terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Wilson Figueiredo :: Uma dupla do barulho

DEU NO JORNAL DO BRASIL

Há mais semelhança entre os presidentes Lula da Silva e Jânio da Silva Quadros (além do sobrenome) do que supõe o brasileiro distraído, para quem a sucessão presidencial até hoje não disse a que veio e cujo saldo, a esta altura, não repõe o que o primeiro mandato desperdiçou. O foco é outro: o insubstituível terceiro mandato continua tão difícil de remover do caminho da democracia quanto as voltas ociosas em torno das reformas eternamente proteladas.

Entre um que renunciou aos sete meses e o outro, aparentemente atarantado pela aproximação da hora de deixar o cargo (e voltar ao ócio, se possível, com dignidade), a diferença é o processo aparentemente eleitoral que ainda não dá para perceber onde vai desembocar. O que vai ficando claro é que o terceiro mandato, consequência fatal da reeleição, está para o presidente Lula como a renúncia esteve para o ex-presidente Jânio Quadros, desde vereador até a Presidência despejada pela janela aos sete meses de mandato.

Vistos em perspectiva, Lula e Jânio se tornaram inseparáveis por força das circunstâncias inteiramente favoráveis à proliferação de suspeitas em relação a ambos. A renúncia era algo exclusivo de Jânio, enquanto o terceiro mandato já não depende do presidente Lula. Estava no ar e nas cabeças, e agora aguarda na gaveta nova oportunidade que pode não se apresentar. Lula não tem como aceitá-lo e, menos ainda, como recusá-lo, se voltar à discussão. Enquanto isso, o presidente vai e vem, língua solta e imaginação ardente. A renúncia também não desgarrava de Jânio, mas o terceiro mandato oferece a sombra sob a qual Lula está resguardado da suspeita, por não ter como evitar o que se passa em outras cabeças. Sombras frondosas são irresistíveis.

Não obstante, o mais das vezes, fatais.

Depois da vertiginosa carreira que o levou, em linha reta, de vereador a presidente da República, Jânio deu por cumprido o destino e encerrou definitivamente seu primeiro e único mandato presidencial, depois de cobiçá-lo por 12 anos. Lula resistiu ao cerco das circunstâncias que configuram com as nuvens situações meteorológicas sujeitas a interpretações sobrenaturais. Não pode ser sinal de normalidade uma situação republicana em que o presidente chega a 84% de reconhecimento popular, enquanto encaminha a própria sucessão de maneira aparentemente impessoal, por interposta candidatura. Nenhum pretendente pode competir com o índice de popularidade que Lula ostenta por fora, enquanto a opinião pública for bancada pelas pesquisas.

Pelo menos, até que os deuses providenciem uma versão científica para distinguir seus preferidos. Restam apenas, como garantia democrática, a margem de acerto do cidadão e a sabedoria dos eleitores.

A renúncia, quando fazia parte do pacote do vereador Jânio Quadros, atendia perfeitamente às necessidades naquele ciclo de euforia, realmente histórico, no despertar da classe média para a sociedade de consumo. Sob a Constituição de 46, que cometeu a imprudência de esticar a democracia a ponto de eleger separadamente presidente e vice-presidente da República (e subestimar o milagroso princípio da maioria absoluta), Jânio disparou, movido pela renúncia que o acompanhava aonde fosse e não faltaria ao presidente. Renúncia é irrecusável pela própria natureza e, ao contrário do que pensava Jânio, irreversível. De alguma forma, também o terceiro mandato pode se tornar irrecusável por parte de Lula. Ninguém sabe. A aquiescência está implícita nas pesquisas. Na margem de previsibilidade, resta pouco.

Nesse sentido é que se pode, mal comparando, associar Lula e Jânio Quadros, por cima da patologia política de cada um deles. De diferente mesmo, temos que Lula não passou de aprendiz até tomar a palavra e aposentar todo o comitê que falava por ele e o interpretava nos casos omissos. Encanta-se diariamente com a própria voz e as alucinações dos improvisos. Este foi o Lula que passou a contar em cena, seja ou não candidato, conforme atestam as pesquisas com as quais a ciência política ainda não foi capaz de aferir o que existe realmente entre a anônima opinião pública e o voto do eleitor na boca da urna.

O Brasil não parece por enquanto correr risco de entrar em rota de colisão com as pesquisas de opinião pública e a sucessão, mas nem por isso pode negligenciar a vacinação preventiva, oral e escrita. Não fosse a iniciativa solitária de Lula, recusando uma hipótese alternativa, a liberação dos mandatos presidenciais por via plebiscitária já teria feito um estrago de proporções continentais.

Wilson Figueiredo é jornalista.

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