domingo, 4 de janeiro de 2009

É hora de derrubar os outros muros de Berlim

Fernando Abrucio
DEU NA REVISTA ÉPOCA


A queda do muro de berlim completa 20 anos em 2009. Essa data tão marcante parece que foi nublada pela crise econômica e pelos outros “muros” que ainda permanecem. Muita coisa precisa melhorar, mas não é justo dizer que a época da Guerra Fria era melhor. O mundo pós-1989 trouxe ganhos e potencialidades que devem ser revigorados no aniversário dessa surpreendente revolução pacífica.

Inegavelmente, a derrubada do Muro abriu mais fronteiras do que as que separavam as duas Alemanhas. Pelo ângulo político, vários países se livraram de regimes autoritários, e a democracia se tornou mais presente do que em qualquer época da história humana. Claro que ainda existem ditaduras, mas cada vez mais elas se tornam anacrônicas, atacadas como se fossem um estágio atrasado dos povos. Quem a mantém com menos pressão internacional é a China, graças à espantosa riqueza produzida por lá nos últimos 20 anos, para o mundo e para os chineses.

A exceção chinesa revela um paradoxo desse país em relação a 1989. Por um lado, a China realizou o inverso do sonho berlinense, no deplorável massacre da Paz Celestial. Ali foram enterradas as esperanças democráticas de uma geração. Por outro, o impulso globalizante trazido pela queda do Muro de Berlim foi um dos responsáveis pelas mudanças econômicas que favoreceram o estupendo crescimento chinês. Provavelmente, esse processo permitiu a convivência entre a bonança e a ditadura. A lição que podemos tirar disso é que a economia não é capaz, sozinha, de melhorar os regimes políticos. Mas a abertura de novas possibilidades de vida aos povos, como ocorreu com parte dos chineses nos últimos 20 anos, dificulta o retorno às condições anteriores. Se a crise atingir em cheio à China, o descontentamento chegará a níveis maiores que os de 1989. E será difícil manter a ordem apenas com uma solução ao estilo do massacre da Paz Celestial.

O processo globalizante impulsionado pela queda do Muro de Berlim deve ser avaliado não como um fato negativo, como agora fazem alguns, mas como imperfeito, por sua incompletude. A destruição da Guerra Fria gerou estilhaços de mudanças positivas pelo mundo, tanto no campo político como no econômico. Ganharam destaque temas que lutavam contra fronteiras físicas ou ideológicas, como a internet, o meio ambiente, a defesa dos direitos humanos e da diversidade cultural. É o “lado bom” da globalização. Mas os estilhaços positivos da queda do Muro não foram capazes de produzir uma governança global. As relações entre os países continuaram assimétricas. Prova disso é a manutenção do poder intervencionista dos mais fortes acima das instituições internacionais. Nessa linha de problemas, a ordem financeira global desenvolveu-se sem uma regulação eficaz, gerando crises.

A chegada de uma nova crise econômica global pode inspirar a volta dos sonhos de 1989

A chegada de uma nova crise econômica, agora de proporções épicas e atingindo o coração do capitalismo, pode trazer de volta os sonhos berlinenses de derrubadas dos “muros” que afligem a sociedade contemporânea. Mas eles só poderão ser destruídos se duas coisas que estiveram presentes naquele novembro de 1989, em Berlim, inspirarem as decisões dos governos, principalmente dos mais poderosos. A primeira diz respeito à palavra que mobilizou os berlinenses: unificação. Trata-se de constituir objetivos comuns e estabelecer uma atuação coordenada dos governos. A cooperação internacional é essencial para atacar os grandes problemas do mundo, seja os mais conjunturais, vinculados à ordem econômica, seja os de longo prazo, como a questão ambiental.

O outro legado importante da queda do Muro de Berlim refere-se à crença de que é possível mudar e mobilizar-se para isso. Muitos serão céticos quanto à possibilidade de melhorar o mundo em 2009, colocarão empecilhos e gerarão imobilismo. É verdade que a boa análise parte do princípio de que a imperfeição é uma marca da humanidade. Mas a história contém momentos em que os homens lutaram e alcançaram o inimaginável. É o que nos leva a retomar o sonho berlinense 20 anos depois.

Fernando Abrucio é doutor em Ciência Política pela USP, professor da Fundação Getúlio Vargas (SP) e escreve quinzenalmente em ÉPOCA

Esperando por Obama

Nas Entrelinhas: Luiz Carlos Azedo
DEU NO CORREIO BRAZILIENSE


A antecipação de medidas anticíclicas em todo mundo será capaz de evitar a depressão mundial? A resposta dependerá da eficácia das decisões do novo presidente dos EUA

O mundo espera a posse do novo presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, no próximo dia 20, para fazer alguma previsão sobre o que acontecerá em 2009. É como se o novo ano demorasse mais um pouco para começar, embora aqui no Brasil, tradicionalmente, todos puxem o freio de mão até o carnaval.

