terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

A Carta da Democracia

Fernando Perlatto
Fonte: Gramsci e o Brasil

Lopes, Júlio Aurélio Vianna. A Carta da Democracia. O processo constituinte da ordem pública de 1988. Rio de Janeiro: Topbooks, 2008. 257p.

O ano de 2008 foi marcado por diversos eventos que buscaram rememorar os vinte anos da Constituição de 1988. Ainda que tenha recebido atenção dos meios de comunicação, a celebração da “Constituição cidadã” — como a definiu Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Constituinte — foi ofuscada pela celebração de outras datas, com destaque para os 200 anos da chegada da família Real ao Brasil. Independente disso, o fato é que 2008 foi marcado por diversos eventos e publicações [1], cujo intuito era analisar não somente os anos que testemunharam o processo constituinte, como também as consequências da Carta de 88 para a vida dos brasileiros, contribuindo, desta forma, para proporcionar — junto a outros trabalhos essenciais que foram produzidos, seja no calor dos acontecimentos [2], seja posteriormente, como objeto de reflexão acadêmica mais acurada [3] — uma melhor compreensão deste período, que constituiu um marco para a construção da democracia no Brasil.

A Carta da Democracia deve ser compreendida como mais um esforço neste sentido, na medida em que o autor procura analisar a dinâmica dos quase vinte meses que marcaram o processo de elaboração da Constituição de 1988, que se estendeu de fevereiro de 1987 a setembro de 1988.

O livro conta com “Prefácio” de Bernardo Cabral, relator geral da Assembleia Constituinte, que define a obra como “o mais completo, isento e bem elaborado dentre todos [os trabalhos] de que tenho tomado conhecimento em torno dos momentos da Assembleia Nacional Constituinte” (p.15-6). Dividindo seu livro em sete capítulos, além de um anexo contendo declarações de diversas lideranças partidárias quando do encerramento do processo constituinte, o autor vale-se de fontes bibliográficas, jornais da época e dos Anais da Assembleia Nacional Constituinte para reconstituir aqueles meses decisivos que marcaram a redemocratização do Brasil e culminaram na elaboração da “Carta da Democracia”.

Desde o início da obra, Lopes faz questão de destacar as dificuldades enfrentadas no decorrer do processo, apontando para as divergências existentes entre os atores políticos em torno do caráter e do procedimento constituinte. Enquanto determinados setores defendiam a tese de que a feitura da Constituição caberia aos deputados federais e senadores eleitos em 15/11/1986, outros sustentavam a ideia de que este processo deveria ser conduzido por uma Assembleia Constituinte eleita exclusivamente para tal.

A primeira ideia, conforme destacado por Lopes, sagrou-se vencedora, e, a despeito das críticas que permaneceram durante todo trabalho constituinte, a experiência brasileira logrou ser singular — com o precedente apenas da Espanha, em 1978 —, na medida em que a Constituição (Poder Constituinte Originário) acabou por ser elaborada pelo poder constituído. Em consequência desta decisão, os 559 membros do Congresso Nacional empreenderam o trabalho de elaboração da Constituição pari passu às atividades por eles desenvolvidas como deputados e senadores, imprimindo determinada dinâmica ao processo cujas conseqüências não tardariam a aparecer.

Júlio Lopes realiza um minucioso trabalho, visando perceber os embates que permearam todo o procedimento constituinte, cujo desenho inicial objetivava a formulação da Carta em quatro momentos: os constituintes iniciariam seus trabalhos em 24 subcomissões temáticas, cujas propostas seriam enviadas para 8 comissões e, findos os trabalhos das mesmas, suas formulações seriam encaminhadas para uma “comissão de sistematização”, que, finalmente, organizaria um projeto de Constituição para ser votado pelo conjunto dos constituintes no plenário. Conforme bem observado pelo autor, o “único instituto trazido pelo regimento interno, enriquecedor do caldo de cultura política na Assembleia” (p. 38), constituiu-se nas 122 emendas propostas pela iniciativa popular à Mesa Diretora, que, após a verificação, admitiu 83 delas por atender às exigências regimentais da Constituinte. A quantidade de assinaturas mobilizadas para a inclusão das emendas populares no processo corrobora a idéia da existência de um contexto marcado pela mobilização popular, configurando um momento, como bem observado por Bernardo Cabral, “em que a atividade política era res publica, coisa de todos, de todos nós, brasileiros” (p. 14).

Buscando lograr o difícil exercício de combinar a descrição das fontes coligidas com a dimensão analítica do processo constituinte como um todo, o autor se vale de duas clivagens — que ele denomina como ideológica (exame do espectro constituído entre esquerda e direita, de acordo com suas posições frente à democracia política e à propriedade privada) e institucional (análise da trajetória política dos parlamentares constituintes, buscando sopesar se elas ocorreram em instituições públicas ou privadas) —, de modo a identificar os acordos e embates ocorridos nas etapas que antecederam a formulação da Carta de 88. Neste sentido, é relevante destacar a importância conferida por Júlio Lopes ao centro político neste processo, na medida em que as operações políticas de envergadura na Assembleia só poderiam ter êxito caso contassem com as expressões centristas, independentemente do setor ideológico do qual adviesse a iniciativa política.

Conforme destacado pelo autor, durante mais de um ano, nenhum dos partidos políticos da Assembleia privilegiou o debate institucional, em torno de temáticas como o sistema e/ou forma de governo e o sistema eleitoral e partidário, privilegiando as discussões conjunturais, relativas ao mandato presidencial do Governo Sarney, talvez como consequência do funcionamento concomitante do Congresso Nacional e da Assembleia Constituinte.

A esta “tendência conjunturalizante”, que atravessou todo o processo constituinte, vieram a se somar outras práticas — tais como o privilégio dos membros individuais em detrimento das bancadas partidárias nas comissões e subcomissões temáticas e a elaboração fragmentária da futura Constituição (visto que os debates ocorriam nas comissões, sem qualquer conexão com as discussões efetuadas nas demais) — que conduziram o processo constituinte a um quadro de “incerteza absoluta” e “paralisia decisória”, marcado pelas dificuldades de obter consensos políticos sobre a ordem pública. Os diversos impasses (“buracos negros”) surgidos em decorrência dos problemas acima destacados impediram a formulação de um texto consensual básico durante todo o primeiro ano de funcionamento da Assembleia, o que acarretou o truncamento dos trâmites constituintes e o descumprimento de todos os cronogramas antes estabelecidos.

