Vanucchi, ministro da Secretaria de Direitos Humanos, e Tarso Genro, ministro da Justiça, estão na linha de frente da operação.

E, ao assinar o decreto do tal programa, encaminhado a ele por Vanucchi, Lula avalizou a pressão do grupo pela revisão da anistia, em nome da punição de torturadores etc. Com razão, Jobim e os comandantes Enzo Peri (Exército), Júlio Moura Neto (Marinha) e Juniti Saito (Aeronáutica) colocaram os cargos à disposição.

Reabrir a questão é recriar uma zona de turbulência já superada pela sociedade brasileira. Por ter sido a anistia recíproca — para militares e militantes — , se, por um delírio, resolverem revê-la, os crimes cometidos por guerrilheiros, alguns hoje em cargos elevados na República, também precisarão ser reexaminados.

Nessa discussão não cabe fazer comparações com outros países latino-americanos, onde a anistia foi forjada com o objetivo de livrar da Justiça apenas um lado, os militares. No Brasil, ao contrário, a Lei da Anistia surgiu de uma negociação do regime com a oposição, para facilitar a caminhada de volta à democracia. Cabe agora ao presidente Lula fugir das usuais contemporizações com falanges do governo, dar um basta a essas reiteradas tentativas de revanchismo, e, como prometeu a Jobim, rever o decreto.

Não há alternativa.

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