A guinada

Os mais otimistas apostam numa mudança política nos EUA, com muitas repercussões no mundo. A primeira seria na política internacional propriamente dita, na qual a diplomacia viria à frente do belicismo, para reverter uma concepção militarista que marcou o governo Bush e que ainda ruge na Faixa de Gaza. A segunda, em grande medida, ocorreria em relação à política de petróleo, com o gigante do Norte em busca de um novo padrão energético, menos dependente do carbono, o que seria muito bom para o planeta achar o rumo do desenvolvimento sustentável. Os pessimistas acham graça dessa expectativa, avaliam que os norte-americanos são predadores por natureza e não perderão a oportunidade de aproveitar o petróleo mais barato para reativar seu velho complexo militar-industrial e voltar a ser o que sempre foram: imperialistas. Prefiro começar 2009 com a esperança das utopias.

A propósito, li uma entrevista muito interessante do jornalista francês Marc Saint-Upéry, reproduzida no blog do meu amigo Gilvan Cavalcanti de Melo (gilvanmelo.blogspot.com), na qual ele trata da crise mundial e da esquerda socialista. Cita Ralph Nader, aquele candidato alternativo a presidente dos Estados Unidos que nunca foi levado muito a sério. Segundo Nader, quando era criança, seu pai fazia a seguinte pergunta: “Por que o capitalismo sempre sobreviverá?” E ele próprio respondia: “Porque sempre se usará o socialismo para salvá-lo”.

É mais ou menos essa lógica que me leva a acreditar que Obama adotará medidas reformadoras. Ele precisa delas para enfrentar a crise econômica. Sua política é uma mescla de trabalhismo, intervencionismo e preocupações verdes: mais sinergia entre público e privado, grandes programas estatais e ações de governo para estimular a economia e acelerar a transição a um modelo energético sustentável. Não é pouco para os EUA. Alguns podem ponderar que sua equipe é pluralista demais, tem muitos conservadores. Não importa. Como Saint-Upéry lembra em sua entrevista, o mundo já virou o disco. Segundo ele, quando o capitalismo enlouquece e desaba o mito do mercado autorregulado, se redescobre o receituário intervencionista e se escutam discursos anticapitalistas de parte de políticos conservadores. É o caso do presidente francês Nicolas Sarkozy. Por igual razão, artigos sobre o pensamento econômico de Marx, com sua “lei da tendência decrescente da taxa de lucro”, começam surgir em tradicionais revistas de economia ou são citados por figuras como o megaespeculador George Soros. É que o fetiche da mercadoria virou a “reificação” do mercado.

O tranco

A crise chegou ao Brasil, com menos intensidade do que a turma do “quanto pior, melhor” previa, mas já atrapalha a vida do governo, das empresas e dos cidadãos. Num primeiro momento, ela foi vista com jubilo pela esquerda, pois representou o colapso do neoliberalismo. Mas agora se verifica que é algo mais grave e sobra pra todo mundo: uma crise capitalista semelhante à de 1929. Porém, o peso do Estado na economia é muito maior, sobretudo na Europa e na Ásia, mesmo com a onda de privatizações e regulamentações que ocorreu na década de 1980. Essa força serviria de alavanca para governos de todos os matizes — conservadores, trabalhistas, social-democratas, populistas — reagirem à crise mundial. O governo Lula não é exceção.

Faz-se o que Lord Keynes preconizou como saída da crise em 1929, em maior ou menor grau. Sua velha teoria sobre as bolhas especulativas foi confirmada nessa crise. Mas há uma grande interrogação: a antecipação de medidas anticíclicas em todo mundo será capaz de evitar outra grande depressão? A resposta dependerá da eficácia das decisões do novo presidente dos EUA. Há uma contradição entre a superprodução mundial e a capacidade real de consumo dos países, inclusive a China, porque a renda real (principalmente a massa salarial) não acompanhou essa expansão. O déficit em conta corrente dos EUA, durante 30 anos, de certa forma alavancou a bolha do crédito e o consumismo. Gerou uma assimetria perversa do sistema financeiro, que bancou o consumo norte-americano 7% acima do que seria possível. Agora, o mundo está pagando a conta, porque tirou muito proveito disso. Nos anos 1990, a Ásia, o Brasil e a Rússia atraíram grandes fluxos de capitais e créditos; com a crise, o crédito sumiu e os investidores estão voltando aos títulos norte-americanos. Esse é o tranco.