Apesar dessas dificuldades, duas demandas veiculadas pelos constituintes de vários partidos estiveram presentes em todas as subcomissões, segundo o autor: uma inspiração descentralizante do Estado e outra antidiscriminatória dos cidadãos, a despeito das diferenças encontradas entre as posições políticas. Convém ressaltar, entretanto, que, por não possuírem qualquer referencial comum, os debates ali desenvolvidos produziram incongruências entre si, aumentando as divergências no processo constituinte. Conforme destacado por Lopes, este quadro de “paralisia decisória” apenas começou a se modificar na etapa de sistematização, cuja relatoria coube a Bernardo Cabral. Esta fase do processo constituinte testemunhou a combinação da tendência, ainda dominante, de multiplicação de divergências com a tendência, ainda que embrionária, de articulações entre as lideranças partidárias.

Ao analisar este momento fundamental da elaboração constitucional, Júlio Lopes procura ressaltar a importância do surgimento do denominado “Centrão” — movimento composto por lideranças constituintes de centro (do PMDB, PTB, PL), centro direita (do PMDB, PFL, PDS) e direita (do PDS), que valorizava a participação individual em detrimento das bancadas partidárias — para a modificação dos rumos do processo constituinte. Quando o tema da ordem pública foi objetivamente colocado para a Assembleia, estes setores partidários, não selecionados pelo centro esquerda durante as reuniões temáticas e sistematizadoras, se articularam para intervir no processo. O “Centrão”, de acordo com Lopes, estabeleceu-se como uma coalizão de veto, orientada por um consenso negativo sobre a ordem política a ser instaurada no País, cujo ponto programático comum relacionava-se à rejeição do ordenamento constitucional proposto pela comissão de sistematização e pelo desejo de conferir maior espaço ao mercado na ordem constitucional a ser estabelecida.

A partir deste momento, segundo o autor, a paralisia decisória prosseguia não mais pela fragmentação política generalizada verificada na etapa anterior, mas pela contraposição entre os campos do centro esquerda e do centro direita no plenário da Assembleia Nacional Constituinte. Em decorrência das dificuldades enfrentadas, dois movimentos asseguraram a instituição de mecanismos verticais para a produção de amplo consenso daí em diante, no processo constituinte: em primeiro lugar, a negociação entre as lideranças da sistematização e as do “Centrão” por meio de concessões mútuas e, em segundo lugar, o reposicionamento dos setores centristas, que, afastando-se dos setores mais à direita, buscavam se projetar como fiadores de compromissos amplos na Assembleia.

Conforme destacado por Lopes, estes dois movimentos contribuíram para o “fortalecimento inusitado” do presidente da Assembleia Constituinte, Ulysses Guimarães, que passou a ser encarado como o tertius capaz de produzir consensos básicos sobre a ordem pública. Bernardo Cabral, agora relator geral da Assembleia, também teve sua importância política especialmente acrescida neste contexto. Desta forma, a Constituição foi elaborada no plenário da Assembleia, com o consenso sendo estabelecido concomitantemente às votações, implicando o fortalecimento dos partidos mediante as reuniões do Colégio de Líderes e a verticalização do processo decisório.

Ao situar a formação de maiorias constituintes, Júlio Lopes aponta o fato de o compromisso político formalizado no processo ter se constituído em um “consenso periférico sobre a ordem pública” (p. 175-6). Isto quer dizer que, embora as forças políticas da Assembleia tivessem conseguido construir amplos consensos sobre a generalidade dos temas da ordem pública, elas não o fizeram sobre o eixo da ordem política, sobretudo no que tangeu ao tema do sistema de governo. Em consequência disso, a Constituição de 1988 não encerrou politicamente o ciclo da transição democrática, o que só veio a ocorrer em 1993, quando a população brasileira optou pelo regime presidencial de governo.

Entretanto, o autor faz questão de ressaltar que, apesar de a transição democrática ter sido concluída, ela continua padecendo de um núcleo institucional fraco, na medida em que diversos institutos parlamentaristas — sobretudo as medidas provisórias — permaneceram no sistema político brasileiro, tendo como principal consequência a hipertrofia do Executivo sobre o Legislativo, dificultando qualquer possibilidade de iniciativa própria deste poder. Além desta característica, de acordo com o autor, o processo constituinte configurou uma nova imbricação entre Estado e sociedade civil, invertendo o sentido político do regime militar — caracterizado, seguindo a definição de Schimitter, de “regime autoritário-burocrático” —, moldando um regime democrático-burocrático, caracterizado pela projeção de interesses coletivos sobre o Estado, instrumentalizado pelos movimentos sociais para a própria auto-organização.

Além desta análise pormenorizada do processo constituinte, Júlio Lopes procura responder a determinados questionamentos referentes à Constituição de 88, entre os quais convém destacar dois, à guisa de exemplo. O autor fornece algumas interessantes explicações acerca dos motivos que permitiram a elaboração de uma Constituição progressista, mesmo em um cenário marcado pela predominância de congressistas conservadores. Lopes destaca, neste sentido, a importância da ampla incidência das emendas populares no processo constituinte e a desarticulação das forças políticas de centro direita e direita por ao menos um ano na duração do processo. Mais ainda, o autor oferece uma interessante sugestão sobre os motivos da forte presença da dimensão jurídica na “Carta da Democracia”, sublinhando a presença majoritária de membros da Assembleia cuja carreira política se baseava em postos-chave para a regulação estatal, bem como, principalmente, a percepção do direito como fiador de consensos entre a tendência publicista e participativa da sistematização e a tendência privatista e modernizante do “Centrão”.

Além destas explicações, o autor contribui para desmistificar algumas questões relacionadas ao processo constituinte, entre as quais destacamos três. Em primeiro lugar, Lopes nega a idéia de uma enorme presença do Estado e do mercado na Constituição de 88, destacando o fato de o texto ter sido construído através de concessões mútuas entre os defensores destes dois polos, edificando um padrão de parcerias entre ambos, sob a responsabilidade do Estado. Em segundo lugar, para o autor, a Constituição resultou, basicamente, do consenso político entre o centro esquerda e o centro direita, questionando, desta forma, o argumento corrente segundo o qual a Constituinte teria sido hegemonizada ou pelo centro esquerda ou pelo “Centrão”. Por fim, ele problematiza a noção corrente acerca da participação do PT no processo, destacando polemicamente que, malgrado a retórica, o partido se integrou efetivamente ao conjunto da ordem pública delineada pelos amplos acordos políticos.

