Trazer a desigualdade a níveis de Primeiro Mundo levaria 20 anos, diz especialista
Estudioso da desigualdade de renda e no campo há mais de 40 anos, com pós-doutorado na Universidade de Yale e da Califórnia, o professor do Instituto de Economia da Unicamp e da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da USP, Rodolfo Hoffmann fez as contas e constatou que a desigualdade brasileira só chegará a níveis razoáveis em, no mínimo 20 anos, tomando por base o ritmo mais intenso da melhoria na distribuição de renda de 2001 a 2008. Para ele, uma reforma da Previdência seria mais eficiente no combate à má distribuição de renda do que a reforma agrária, mas ele frisa que é a favor dela.
Citado na bibliografia dos maiores especialistas de desigualdade no Brasil, o também econometrista Hoffmann identificou um erro do IBGE no cálculo da desigualdade no campo. Na época, o censo agropecuário, divulgado pelo IBGE em setembro, mostrara alta na desigualdade na ocupação da terra. O estudioso, mesmo sem os dados originais que geraram as tabelas da pesquisa, acertou o cálculo e o IBGE soltou uma errata. Na verdade, a desigualdade tinha ficado estagnada.
Cássia Almeida
O GLOBO: Quais os fatores que explicam a queda da desigualdade de renda que vem desde 2001?
RODOLFO HOFFMANN: Os dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), realizada anualmente pelo IBGE, mostram uma queda sistemática da desigualdade da distribuição da renda domiciliar per capita no Brasil desde 2001. No mercado de trabalho, observa-se que há clara tendência de queda desde 1995. O crescimento real do salário mínimo a partir de 1996 certamente contribuiu para isso. De 1999 a 2008 o valor real do mínimo aumentou 61%. Além de condicionar as remunerações mais baixas no mercado de trabalho, é o piso das aposentadorias e é, também, o valor do BPC (Benefício de Prestação Continuada), paga aos idosos de famílias pobres. Não há dúvida de que a criação e expansão dos programas de transferências de renda, como o Bolsa Escola e, depois, o Bolsa Família, contribuíram para a redução da pobreza e da desigualdade. O crescimento da escolaridade das pessoas ocupadas e a menor diferença entre rendas de moradores das capitais e do interior, ou de áreas urbanas e áreas rurais também influenciaram. Em caráter mais especulativo, podemos perguntar até que ponto essas mudanças no ambiente sócio-econômico são consequências de longo prazo da redemocratização do país e da estabilidade monetária.
Qual o papel da redemocratização e da estabilidade monetária na queda da desigualdade?
HOFFMANN: Hoje, quando um economista analise a mudança na distribuição da renda no Brasil entre 2001 e 2008, é razoável que ele considere apenas os fatores que afetam o mercado de trabalho e as transferências governamentais, pois não houve, nesse período, uma modificação drástica no sistema político. Parece-me óbvio que isso não se aplica à análise do aumento da desigualdade entre 1960 e 1970, constatada por meio da comparação dos dados dos Censos Demográficos realizados nesses dois anos, pois ocorreu o golpe militar em 1964 e uma radicalização do processo em 1968. Eu mesmo fui preso de maneira totalmente arbitrária em abril de 1964, apenas por ser considerado um estudante “subversivo”.
Permaneci preso por 50 dias e posso testemunhar que os demais presos “políticos” em Piracicaba eram todos líderes sindicais. Na medida em que essa repressão aos sindicatos ocorreu em todo o país, é claro que isso reduziu o poder de barganha dos trabalhadores e contribuiu para aumentar a desigualdade da distribuição da renda. É certo que mecanismos de mercado e a escassez de mão de obra mais qualificada contribuíram para o aumento da desigualdade durante o período de rápido crescimento econômico na década de 60, mas é inegável o papel relevante da repressão aos movimentos sindicais, da falta de liberdade, da censura... A abertura não causou uma imediata redução na desigualdade, que se caracteriza por certa inércia. Mas a redemocratização foi essencial para as mudanças que ocorreram posteriormente. A inflação elevada, até meados de 1994, prejudica particularmente grupos pobres da população, contribuindo para aumentar a desigualdade.
Quando teremos um Índice de Gini razoável?
HOFFMANN: Apesar da queda recente, o Brasil continua se caracterizando por apresentar elevado grau de desigualdade na distribuição da renda. Entre 2001 e 2008 o índice de Gini (mede a desigualdade e quanto mais próxima de zero melhor a distribuição) da renda domiciliar per capita caiu de 0,594 para 0,544 ou 0,050 em sete anos. Se considerarmos como “razoável” um índice de Gini igual a 0,4, será preciso manter esse ritmo por mais 20 anos para alcançar a meta.
Com um Gini de 0,4 chegaríamos ao patamar de desigualdade de quais países?
HOFFMANN: No relatório de Desenvolvimento Humano 2007/2008, publicado pela ONU, o Brasil consta com índice de Gini a 0,570, com dados de 2004. Para os Estados Unidos o índice, em 2000, é 0,408. Na América do Sul temos a Argentina com 0,513, o Chile com 0,549 e o Uruguai com 0,449. O índice é 0,326 no Canadá, 0,327 na França, 0,385 em Portugal, 0,250 na Suécia e 0,249 no Japão.
O senhor acredita que a queda da desigualdade é sustentável ou corremos o risco de ver a concentração aumentar novamente?
HOFFMANN: Existe o risco de interrupção e até de reversão da redução da desigualdade. Como cidadão, tendo a ser otimista e quero acreditar que é difícil que ocorram mudanças políticas e econômicas que levem a um aumento da desigualdade. Por outro lado, a continuidade do processo de redução de desigualdade depende, em parte, de mudanças na legislação que afetam grupos com interesses corporativistas e forte poder de lobby sobre o legislativo.