Feliz novo século

Alberto Dines
DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)

Nunca foi tão fácil adivinhar a agenda para o próximo ano como nesta virada de 2008/2009. Impossível prever qual será o encaminhamento das diferentes crises que nos assombram mas conhecemos as coordenadas.

Sosseguem: as bolas de cristal não serão aposentadas. Persistem enormes estoques de dúvidas e mistérios quanto ao teor das soluções mas os problemas estão claramente expostos e, como sabemos, a armação correta de uma equação é meio caminho para resolvê-la.

Socializou-se a futurologia global graças ao arsenal de ferramentas estatísticas e matemáticas. Mas não podemos esquecer que nossas percepções em relação ao futuro se aguçaram, porque aperfeiçoamos a capacidade de remexer e reciclar o emaranhado do passado. Neste jogo de prismas o espelho retrovisor desempenha papel crucial: podemos visualizar os ingredientes ancestrais das nossas angústias ou razões para rejeitar imagens obsoletas.

O que mais importa nos exercícios de profetismo é a noção do corte, a consciência da ruptura. Os filósofos de esquina até já rotularam a atual conjuntura como "pós-tudo", porque resulta de uma sucessão de barreiras derrubadas e substituídas por combinações pós-raciais, pós-ideológicas, pós-religiosas, pós-sociais, pós-modernas e pós-filosóficas.

Alguns dos dilemas que nos intoxicam completaram mil anos, estão saturados. Outros desaparecem por agregação. A ameaça concreta do aquecimento global, devidamente equacionada, aposenta um conjunto de venerandos confrontos.

Tudo indica que, pela importância do sacolejo, o século 21 esteja efetivamente começando. Assim como o anterior iniciou-se 18 anos depois da data convencional (no fim da Primeira Grande Guerra), este também ultrapassou os limites do calendário e inaugura-se quase uma década depois. O século 20 veio acompanhado por uma drástica alteração no mapa-múndi e este 21, embora sem tocar em fronteiras, varreu-as.

O mundo é uma bola. Ou uma bolha. Ao compreender esta bola e evitar as bolhas já estamos enfiados num processo terapêutico de grandes proporções que deve se prolongar por alguns anos e, obrigatoriamente, se impor aos litígios correntes.

A maior ameaça está no plano econômico – quanto a isso parece não haver dúvidas – mas enquanto persistirem ressentimentos religiosos, ou melhor, enquanto as religiões existirem como projetos de poder distanciadas de suas motivações espirituais, estaremos desperdiçando recursos e energias armazenadas para emergências globais.

A humanidade não é burra, sua agressividade parece ilimitada até o momento em que a sobrevivência corre perigo. Os fatores de dissensão situados habitualmente no campo ideológico, religioso ou racial, terão de ser superados. A conquista territorial tornou-se secundária, mais importante é a conquista de novas tecnologias, elas – e não o espaço vital – garantem as soberanias.

O fim da Guerra dos 30 Anos em 1648 e a criação em 1951 do núcleo da futura União Européia que interrompeu um ciclo de conflitos no coração do Velho Mundo são exemplos alentadores da sobrevivência do bom senso. O entendimento é possível. O arranjo funciona melhor do que os desarranjos

Uma pauta de transformações anti-catastróficas levará anos para ser implementada, impossível confiná-la em periodizações artificiais como os calendários das Copas do Mundo ou Jogos Olímpicos.

Com os cronogramas para a preservação da natureza entramos na era dos projetos decenais de grande porte e longa duração capazes de funcionar como freios para evitar exuberâncias e descontroles.

Barack Obama com a sua visão pós-racial do Sonho Americano deu um poderoso empurrão ao Século Pós-Tudo. O 4 de Novembro de 2008 pode ser o novo "Fin-de-Siècle" e sua posse a 20 de Janeiro de 2009, a primeira etapa de uma revisão em larga escala.

Feliz Ano Novo é pouco. Melhor saudar o novo século.

» Alberto Dines é jornalista

Começa o outono de Lula

Demétrio Magnoli
DEU NA VEJA


"No fim de seu segundo mandato, seremos ‘brancos’ ou ‘negros’ antes de sermos brasileiros. Eis aí a verdadeira mudança promovida pela era Lula: uma bomba social de efeito retardado que sua passagem pela Presidência deixa aos filhos e netos da atual geração"

Lula chegou ao Palácio do Planalto como a personificação de esperanças exageradas, quase ilimitadas: "Foi para isso que o povo brasileiro me elegeu presidente da República: para mudar". Na hora em que começa o outono de seu segundo mandato, contudo, é tempo de investigar a sua herança: desses oito anos, o que ficará incrustado no edifício político brasileiro?