No final de sua obra, Júlio Lopes ressalta o fato da Constituição de 1988 ter se estabelecido como “uma engenharia política inacabada”, que, a despeito da estruturação institucional inovadora, não conseguiu lograr uma disciplina específica para os partidos políticos e, principalmente, para a Presidência da República, devido à permanência do mecanismo das medidas provisórias. O autor conclui destacando a necessidade da realização de uma reforma política que, além de pôr fim a este mecanismo, venha a estabelecer a fidelidade partidária, “uma exigência inadiável para nossa vida democrática” (p. 242). Neste ponto, convém destacar que, ainda que não seja o objetivo central do autor, esperava-se chegar ao final de uma obra tão bem documentada e analisada com uma proposta normativa menos tímida diante dos enfrentamentos ainda colocados para a democratização política e social do país, relacionada, por exemplo, à expansão e execução com maior periodicidade dos mecanismos de participação popular previstos na Constituição.

Devido à profunda pesquisa empírica e à acurada dimensão analítica, esta obra de Júlio Lopes constitui um instrumento indispensável para a compreensão dos anos que antecederam a realização da Constituição de 1988, bem como para pensar acerca das suas implicações e dilemas colocados na contemporaneidade. A reflexão em torno da “Carta da Democracia”, como bem evidenciado pelo trabalho, deve ser permanente e cuidadosa, visto que, a despeito dos limitados avanços em algumas questões essenciais — cujo exemplo maior é a questão agrária —, a Constituição de 88 tem contribuído para colocar em outro patamar a disputa política e social no país, acumulando forças para os partidos e movimentos progressistas ampliarem a luta para o necessário aprofundamento da democracia brasileira.

Fernando Perlatto é mestrando do Iuperj e pesquisador do Cedes (Centro de Estudos Direito e Sociedade) desta instituição.

Dos males, o maior

Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


Declaração falsa de patrimônio, processo no Supremo Tribunal Federal, exacerbação do compadrio, nada disso é novidade num país em que réu dá lição de moral, boa parte do Parlamento tem contas abertas com a lei, o presidente da República acha normal o uso de dinheiro por meio de caixa 2 e dissemina o sentimento de que numa boa relação política o que vale é a camaradagem.

O deputado Edmar Moreira só destoa mesmo na disponibilidade de recursos para construir um cassino em feitio de castelo no meio do nada e no atrevimento para fazê-lo a despeito da ilegalidade do jogo.

De resto, não foge da média. Em alguns casos, como na ideia da transferência dos julgamentos políticos para o âmbito do Judiciário - o que equivale à extinção de processos de natureza política e do conceito de decoro parlamentar -, Moreira até se associa a gente de dotes intelectuais que à época do mensalão defendeu a tese com galhardia e hoje se faz de morta.

Como se o esdrúxulo enunciado segundo o qual a Casa de representação política não tem condições de fazer julgamentos políticos tivesse nascido na manhã de terça-feira da semana passada na mente do então corregedor que, durante a primeira entrevista coletiva do presidente da Câmara, reclamou injuriado para o locutor que havia se esquecido de citar os integrantes da Mesa presentes.

Assim o deputado Moreira chamou atenção para si e, já encerrada a entrevista, ensejou um pedido de "compromisso público" com a ética, feito pelo repórter José Maria Trindade, da rádio Jovem Pan.

Tivesse ficado quieto, recolhido à sua insignificância, deixado passar em branco a oportunidade de constranger o locutor com sua "otoridade", o deputado muito provavelmente continuaria como segundo vice-presidente e corregedor da Câmara.

Havia sido eleito como candidato avulso, sem indicação partidária, representante, portanto, de um desejo genuíno da "Casa", aqui entendida no mau sentido de corporação.

O colegiado podia até desconhecer a folha corrida de sua excelência. Se conhecesse seria indiferente a ela, como o é em relação a tantas outras até mais fornidas, mas bem aceitas porque no Parlamento vigora o conceito de que, se o povo elegeu, todos têm direitos iguais: podem ser escolhidos presidentes, vices, secretários, presidentes de comissões, corregedores.Mas não desconhecia as opiniões do deputado a respeito de processos por quebra de decoro parlamentar. Era, e se comprometeu a continuar sendo, um inocentador por princípio. Sempre deu seu voto pró-réu, independentemente de indícios, provas ou evidências.

Na condição de corregedor, obviamente não abriria processos, não encaminharia pedidos de abertura de investigações, criaria óbices a todo e qualquer julgamento. Mostrou isso ao longo de sua trajetória, declarou que o faria assim que se viu com o cargo nas mãos.

No entanto, a Câmara não reagiu. Ou melhor, praticamente não reagiu. O presidente Michel Temer na reunião da Mesa de quarta-feira chamou atenção para a "inadequação" do declaratório e nada mais.

O PT defendeu de pronto aquele que nos momentos difíceis de 2005/2006 havia defendido os seus e ganhou corpo uma proposta para acomodar o vexame à situação: mudar o regimento para separar a corregedoria da segunda secretaria e, assim, propiciar, para Edmar Moreira, uma solução quase indolor.

Foi preciso que o partido do deputado, o DEM, enxergasse uma chance de se vingar da candidatura avulsa, contra a indicação partidária do deputado Vic Pires, para que as coisas caminhassem como deveriam ter caminhado desde o início sem a pressão do noticiário, mas por reação natural: a retirada do deputado da Mesa Diretora e daí para a abertura de um processo de cassação de mandato por quebra de decoro.

Não fosse o castelo a servir como materialização figurativa do absurdo, o deputado estaria na corregedoria da mesma forma que deputados cheios de processo integram e presidem instâncias estratégicas como o Conselho de Ética e a Comissão de Constituição e Justiça.

O partido presidido pelo presidente da Casa permite sem a menor cerimônia que a CCJ da Câmara seja posta a serviço do PMDB do Rio de Janeiro, num ato que só não virou escândalo ainda porque suas excelências são relativamente discretas; preferem atuar que se projetar, como fez o desavisado do Edmar ao exigir destaque na entrevista do presidente.

Não teve a expertise dos colegas; não percebeu que a hora era de afirmar valores altos, debater a crise financeira internacional. Possivelmente não tenha entendido até agora a razão de tanta indignação.

Não é absurdo crer na sinceridade da carta em que se diz "injustiçado". Não vê mal no que disse, já que todo mundo diz, nem problema no que faz, pois todo mundo faz.