Como chegamos a esse patamar tão alto de desigualdade no Brasil?
HOFFMANN: Ele foi sendo estabelecido ao longo de sua história, desde a distribuição de terras na forma de sesmarias, antes da Independência. Não houve uma “revolução” que abalasse os poderes conservadores. A proclamação da independência foi feita pelo próprio filho do rei. A abolição da escravidão e a proclamação da República também foram feitas com o consentimento dos poderes dominantes.
Como seria possível reduzir essa desigualdade tão alta no campo? O agronegócio tem contribuído para piorar essa situação?
HOFFMANN: Utilizando os dados da Pnad de 2008, verifica-se que a distribuição da renda de todos os trabalhos das pessoas ocupadas no Brasil tem média de R$ 1.036 (em reais de setembro de 2008) e índice de Gini a 0,521. Para os ocupados na agropecuária esses valores são R$ 615 e 0,531. Verifica-se, portanto, que a desigualdade é relativamente elevada no setor. Mas é incorreto pensar que as rendas agrícolas têm efeito importante no sentido de aumentar a desigualdade no país. A remuneração média na agropecuária é relativamente baixa, correspondendo a 63% da remuneração média na indústria e a 54% no setor de serviços. Os ocupados na agropecuária representam apenas 11% do total de pessoas ocupadas e auferem 7% do total da remuneração das pessoas ocupadas. Como o total dos rendimentos de aposentadorias e pensões corresponde ao dobro do valor da remuneração dos ocupados na agropecuária, posso afirmar que uma reforma do sistema previdenciário tem maior potencial de reduzir a desigualdade da distribuição da renda do que a reforma agrária. Isso não implica em ser contrário à reforma agrária. Considero importante facilitar o acesso à terra a quem possa cultivá-la. Não me parece que o agronegócio seja intrinsecamente pior do que empresas de outros setores. É óbvio que a fiscalização das relações trabalhistas é mais difícil na área rural. Essa fiscalização melhorou e precisa ser intensificada.
Por que a reforma da previdência teria mais efeito do que a reforma agrária?
HOFFMANN: O maior efeito potencial se deve ao fato de envolver uma parcela maior da renda, que contribui mais intensamente para a desigualdade. De acordo a Pnad de 2008, a renda de aposentadorias e pensões representava 18% da renda total declarada, ao passo que a renda dos ocupados na agropecuária corresponde a 7%. Essa relação mudou muito nas últimas quatro décadas, e vai continuar mudando. Isso não significa que a reforma agrária deva ser descartada. Trata-se, apenas, de reconhecer que sua importância relativa não é a mesma de 40 anos atrás.
Como aumentar a velocidade da queda da desigualdade no Brasil?
HOFFMANN: O imposto sobre a renda é o único imposto importante que é claramente progressivo (incide sobre os relativamente ricos). Mas a participação do imposto sobre a renda no total de tributos no Brasil é relativamente pequena, em comparação com países desenvolvidos. Isso faz com que o sistema tributário brasileiro contribua pouco para reduzir a desigualdade. Para tornar o sistema mais progressivo é necessário aumentar o peso relativo do imposto sobre a renda e reduzir a importância dos impostos indiretos, como os sobre o consumo, que são regressivos. Uma maneira de caracterizar a elevada desigualdade da distribuição da renda no Brasil é constatar que os 10% mais ricos ficam com 43% da renda total, conforme dados sobre a renda domiciliar per capita fornecidos pela Pnad. Adotando uma linha de pobreza de R$ 200 per capita, verifica-se que há 52 milhões de pobres, correspondendo a 28% da população. Para elevar a renda dessas pessoas ao nível da linha de pobreza, bastaria transferir para elas um montante que corresponde a 4% da renda total declarada, ou 10% da renda dos 10% mais ricos. Fazer “transferências” no computador é relativamente fácil. Mas é claro que está muito longe de ser fácil desenvolver um processo político que leve a essas transferências.
Há necessidade de melhorar a qualidade do ensino. Apenas trabalhadores bem qualificados obterão, no futuro, bons rendimentos. Creio que o aumento da remuneração dos professores não é suficiente, sendo necessário criar estruturas que incentivem o esforço e desempenho dos bons professores.
Quais governos avançaram mais no combate à desigualdade?
HOFFMANN: É evidente que tanto o governo Fernando Henrique como o governo Lula realizaram políticas que contribuíram para a redução da desigualdade. É difícil afirmar qual dos dois contribuiu mais, pois há modificações cujos efeitos só se manifestam alguns anos depois, como é o caso das melhorias no ensino básico feitas no governo FHC. Simplesmente comparar a redução no índice de Gini de 1995 a 2002 com a redução de 2002 a 2009 não é um procedimento apropriado. Os programas de transferência de renda têm, obviamente, um efeito imediato sobre a distribuição de renda. Eles tiveram início no governo FHC, mas o governo Lula foi o responsável pela sua audaciosa expansão. Uma decisão correta, em minha opinião. Mas não devemos esquecer que as transferências, incluindo a Bolsa Família e o BPC (Benefício de Prestação Continuada) explicam apenas cerca de 20% da redução da desigualdade na última década. Há certo grau de continuidade nos dois governos, e espero que o próximo governo continue contribuindo para reduzir o elevado nível de desigualdade existente no país.
“Uma reforma do sistema previdenciário tem maior potencial de reduzir a desigualdade do que a reforma agrária"
“O sistema tributário brasileiro contribui pouco para reduzir a desigualdade"
Política e cultura, segundo uma opção democrática, constitucionalista, reformista, plural.
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