"Eu sou filho de uma mulher que nasceu analfabeta." Antes de tudo, provou-se que diplomas acadêmicos não são adereços indispensáveis para governar. Os acertos e os erros de Lula decorrem de suas opções políticas, não das supostas virtudes ou das óbvias carências associadas a um nível baixo de instrução formal. O presidente não precisou de uma universidade para preencher a diretoria do Banco Central com um time de economistas que ostenta medalhas acadêmicas incontáveis – e concepções opostas às doutrinas econômicas petistas. Bastou-lhe o faro político privilegiado do conservador que, no fundo, nunca deixou de ser. Inversamente, o elogio da ignorância, um traço ubíquo dos pronunciamentos presidenciais, não reflete uma suposta convicção de que a escola é desnecessária, mas o egocentrismo exacerbado de um líder salvacionista.

"Nunca antes neste país." O salvacionismo abomina a história, apresentando-se como o início de tudo: a virtude que exclui o vício e escreve uma nova história num mármore intocado. A democracia enxerga a si mesma como um processo de mudanças incrementais. O líder salvacionista não enxerga nada de positivo antes de seu próprio advento. Lula é uma versão pragmática, cuidadosa e mesquinha de salvacionismo. De dia, ele denuncia "a elite que nos governa há 500 anos". À noite, cerca-se de grandes empresários, a quem atende e de quem espera retribuição. O sucesso do estilo político salvacionista deriva das fraquezas de nossa democracia – e as perpetua.

"Não se enganem, mesmo sendo presidente de todos, eu continuarei fazendo o que faz uma mãe: cuidarei primeiro daqueles mais necessitados, daqueles mais fragilizados." Lula não inventou o paralelo entre a nação e a família, que faz parte da longa linhagem do pensamento conservador de raiz autoritária. Mas, com a expansão do Bolsa Família, ele encontrou uma fórmula de modernização do assistencialismo tradicional. A distribuição direta de dinheiro, no lugar das proverbiais dentaduras, não é a fonte do aumento do consumo dos pobres, que reflete o crescimento da economia em geral e do salário mínimo em particular. Pouco importa: em virtude de sua eficácia eleitoral, o Bolsa Família será adotado pelos próximos governantes, sejam quem forem. Eis um legado duradouro da "mãe do povo".

"Não tem Congresso Nacional, não tem Poder Judiciário. Só Deus será capaz de impedir que a gente faça este país ocupar o lugar de destaque que ele nunca deveria ter deixado de ocupar." O lulismo aprofundou a subserviência do Parlamento ao Executivo, que se manifesta sob a forma de um intercâmbio: o Congresso se anula politicamente enquanto os congressistas da base do governo chantageiam o presidente para conseguir cargos e favores. A troca descamba sem dificuldades para a corrupção aberta. O "mensalão" foi isto: um projeto de estabilização da base governista pela compra direta dos parlamentares. Ele acabou exposto, mas apenas em virtude de uma fortuita ruptura interna à ordem da corrupção. Lula não caiu, apesar de tudo, e a oposição nem sequer apresentou um processo de impeachment. A elite política aprendeu do episódio que um presidente popular não será punido nem mesmo se distribuir dinheiro a parlamentares.

"Se tem uma coisa que está dando certo no governo é a política econômica. O PT não pode se esconder, procurando motivos para as derrotas, com críticas a ela." O PT morreu como partido da mudança antes da vitória eleitoral de Lula, com a Carta ao Povo Brasileiro, que o converteu em partido da ordem. Nos partidos social-democratas europeus, transições similares verificaram-se antes e de modo diferente. Eles renunciaram publicamente a seus velhos programas revolucionários, adotando programas fundados nos cânones da democracia e da economia de mercado. O PT, não: embora, na prática, sustente a ortodoxia econômica do governo Lula, suas resoluções clamam pela ruptura socialista, denunciam a liberdade de imprensa e fazem o elogio da ditadura de partido único cubana. A cisão entre o gesto e a palavra não apenas corrompe politicamente o partido como também alimenta um tipo mais virulento de corrupção.

"Se eu falhar, será o fracasso da classe trabalhadora." Uma máquina clandestina petista, instalada dentro do Planalto, conduziu as operações do "mensalão". Militantes partidários em altos cargos públicos realizaram a quebra de sigilo do caseiro Francenildo, um crime de estado que passará impune. Se acreditamos que temos a chave do futuro e uma missão histórica redentora, não hesitamos em usar de qualquer expediente para realizar as finalidades partidárias. O PT não consegue estabelecer distinções entre as instituições públicas e o partido. No fundo, interpreta a democracia como instrumento transitório para a sua perpetuação no poder. Depois de Lula, o maior partido brasileiro continuará a figurar como elemento de distúrbio no sistema político.