Com um pouco mais de tirocínio, entretanto, ficaria agradecido aos pares que, dos males, mais uma vez preferiram o maior: deram ganho de causa à indecorosa prática parlamentar de preservação de mandatos minados.

Saçaricando

Eliane Cantanhêde
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

BRASÍLIA - Esta semana é de festa em Brasília, com Lula, seus 84% de aprovação e a sua candidata Dilma Rousseff saçaricando entre 3.500 a 4.000 prefeitos, ao som de verbas do BNDES, obras do PAC, refinanciamento de dívidas.

Toda semana, aliás, está virando uma festa, com Dilma de cara nova, cabelos e unhas caprichados e sorrisos como nunca se viu na antes durona chefe da Casa Civil, agora alegre candidata. E a máquina de propaganda, quer dizer, de notícias, aumenta e está a todo vapor.

Por aqui, não tem essa história de crise. A popularidade de Lula vai de salão em salão, rodopiando com Dilma, consolidando apoios certos e não-sabidos -como os do PMDB de Michel Temer e Sérgio Cabral.

De um lado, festa. Do outro, crises, divisões, castelos. Aécio Neves mostra que não estava mesmo brincando e não só exige as prévias contra José Serra, ops!, do PSDB, como já confraterniza a céu aberto com Lula, elogiando Dilma. Soa ou não soa como ameaça?

No Congresso, o PMDB ganha na Câmara e no Senado e comemora lançando sinais lânguidos para a candidatura Dilma, que já tem uma dúzia de partidos e partidecos. Já o PSDB se estapeia pela liderança na Câmara, inviabilizando o diálogo e os acordos, enquanto o seu principal aliado, o DEM, não queria o tal Edmar Moreira candidato a vice-presidente da Câmara, mas é quem acaba pagando o pato. Ele tem o castelo, mas quem tem de dar satisfação aos súditos é o partido.

Bem feito! Quem mandou abrir ficha de inscrição para quem recolhe e embolsa contribuição do INSS, não paga dívidas nem para o verdureiro da esquina e tirou do nada um castelo que não é de vento? Guenta!, como diria o outro na TV.

É assim que Dilma vai subindo e José Serra vai caindo nas pesquisas.

Ainda muito pouco, para um lado ou para o outro, mas é uma tendência, surgindo devagar, bem longe. Com empenho do Planalto e decisivo esforço da oposição.

Lula turbina o voo de Dilma

Daniel Pereira
DEU NO CORREIO BRAZILIENSE


Crédito para casa própria de servidores

Em meio a uma série de medidas em benefício dos prefeitos — como a renegociação das dívidas com o INSS —, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva anuncia hoje a criação de uma linha de crédito da Caixa Econômica Federal destinada aos servidores estaduais e municipais, um contingente de pelo menos 5,2 milhões de trabalhadores.

Eles poderão tomar empréstimos com desconto em folha e juros mais baixos para adquirir imóvel na cidade onde vivem. Hoje, tal alternativa é oferecida apenas ao funcionalismo federal. A chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, candidata escolhida por Lula para representar o PT na eleição de 2010, será a grande estrela de um dos dias do encontro com os prefeitos.

A oposição tacha as medidas de eleitoreiras e avisa que vai recorrer à Justiça. “É mais um evento de cunho político e eleitoral”, reclamou o líder do DEM no Senado, José Agripino Maia (RN).


ELEIÇÕES
Mais uma ajudinha para Dilma

De olho em 2010, Lula vai emprestar dinheiro a servidores públicos de estados e municípios para comprar casa própria. Além disso, facilitará o pagamento das dívidas das prefeituras com o INSS

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva autorizará a Caixa Econômica Federal a emprestar recursos para a compra da casa própria, em operações de crédito consignado (com desconto em folha de pagamento), que têm juros mais baixos, a servidores públicos municipais e estaduais. A decisão será anunciada durante o Encontro Nacional com Novos Prefeitos e Prefeitas, que será aberto hoje por Lula, e tem potencial para beneficiar pelo menos 5,28 milhões de trabalhadores. Essa é a quantidade de funcionários a serviço das prefeituras, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Hoje, só servidores federais têm direito a empréstimo consignado. Ao ampliar a lista, o governo pretende estimular a economia e, principalmente, a construção civil, um setor fortemente empregador.

Esse objetivo norteia as outras medidas que serão divulgadas aos prefeitos. Lula e os 36 ministros que participarão do encontro deixarão claro que não faltará dinheiro para a execução de obras em infraestrutura e programas sociais. A ideia é conclamar os governantes municipais a ajudar na reação à crise, evitando uma desaceleração acentuada da atividade econômica e a piora de indicadores em áreas como saúde e educação. Se o roteiro traçado no Palácio do Planalto for cumprido, o presidente avalia que manterá o alto nível de aprovação popular do governo, o que é fundamental para a competitividade da ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, na eleição presidencial de 2010.

Amanhã, Dilma será a principal estrela da reunião, que recebeu, até sexta-feira, a inscrição de 3,2 mil dos 5,5 mil prefeitos do país. O público é considerado excelente pelo Planalto. Sobretudo pela possibilidade de se tornar cabo eleitoral da ministra no próximo ano. Dilma falará sobre o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). “Esse é um encontro de promoção de oportunidades. É uma abertura para que o PAC chegue aos municípios”, disse o ministro de Relações Institucionais, José Múcio Monteiro. “É mais um evento de cunho político e eleitoral. Por que a ministra Dilma? Ela está presente em todos os anúncios, sejam relacionados à pasta dela ou não”, reagiu o líder do DEM no Senado, José Agripino Maia (RN).

O oposicionista informou que estará atento aos discursos e atos no encontro, para verificar se cabe uma “admoestação” à Justiça Eleitoral. De olho em 2010, o presidente Lula assinará hoje uma medida provisória que autoriza a renegociação de R$ 14,4 bilhões em dívidas dos municípios com o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). O prazo para pagamento será de 240 meses. A decisão foi tomada porque, sem a certidão negativa da Previdência, as prefeituras não podem receber verba federal. “Precisamos gerar empregos, fortalecer e implementar a economia em cada município”, declarou Múcio. Será a quinta renegociação desde 1997, segundo o presidente da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), Paulo Ziulkoski.