"Quem chega a Windhoek não parece que está em um país africano. Poucas cidades no mundo são tão limpas." Os estereótipos raciais clássicos, afundados na lagoa do senso comum, são um componente óbvio da rasa visão de mundo de Lula. Entretanto, o programa de racialização da sociedade brasileira conduzido por seu governo decorre de um frio cálculo político. O presidente quer conservar na sua ampla coalizão as ONGs racialistas, financiadas pela poderosa Fundação Ford. Em nome dessa meta, patrocina uma enxurrada de leis raciais com repercussões na educação, no mercado de trabalho e no funcionalismo público. No fim de seu segundo mandato, todos os direitos dos cidadãos estarão mediados e condicionados por rótulos oficiais de raça. Seremos "brancos" ou "negros" antes de sermos brasileiros. Eis aí a verdadeira mudança promovida pela era Lula: uma bomba social de efeito retardado que sua passagem pela Presidência deixa aos filhos e netos da atual geração.

Por uma Nação mais cidadã

Gaudêncio Torquato
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


O que melhor poderia ocorrer ao Brasil em 2009? Cada brasileiro tem uma resposta na ponta da língua. Mais dinheiro no bolso, saúde, garantia de emprego, maior segurança nas cidades, harmonia social. Da parte dos governantes, o termo-chave é crescimento. A indicação a resumir as expectativas gerais pode ser esta: a expansão do Produto Nacional Bruto da Felicidade, o PNBF, que é o grau de satisfação das classes, medida por um conjunto de fatores econômicos e sociais. A meta, vale reconhecer, resvala pelas tortuosas curvas da imponderabilidade, comum às nações e desafio permanente de núcleos burocráticos que buscam e testam modelos para viabilizar as administrações e driblar os obstáculos, principalmente em ciclos de crise como este que abala as economias mundiais e cujo impacto - de acordo com todas as previsões - será mais forte no País no primeiro trimestre deste ano. Existe, porém, um amplo espaço de previsibilidade, com crise ou sem crise, que pode ser preenchido com decisões focadas para a melhoria do bem-estar social. Este território é o do entendimento sobre a abrangência da política e leva em conta o fato de que ela não é apenas a arte do possível, mas a vontade de viabilizar coisas que parecem impossíveis.

A começar, por exemplo, com as tão propaladas reformas política e tributária. O País vive uma crise crônica porque a natureza de sua política é incompatível com um modelo racional de Estado e uma gestão moderna de democracia. Em consequência, vive-se uma situação de precária governabilidade, agravada por tensões entre instituições. Há consenso sobre o diagnóstico. Entre as ações prementes, precisamos reformar o sistema político-eleitoral; modernizar a estrutura do Estado, a partir de limites sobre competências entre Poderes e redefinição de atribuições entre entes federativos; consolidar a legislação infraconstitucional, que mantém buracos desde 1988, e atualizar os eixos das relações do trabalho. Os cidadãos - de todas as classes, vale lembrar - precisam enxergar no Estado braços protetores, e não uma bocarra para engolir impostos, encargos e contribuições. Querem um sistema previdenciário que lhes retribua o peso de anos de contribuição. Uma escola pública de qualidade e capaz de abrigar milhões de brasileiros que permanecem fora do sistema educacional. Sonham com os tempos bucólicos de segurança nas calçadas de suas casas. Será que o governo não pode avançar em matéria de segurança pública? Ninguém pode ser contrário a programas de redistribuição de renda. Mas assistir 11 milhões de famílias por meio de bolsas, sem lhes dar uma saída para esse modelo acomodatício, é aprofundar o buraco, construir a cama perpétua da inércia.

Como interstício entre anos eleitorais, 2009 é chave para abrir a porta de reformas. O argumento é o de que medidas de cunho político só serão adotadas em 2014, e não em 2010. Dar-se-ia prazo suficiente para maturação das decisões. Não dá mais para esticar o cordão da crise intermitente que amarra o País às raízes arcaicas. O xeque-mate no jogo é a crise econômica. Diques pontuais para atenuar as ondas da pororoca (maior que a marolinha de Lula) só serão eficazes se acompanhados de reformas do Estado e de padrões políticos. Reformar, como se sabe, é mudar, inovar, avançar, recondicionar, conceitos que ultrapassam limites físicos para abrigar questões comportamentais. Implica mudança de atitudes. O presidente da República deve ser o primeiro a dar o exemplo, impulsionando vontades transformadoras, incentivando avanços, empurrando o Executivo em direção às reformas, sem pretensão de expandir o mandonismo do sistema presidencialista. Sob essa inspiração, o Palácio do Planalto só usaria o instrumento excepcional da medida provisória em caso de urgência e relevância. A sinalização de boa vontade e respeito ao sistema normativo seria reconhecida, contribuindo para aperfeiçoar sua imagem burilada de maneira tosca pelo cinzel do populismo.

Os corpos parlamentares, do Senado e da Câmara, tocados pela ideia de que as crises - a econômica e a política - apontam para a necessidade de decisões altaneiras, haverão de encontrar aquele traço de união, raro, mas não impossível, em que visões egocêntricas olharão para o altar da Pátria para ali depositar o fruto do consenso, consubstanciado em ações para combater o atraso. Se não é possível avançar muito, pelo menos se tente fazer o máximo. O que não se admite é intransigência por obra e graça de artimanhas com vista ao jogo eleitoral futuro.

No que diz respeito ao Judiciário, já se percebe que a justiça sai dos longos corredores das Cortes para chegar às ruas. Ainda é lenta e pouco acessível ao cidadão comum. Não se nega, porém, que os juízes começam a vestir uma toga de matiz mais humano. O ano poderá ser menos inóspito no campo das relações harmônicas entre o Supremo Tribunal Federal e os Poderes Executivo e Legislativo. O que parece inadmissível é ouvir o presidente da República falando mal de ministros. E estes, mesmo sob a elogiável intenção de popularizar a locução, poderiam ser mais cautelosos e menos afoitos no uso de adjetivos. Que tal um acordo para ajustar condutas ao tempero constitucional da harmonia, autonomia e independência dos Poderes?

O que se espera, enfim, dos atores do cenário institucional é o compromisso com os valores mais sagrados do sistema democrático e, sobretudo, a vontade de contribuir para elevar os padrões da cidadania. Em suma, espírito público, aquela chama cívica que Tocqueville enxergou, há 170 anos, quando descreveu a democracia norte-americana: “Existe um amor à pátria que tem a sua fonte principal naquele sentimento irrefletido, desinteressado e indefinível que liga o coração do homem ao lugar em que nasceu. Confunde-se esse amor instintivo com o gosto pelos costumes antigos, com o respeito aos mais velhos e a lembrança do passado; aqueles que o experimentam estimam o seu país com o amor que se tem à casa paterna.”

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político

Torcer pelo Brasil em 2009

Suely Caldas
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


Como o resto do mundo, o Brasil também demorou a acordar para a crise econômica global. Governo, empresas, bancos, consultores econômicos, ninguém prestou atenção, não souberam (ou não quiseram) avaliar os sinais que vinham de fora do País desde o último trimestre de 2007 e se acentuaram nos meses seguintes de 2008. Com a euforia da Bovespa, a produção industrial disparando, o crédito em expansão, o emprego crescendo, o Brasil mergulhou junto com o mundo na fantasia da falsa e inflada bolha, que encobria a realidade e turvava os maus presságios. O principal deles foi a rápida deterioração do setor externo da economia, os crescentes déficits nas transações com o exterior, que pioravam a cada mês e eram desprezados nas previsões econômicas.

Sempre muito cauteloso, até o Banco Central deixou passar: na divulgação mensal que fazia dos números, o BC minimizava o déficit externo, ignorava-o com a desculpa de que ele seria compensado pela entrada de capitais de investimento. E era verdade, até porque empresas estrangeiras investem em períodos de crescimento econômico. A explicação não estava errada. Errado foi descuidar de investigar o que acontecia no setor externo, por que empresas estrangeiras remetiam cada vez mais dólares para suas matrizes, por que o volume de mercadorias exportadas caía a cada mês (o problema era mascarado pela receita com exportações, que crescia junto com o preço das commodities e os analistas se deixavam enganar).

Na época, o secretário de Comércio Exterior, Welber Barral, ligou para contestar texto publicado aqui neste espaço, em 3 de agosto de 2008, advertindo para a queda do volume das exportações. Garantia não haver queda alguma e negava cálculos feitos pela Fundação Centro de Estudos do Comércio Exterior (Funcex). Quem alertasse para a realidade era visto como ave de mau agouro, um torcedor contra o Brasil. Havia um clima de cumplicidade geral, as boas notícias inebriavam e eram usadas para ignorar os sinais da crise. Como o presidente Lula tentou fazer todo o tempo, dizendo que a crise não passava de uma marolinha. E ainda faz hoje, aconselhando os brasileiros a gastarem, e não se prepararem para dias piores que começaram a chegar com a crise.