“Melhoral”

Ele considera insuficiente a proposta. Ontem, já articulou com o líder do PMDB no Senado, Renan Calheiros (AL), a apresentação de emendas à MP, enquanto prefeitos — como Antonio Ulsenheimer, de Saudades (SC) — circulavam pelos corredores do Congresso. A meta da CNM é promover um encontro de contas com o INSS. “O que eles devem às prefeituras seguramente anula o débito”, afirmou

Ziulkoski. Ele acrescentou que, se o governo não mudar o índice de correção da dívida, a fatura jamais será paga. Em 1997, o débito era de R$ 4 bilhões. “A medida não passa de um melhoral para quem está com pneumonia”, criticou o presidente da CNM.

Conforme o Correio antecipou, o governo também ampliará uma linha de financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para a compra de ônibus, tratores e patrulha mecanizada pelos municípios. O valor neste ano será de R$ 980 milhões, contra R$ 500 milhões em 2008.

LULA PRESENTE

Organizado pela Presidência da República a um custo de R$ 243 mil, o Encontro Nacional com Novos Prefeitos e Prefeitas será aberto hoje, às 14h, no Centro de Convenções Ulysses Guimarães, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. À mesa, estarão, entre outros, o governador José Roberto Arruda e o ministro de Relações Institucionais, José Múcio Monteiro. Até amanhã, quando a reunião será encerrada, 36 ministros participarão do evento.



O balanço
5,28 milhões é o número de servidores públicos nos municípios
R$ 14,5 bilhões é quanto as prefeituras devem ao INSS
3,2 mil prefeitos já se inscreveram para o encontro
R$ 243 mil foi o gasto do governo com a organização do evento

Governo lança pacote para acelerar PAC e brecar ato de prefeitos

Simone Iglesias e Letícia Sander
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Municípios, que fazem ato tradicional em março, terão prazo para pagar dívidas com o INSS elevado de 60 para 240 meses

Como prefeituras devedoras não recebem verba do PAC, quitação agilizará programa; evento, que ocorre hoje e amanhã, custará R$ 241 mil

O governo anuncia hoje, em encontro com prefeitos, um pacote de bondades com o objetivo de agilizar obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) e esvaziar a marcha de prefeitos, em março.

Por meio de medida provisória, serão refinanciadas dívidas dos municípios com o INSS (Instituto Nacional de Seguridade Social) em até 240 meses. Hoje, o prazo é de 60 meses. São devidos cerca de R$ 14 bilhões, diz o governo. Prefeituras com débito não podem receber verba da União para investimentos, incluindo do PAC.

No evento, que custará R$ 241 mil entre gastos com material didático e de divulgação, equipamentos de som e o aluguel do centro de convenções Ulysses Guimarães, estarão presentes primeiras-damas e secretários municipais. Será um grande palanque para o presidente Lula e a ministra Dilma Rousseff (Casa Civil), anfitriões do encontro. Passagens e estadias estão por conta dos convidados. A previsão é reunir cerca de 8.000 pessoas.

O encontro nacional organizado pelo governo, na prática, se sobrepõe à iniciativa levada a cabo há pelo menos dez anos pelas entidades municipalistas Frente Nacional dos Municípios, Confederação Nacional dos Municípios e Associação Brasileira dos Municípios.

As marchas anuais de prefeitos a Brasília, comandadas por essas entidades, começaram com pauta reivindicatória e crítica. Nos últimos anos, porém, os eventos foram marcados por um tom mais conciliador. Desde 2003, Lula é convidado para as marchas. Em 2008, cerca de 4.000 pessoas participaram da abertura do evento, em abril.

O presidente da Confederação Nacional dos Municípios, Paulo Ziulkoski, disse que a prorrogação da dívida ajuda, mas não resolve. "É um Melhoral para a febre, mas no mês seguinte a pneumonia estará lá."

Segundo ele, o valor devido é desconhecido pelas prefeituras, o que poderá gerar problemas a longo prazo.

Já o presidente da Associação Brasileira dos Municípios, José do Carmo Garcia, elogiou a iniciativa. "O governo anunciou inúmeros programas que colocará à disposição dos prefeitos, mas os municípios precisam estar regularizados."

Durante o encontro, o presidente anunciará a liberação de R$ 980 milhões pelo BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) para a compra de máquinas e tratores. No ano passado, foram liberados R$ 500 milhões. Segundo o BNDES, 433 prefeituras pediram o financiamento, esgotando os recursos. Hoje, há 268 municípios na fila.

Questionado se o pacote do governo esvaziava as reivindicações dos prefeitos, Ziulkoski admitiu que pode ocorrer. "Se for para o bem, pode esvaziar a marcha, não tem problema."

Ontem à noite, Dilma participou de debate com membros do diretório do PT e prefeitos do partido em que, segundo relatos dos participantes, ela afirmou que o país está bem posicionado diante da crise, citou as medidas do governo, entre elas um pacote habitacional que ainda será anunciado.

O plano de voo do PT para Dilma

Raymundo Costa
DEU EM VALOR ECONÔMICO

O PT quer começar a campanha da ministra Dilma Rousseff (Casa Civil) a partir de abril, já com uma agenda "eleitoral eficiente" e uma proposta clara para a armação dos palanques regionais, pois considera que esta é a melhor maneira de enfrentar um candidato consolidado do ponto de vista da opinião pública, conforme apontam as pesquisas, como é o governador de São Paulo, José Serra (PSDB).

"Em março temos que tomar um rumo. Cada dia que passa é um dia a menos. O Lula tem dia e hora para sair", diz o ex-governador do Acre Jorge Viana, um dos integrantes do mutirão do PT que articula a viabilização da candidatura Dilma, do qual fazem parte, entre outros, o presidente Ricardo Berzoini (SP), ministros e outros ex-governantes petistas

"Isso vai assim até março, meio caótico. Depois engrena", diz.

O ex-governador conversou com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva em janeiro. Logo depois Lula se encontrou com os ex-prefeitos Marta Suplicy (SP), João Paulo (BH) e Fernando Pimentel (BH). Com todos Dilma foi assunto central.

A própria Dilma teve pelo menos 20 encontros oficiais com Lula, só nestes 40 dias de 2009. Mais que qualquer outro ministro. Mas segundo Viana, nem Lula já a convidou nem ainda se constituiu uma coordenação formal da candidatura.

Mesmo sem a oficialização, Jorge Viana diz que é preciso definir imediatamente uma "agenda para cumprirmos e para podermos fazer andar o projeto". Ele não é um fã do que chama de "agenda PowerPoint" - programa utilizado para edição e exibição de apresentações gráficas - e das visitas relâmpagos, "e sim de uma agenda mais de gente do que de números".