É compreensível que o principal dirigente da Nação não atue como um anunciador do apocalipse e saia por aí levando mensagens negativas. Ele deve usar a liderança para injetar ânimo na população, estimulá-la a reagir, resistir. Isso é uma coisa. Outra muito diferente é desdenhar do poder da crise, ignorá-la, levar ilusão e fantasia a quem já tem tão pouca informação. E outra ainda mais grave é enganar a si próprio, não agir antecipadamente, mesmo que de forma reservada, para prevenir efeitos negativos da crise que se aproximava.

É verdade que as pesquisas do IBGE apontavam para a direção de um PIB que poderia chegar até a 6% em dezembro, não fosse a desaceleração a partir de outubro. Motivo de alegria, comemoração. O governo, contudo, não se deve deixar inebriar, pode e deve liderar a festa, mas tem obrigação de agir com sensatez, mesmo que silenciosamente e sem alarde, prevenir-se contra os efeitos da crise com ações concretas. E isso o governo Lula não fez. Apesar de todos os sinais, desde o final de 2007, só acordou e agiu depois do choque assustador da falência do banco Lehman Brothers, no fim de setembro. E assim mesmo desdenhando com a marolinha.

Espalhada a partir do centro nevrálgico do crédito em países ricos, no primeiro momento a crise atingiu com força justamente esses países, mas tem enorme poder de contagiar os emergentes, mais fracos, sem poupança própria para suprir o financiamento à produção e ao investimento e que precisam disputar o escasso crédito nos países ricos. Não foi por outro motivo que a poderosa Petrobrás teve de recorrer a crédito inédito da Caixa Econômica Federal, primeiro de R$ 2 bilhões, depois mais R$ 1,5 bilhão. Se nem a Petrobrás consegue crédito externo, o que esperar de todas as demais empresas brasileiras?

São preocupantes as perdas em operações de comércio exterior decorrentes da crise. Em agosto a corrente de comércio (exportações mais importações) somou US$ 1,772 bilhão e mês a mês tem caído, desabando para US$ 1,151 bilhão em dezembro, uma queda de 35% em apenas quatro meses.

Neste 2009, resistir, decidir no momento certo, agir com realismo e sem levar a ilusões é a melhor torcida pelo Brasil. E nosso maior desejo é que tenhamos todos um feliz ano-novo!

*Suely Caldas, jornalista, é professora de Comunicação da PUC-Rio

A balança e o balanço do dólar

Vinicius Torres Freire
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

O dólar subiu muito e, em tese, ameaça a inflação; esse vai ser o problema do BC na decisão sobre os juros

NOS PRÓXIMOS meses haverá tiroteios a respeito do efeito do encarecimento do dólar sobre a inflação. Como quase todo mundo reconhece que o repasse da desvalorização do real para os preços do varejo costuma demorar (três meses? Seis? Quem dá menos?), as escaramuças ainda são suaves.

A desvalorização do real encarece produtos importados. Afeta ainda os preços domésticos de produtos que o país exporta. Como o exportador recebe mais reais pelos seus produtos, dada a desvalorização da moeda nacional, tende a "cobrar" mais também no mercado interno ou influencia os preços dos produtores que não negociam no mercado externo, "tudo o mais constante". O problema está, pois, aí, no "tudo o mais constante", pois os preços dependem ainda de outros fatores.

Os economistas estimam o repasse da desvalorização do real para os preços domésticos calculando como a inflação se comportou em episódios anteriores de perda de valor da nossa moeda. Em cálculos mais precisos, procuram levar em conta também fatores como a demanda doméstica e externa. Como há muitas variáveis em jogo, influenciando-se de modo diferente a cada momento, tais cálculos são imprecisos. Mas, no fim das contas, a gente sabe que desvalorizações da moeda não saem de graça. Quão mais caros os preços devem ficar é que são elas.

Nos 12 meses que correram até agosto de 2008, o preço das importações brasileiras (em dólar) tinha subido em média uns 20%. No mesmo período, o dólar perdera uns 18% de seu valor nominal em relação ao real (usamos apenas o dólar para simplificar o exemplo). Ou seja, os preços subiram em dólares, mas o real se valorizou. O efeito do encarecimento dos importados sobre os preços domésticos tendia então a ser "compensado" pelo do câmbio. Desde agosto, com a crise, o dólar subiu 40% (pela cotação média do mês, até novembro). O preço dos importados em dólar subiu 4,5%. Em tese, os importados ficaram quase 46% mais caros, em reais.