Segundo Viana, mesmo sendo importante, esse tipo de agenda não atinge as pessoas. "Mais eficiente é ela dormir lá no Acre, ir ao mercado, conversar com as pessoas. Vai sair em todos os jornais durante três dias. Mas chegar lá tipo meio-dia, fazer um ato bacana e sair as seis horas da tarde, as pessoas não vão nem tomar conhecimento". O ex-governador acha a atual agenda "muito eficiente para o governo continuar crescendo em respeitabilidade, aceitação e tal. Mas não tão eficiente pra gente poder consolidar um nome à candidatura".

Em contato com institutos de pesquisa, Viana tem percebido muito ceticismo à hipótese de Dilma chegar a 20% das intenções de voto até o final do ano. Ele é de outra opinião: acredita que com uma agenda bem trabalhada, a ministra Dilma chega aos 25% nesse período. Já está nos dois dígitos.

Uma candidatura oficial, evidentemente, não se resume à agenda. As alianças estaduais são decisivas. "Nós temos que tomar uma decisão: se a gente faz a política de alianças de cima para baixo ou de baixo para cima. Se você olhar de cima para baixo, não dá jogo com o PMDB, que é o nosso parceiro preferencial, não tem aliança tão cedo", diz Viana. "Isso porque há pelo menos uns três ou quatro grupos e nenhum interlocutor de fato do PMDB".

"Mas como é uma eleição geral também do ponto de vista dos Estados, com disputas para governador e deputado, se for feito de baixo para cima eu acho que tem como fechar aliança na maioria dos Estados do PT com o PMDB". Isso "desde que a gente flexibilize um pouco".

Viana fala do PT. Como exemplo, cita Minas Gerais. "Dá para fazer (acordo com o PMDB), mas a gente precisa resolver antes o problema entre o Fernando Pimentel (ex-prefeito), Patrus Ananias (ministro do Desenvolvimento Social) e companhia. Se não tiver esse acerto, como é que nós vamos conversar com os outros? Nós todos temos que tomar juízo", adverte Jorge Viana. "Se nós não resolvermos Minas Gerais, nós teremos problemas", prevê Jorge Viana.

O raciocínio do ex-governador é cartesiano. O PT já enfrenta dificuldades em São Paulo, o que é natural, por conta da força eleitoral do PSDB no Estado, conforme demonstrado nas últimas eleições presidenciais (aliás, cabe acrescentar que os tucanos avaliam que José Serra pode ter um desempenho maior que o de Geraldo Alckmin contra o próprio Lula, nas eleições de 2006 - o PSDB acha que Serra, mantidas as atuais condições de temperatura, pode levar mais de 80% dos votos).

No Rio de Janeiro, Viana acha que é possível compor com o PMDB. Mas neste caso, a aliança decidida de baixo para cima pode não resolver nada, se o governador Sérgio Cabral "ficar na dúvida se apoia ou não o candidato do presidente Lula".

Em Minas Gerais, a situação depende mais do PT que do PMDB. "Por isso que Minas Gerais é tão importante para nós. Assim que a gente tiver Minas e os tucanos tiverem São Paulo, pode bater (estariam então em igualdade de condições para a disputa)". Acertando o Rio de Janeiro, o PT acha que pode então sair do confronto no Triângulo das Bermudas (São Paulo, Rio e Minas, os três maiores colégios eleitorais do país) numa situação melhor que a do PSDB.

Viana vê dificuldades para o entendimento PT-PMDB no Rio Grande do Sul, talvez no Acre, onde faz política, e Pernambuco, onde de qualquer forma o PT terá condições de fazer uma boa aliança com o PSB, se for evidentemente flexível - Eduardo Campos é candidato à reeleição ao governo estadual, cargo também cobiçado pelo ex-prefeito João Paulo.

Apesar dos entreveros no Pará, o PT vê possibilidades de entendimento no Pará, entre Jader Barbalho e Ana Júlia Carepa. Um acordo é possível também no Amazonas e até na Bahia, onde os dois partidos, embora aliados no governo estadual, passam por dificuldades no relacionamento.

"Na maioria dos Estados a gente pode sair junto por aquilo que é importante, que é a eleição local, o calendário, a agenda regional tomando a frente da agenda nacional, afinadinhos com ela", diz Viana. "Isso é uma coisa pra mim fundamental". Resta saber se o PT tem hoje mais capacidade de ceder espaços, em nome de boas alianças, do que teve até agora.

Raymundo Costa é repórter especial de Política, em Brasília. Escreve às terças-feiras

Sinais, mas ambíguos

Clóvis Rossi
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

SÃO PAULO - Antes de mais nada, agradeço aos leitores que se deram ao trabalho de enviar explicações para a aparente contradição entre a crise e o fato de o fechamento de contratos para financiamento de imóveis pela Caixa Econômica Federal ter batido o recordo em janeiro -aliás, foi o melhor janeiro de todos os tempos desse ponto de vista.

Algumas explicações fazem sentido, outras despertam ainda mais perplexidade, mas creio que a pesquisa do Datafolha publicada ontem ajuda a entender a aparente (ou real) contradição.Dois terços dos pesquisados dizem não ter medo de perder o emprego, embora em um terço dos lares paulistanos ao menos um dos integrantes tenha ido para a rua nos seis meses mais recentes -ou seja, no período em que a crise começou a deixar de ser "marolinha".

Embora o corte de postos de trabalho seja sério e inquietante, ainda não foi suficiente para causar inquietação na camada majoritária de trabalhadores. Daí decorre que, se há certa segurança quanto ao emprego por parte da maioria, haverá naturalmente propensão ao consumo. Aliás, é o que mostra a pesquisa: apenas 32% dos consultados disseram ter deixado de comprar algum bem com medo da crise.

Pesquisa à parte, a vida real mostra crescimento nos licenciamentos de carros de 1,5% em janeiro sobre dezembro. De novo, sem confiança, não haveria tal aumento justamente quando a "marolinha" vira tsunami no noticiário.

Entenda-se o "apenas" dois parágrafos acima meramente como contraponto ao fato de que a maioria não deixou de comprar. Trinta e dois por cento de gente deixando de comprar seria assustador, creio, em circunstâncias normais. Numa crise que muita gente trata como inédita, não sei se é muito ou pouco.

Enfim, tudo somado, tem-se um panorama excessivamente embaçado tanto para previsões otimistas como para antecipar o apocalipse na primeira curva da esquina.