Quanto desse aumento de preços em reais é enfim repassado para o varejo? Há problemas variados nessa conta, como se dizia. Os empresários trabalhavam, de fato, com qual valor do dólar em agosto? Com R$ 1,60? Ou não reduziram seus preços quando o dólar caía (isto é, teriam "gordura" para queimar)? Trabalham agora com R$ 2,30? O dólar vai ficar por aí, vai cair ou vai subir? As empresas que lidam com produtos "comercializáveis" no exterior (exportação e/ou importação) vão conseguir repassar seus preços, tanto no mercado doméstico como externo? Desde outubro, a quantidade de produtos exportados pelo país vem caindo, e a demanda doméstica também deve cair. Com demanda menor, é mais difícil repassar aumentos para o consumidor.

No último trimestre de 2008, houve uma freada brusca na economia brasileira, por ora mais observada no "atacado" e em alguns setores do varejo, como o de automóveis e de alguns outros bens duráveis. A utilização da capacidade instalada das fábricas caiu muito e rápido. O comércio mundial não deve crescer em 2009. Mas o dólar subiu muito e, em tese, ameaça a inflação. Esse vai ser o problema do Banco Central, neste mês, na decisão sobre os juros.

Cavaleiros do apocalipse

Rubens Ricupero
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


Uma solução negociada para o conflito entre Israel e os palestinos teria incalculável impacto político-econômico

DOS QUATRO maiores focos de conflito não solucionados no degelo pós-Guerra Fria e que se arrastam há mais de 50 anos, três são vulcões intermitentes: Taiwan, Caxemira e Coreia do Norte. Só a questão árabe-israelense é vulcão em estado de erupção quase ininterrupta. A dormência dos primeiros se explica porque todos os envolvidos (ou seus aliados) são potências nucleares, sujeitas ao mesmo mecanismo de autocontenção da violência, devido ao temor de que a guerra se converta de fria em incandescente e atômica.

No quarto exemplo, o desequilíbrio de poder e a impossibilidade moral de que o país forte elimine o outro lado condenam os adversários à violência permanente: ou a do terrorismo suicida, ou a do castigo desproporcional e inconclusivo. A inércia das potências internacionais sugere que elas se acomodariam ao status quo como mal menor. O problema é que "desequilíbrios estáveis" tendem a buscar equilíbrio mais duradouro, quase sempre com a explosão de crises perigosas. É o que se viu no domínio econômico-financeiro e se está vendo na faixa de Gaza.

Mesmo nas tréguas da carnificina, o conflito age como tumor contido na área da limpeza operatória, que se espalha por metástase pelo organismo. Começa pela radicalização e pelo endurecimento do adversário, de que são expressão o Hamas palestino e o Hizbollah libanês. Não para aí, todavia. Age como catalisador de todas as frustrações do mundo árabe-islâmico, precipitando-as sob forma violenta.

Liquidado com o Kosovo o contencioso balcânico e controlado o do Cáucaso pela derrota da Geórgia, a agenda mundial de crises se "islamizou". Isto é, em boa parte pelo efeito do contágio da questão crucial entre Israel e os palestinos, passou a ser dominada por ameaças que, embora de especificidade própria, têm em comum oporem ocidentais a muçulmanos: o terrorismo da Al Qaeda, Afeganistão-Paquistão, Irã, Iraque, Síria, Líbano, até a Somália e o corno da África.

A solução dessas últimas pouco altera o panorama geral da região, como se percebe da relativa redução da violência no Iraque. Em contraste, uma solução negociada entre Israel e os palestinos teria na área impacto político-econômico incalculável, comparável ao que o fim da Guerra Fria teve no mundo até em relação a problemas independentes como o apartheid.

Se fosse verdade que nenhuma questão grave se resolve sem uma crise aguda, Obama deveria estar agradecendo à sua estrela por lhe proporcionar a dupla oportunidade de enfrentar os dois maiores desafios econômico e político contemporâneos, no início do governo e ao mesmo tempo.

Dependem ambos não somente, mas acima de tudo, dos Estados Unidos, do poder que só esse país possui, da disposição de utilizá-lo contra os poderosos lobbies que sempre impediram soluções de compromisso nesses setores, articulando as políticas adequadas, que, num caso e no outro, terão de contar com a participação ativa da ONU (Organização das Nações Unidas) e da maioria dos países. Tudo, enfim, ao contrário do que fez o atual governo Bush.

Dizia o candidato que os norte-americanos, sim, podiam e que desejavam mudar. Terá agora de passar dos slogans aos atos e provar que funcionam na realidade. Em outras palavras, o teste imediato a que será submetido o futuro presidente estará à altura das gigantescas e talvez excessivas expectativas que despertou.

Rubens Ricupero, 71, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.