Dupla militância

Merval Pereira
DEU EM O GLOBO


Existem dois G-20 nas negociações internacionais: um formado pelos países em desenvolvimento que se uniram para as negociações comerciais no âmbito da Organização Mundial do Comércio, e outro que reúne as economias mais importantes do mundo, uma ampliação do G-7. O Brasil faz parte dos dois e, com a onda protecionista que se espalha pelo mundo nos últimos dias, está utilizando a experiência dos dois lados a fim de chamar a atenção para os perigos de o comércio internacional ficar paralisado pelas decisões governamentais de vários países.

A cláusula "buy American" (compre produtos americanos) incluída no plano de recuperação econômica dos Estados Unidos desencadeou protestos pelo mundo, mas diversos países estão também adotando medidas protecionistas, inclusive a França, que ontem exigiu que a indústria automobilística utilize o pacote de incentivo anunciado pelo governo nas fábricas em território francês e em compras de produtos franceses, provocando protesto na União Européia.

O Congresso americano, diante das reações, amenizou a barreira protecionista, ressaltando que a exigência só poderá ser feita se não ferir os acordos internacionais. Há quem veja nessa ressalva uma maneira de anular a cláusula na prática sem revogá-la, enquanto os mais céticos consideram que apenas os países que assinaram acordos de compras governamentais com os Estados Unidos estariam a salvo, como os países do Nafta (Canadá e México) e a União Européia.

O fato é que o governo brasileiro está em uma situação delicada, pois, embora esteja do lado certo na defesa da liberação do comércio internacional, não assinou acordos de compras governamentais. O Brasil, fazendo um alerta na Organização Mundial do Comércio contra o protecionismo, está apenas defendendo um conceito, mas terá que ser mais flexível se for retomada a negociação da Rodada de Doha, por exemplo, se quiser manter a coerência e avançar nas negociações.

O Acordo de Compras Governamentais é plurilateral, de adesão voluntária e, portanto, restrito aos membros que aceitaram suas cláusulas, segundo as quais, nas compras governamentais, o processo licitatório está aberto a todos aqueles que aderiram a ele.

A área de compras governamentais sempre foi um terreno delicado nas negociações internacionais do Brasil, ainda na época da falecida Alca, a Área de Livre Comércio das Américas. Chegou-se a um compromisso da transparência, com o Brasil aceitando que, quando houvesse uma licitação internacional para compras públicas com alguma empresa estrangeira interessada, esta teria acesso, sem restrições, às informações.

Isso não representaria nenhum problema para o governo brasileiro, já que as informações são públicas e estão no sistema de pregão eletrônico, um dos mais avançados do mundo. Uma proposta mais ampla, porém, que não obteve a concordância do governo brasileiro, exigia que, quando surgisse um projeto de lei no Congresso, se desse conhecimento imediato aos países integrantes da Alca para que opinassem.

A negociação empacou mesmo no compromisso de abrir todas as áreas às empresas estrangeiras, sem limitações, por instrução direta do Palácio do Planalto. O governo admitia que, no futuro, quando estivesse estabelecido um protocolo de compras do Mercosul, essa abertura pudesse ser feita.

Os americanos queriam que houvesse um compromisso também dos estados, e Argentina e Brasil, que são federações, não podiam se comprometer, assim como os estados americanos, independentes entre si, não aceitariam normas federais genéricas.

No plano federal, alguma flexibilidade poderia ser aceita, mas sem abrir mão da possibilidade de usar compras públicas para exigir contrapartidas de transferência de tecnologia, ou de investimentos em algumas áreas.

A postura do governo brasileiro pode ser considerada tão protecionista quanto a dos Estados Unidos, já que considera que as compras governamentais devem servir para estimular as empresas nacionais.

No momento, o Brasil assume, mais uma vez, a liderança do G-20 na Organização Mundial do Comércio, fazendo o alerta contra o protecionismo dos países ricos, e vai para a reunião do G-20, em Londres, pela primeira vez com o novo presidente americano Barack Obama disposto a, pela voz do presidente Lula, denunciar esse protecionismo como prejudicial à solução da crise econômica internacional.

O problema é que a coesão do G-20 dos países emergentes só existe até o momento em que ele representa uma resistência para a abertura em produtos industriais, e a China, que é o verdadeiro alvo da cláusula "buy American", só se sentiu à vontade no G-20 enquanto ele era um bastião contra a negociação.

Já o Brasil, que na denúncia do protecionismo está do lado da China e dos outros emergentes, aceitara, no ano passado, uma proposta dos Estados Unidos e da União Européia sobre subsídios agrícolas, uma redução pequena, mas que dava espaço para que o espírito multilateral prevalecesse, e a abertura para mais acesso, mesmo que não a ideal.

Nossa ambição, no entanto, era maior do que a da China ou da Índia, que queriam apenas proteger suas agriculturas familiares, assim como a União Européia faz, contra os competidores, que em grande parte das vezes é o agronegócio brasileiro.

O Brasil luta no G-20 dos países industrializados para que a retomada da Rodada de Doha represente um avanço para o comércio internacional que beneficiará os países em desenvolvimento, mas servirá também para revitalizar a economia internacional, ao contrário do protecionismo que está sendo adotado pelos mesmos países mais desenvolvidos.

Meio cheio, meio vazio, quase vazio

Vinicius Torres Freire
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


Primeiros dados da economia em janeiro indicam que do chão não se passou, mas há problema novo em gestação

DO CHÃO NÃO se passa, diz o provérbio que procura animar quem se arrisca a tomar tombos.

No mês passado, as montadoras não desceram abaixo das profundezas de dezembro, mas as fábricas de veículos, que vinham crescendo mais de 20% ao ano, agora encolhem mais ou menos na mesma proporção. O Banco Central antecipou ontem uma estatística sobre o crédito, com dados coletados até a metade de janeiro. O total de novos financiamentos teria crescido em janeiro (soma de pessoas físicas e jurídicas). Mas os números são um tanto contraditórios e/ou confusos.

No caso das empresas, o total de dinheiro novo emprestado em janeiro voltou a cair em relação a dezembro, ficando quase no mesmo nível de setembro, mês da explosão final da crise americana. No caso das pessoas físicas, teria havido crescimento em relação a dezembro, se considerados os dados oficiais para este mês. Pelos dados divulgados ontem pelo BC, que aparentemente alteram os números oficiais de dezembro, não teria havido avanço.

Não dá para dizer que se chegou ao fundo do poço, nem dá para desdenhar. Após a sufocação de crédito doméstico no final de 2008, trata-se de um alívio. Além do mais, com a oferta de crédito do BC para que as empresas paguem suas dívidas externas, a situação pode melhorar mais um tico em fevereiro.

Um tanto inquietante é que os bancos públicos sirvam de rede de proteção creditícia. De setembro a dezembro, o volume de dinheiro novo emprestado pelos bancos privados nacionais cresceu 2,49%. Nos bancos públicos, 12,92%. Nos privados estrangeiros, 4,56%. De junho a setembro, essas taxas eram 8,83% (privados nacionais), 6,85% (públicos), 7,88% (privados estrangeiros). Isto é, os bancos públicos mantiveram a peteca do crédito no ar.

Dada a seca abrupta de crédito, muito bem que os bancos públicos substituam, em parte e provisoriamente, o setor privado. Tal troca de posições vai continuar a acontecer pelo resto do ano, pois o BNDES foi vitaminado pelo governo. Mas, como no futebol, não é possível substituir o time inteiro durante o jogo, nem os bancos oficiais têm um grupo de reservas bastante para substituir os privados durante muito tempo. Trata-se apenas de um remendo. Um conserto, embora ainda precário, vai demandar medidas oficiais que barateiem o crédito: Selic, compulsórios e impostos menores.

No caso das montadoras, o pior foi o grande baque na venda de caminhões. Se a venda de caminhões despenca é porque as transportadoras estão ociosas e antecipam mais ociosidade. Se o fazem, é porque o tráfego de mercadorias está em baixa.

Os dados sobre desemprego ainda são muito incipientes. Mas a quantidade de acordos para a redução de jornada e salário, que devem durar para além do trimestre, não é muito animadora para as perspectivas do consumo. Também preocupante, os bancos estão não apenas prevendo, mas registrando, um aumento grande de inadimplência. Os números divulgados pelo BC registram, com atraso de um mês, pagamentos em atraso faz mais de 90 dias. Os dados disponíveis, pois, referem-se a dificuldades datadas ainda do início da crise. Os bancos e o comércio já estão vendo coisa bem pior.

O comércio exterior e a crise

Rubens Barbosa
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

A crise financeira global e a recessão das economias desenvolvidas da Europa e dos EUA, além da redução significativa do crescimento da China e dos países emergentes, acarretaram, de maneira dramática, a rápida queda no nível de emprego e no intercâmbio comercial global. O fracasso da Rodada Doha e o perigoso incremento das tendências protecionistas nos países desenvolvidos, a começar pelos EUA, tornarão a situação ainda mais complexa.

Como ficará o setor externo brasileiro nesse contexto externo difícil?

Vou-me concentrar apensas na frente interna. Ao longo de 2008, o governo brasileiro, por meio do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC), tomou medidas para tentar reduzir o custo de produção e estimular as exportações.

Em maio foi anunciada a Política de Desenvolvimento Produtivo (PDP), que apoiaria uma nova política industrial definindo áreas estratégicas (saúde, energia, tecnologia de informação e comunicação, indústria de defesa, nanotecnologia e biotecnologia) e áreas de consolidação de liderança mundial (aeronáutica, mineração, siderurgia, papel e celulose, petroquímica e carnes). Com mais de 20 medidas de desoneração tributária e de financiamento, a PDP tem o duplo objetivo de ampliar a participação das exportações para 1,25% das exportações mundiais e de aumentar em 10% o número de pequenas e médias empresas exportadoras.

A Estratégia Brasileira de Exportação, lançada em setembro, visa a reforçar as políticas internas para alcançar as metas fixadas em maio, ampliar a coordenação e explorar consensos entre os vários órgãos públicos que, de alguma maneira, atuam sobre o controle regulatório do comércio exterior e sobre as atividades de promoção comercial e apoio à exportação. A Estratégia identificou ações que estão sendo desenvolvidas pelo governo com maior impacto sobre o setor externo (infraestrutura, crédito e simplificação) e procura articular, de forma mais eficiente, atividades de diferentes órgãos e propostas que visam a fortalecer a competitividade externa pela maior agilidade, racionalidade, desburocratização e melhoria da qualidade de gestão por parte do setor público. Por outro lado, busca-se assegurar condições para que as empresas brasileiras diversifiquem sua pauta e os destinos de suas exportações, além de agregar valor aos seus produtos por meio da inovação e de novas tecnologias.

O 28º Encontro Nacional dos Exportadores (Enaex), em novembro, deu o respaldo do setor privado às iniciativas que visam a aumentar a competitividade das exportações brasileiras, embora reconhecendo que, até aqui, pouco do prometido pelo governo foi alcançado.

Agora, anuncia-se um novo conjunto de medidas para apoiar as exportações. Resta saber se terão o mesmo destino da Política de Desenvolvimento Produtivo e da Estratégia Brasileira de Exportação.

As perspectivas do comércio externo brasileiro para os próximos dois anos são difíceis, como evidenciado pelas projeções de sensível redução das exportações em 2009. A crise global tornou clara a vulnerabilidade externa brasileira pela fragilidade produtiva e limitada capacidade competitiva, em decorrência da falta de políticas de produção e de comércio exterior.

Por não ter respondido a tempo aos desafios internos, o Brasil tem de enfrentar simultaneamente três vulnerabilidades, como apontado no Enaex.

A estrutural, resultado da ausência de política proativa visando a corrigir ou superar as barreiras internas (custo Brasil e ineficiência burocrática) que impedem ou dificultam o aumento diversificado da produção exportável; a operacional ou comercial, quando ocorrem déficits em transações correntes no balanço de pagamentos; e a exógena, decorrente dos efeitos das crises internacionais sobre a economia nacional, por meio de três principais canais: redução ou interrupção de linhas de crédito externo para investimentos e financiamentos; redução da demanda externa, com impacto na venda de produtos e serviços nacionais, seja em quantidade ou preço; pressão sobre a importação de mercadorias pela oferta de melhores condições de compra.

Seria importante, por isso, que o conjunto de medidas aprovadas pelo governo brasileiro fosse efetivamente implementado, pois apenas a liberalização de financiamentos é insuficiente.

Caberia à Secretaria Comércio Exterior do MDIC, respaldada pela Câmara de Comércio Exterior (Camex), fazer um balanço do que foi conseguido e do que falta completar para permitir que a competitividade das exportações brasileiras se fortaleça.

Do resultado desta análise, a opinião pública em geral e o setor exportador, em particular, poderiam avaliar a real capacidade da Camex de coordenação dessa agenda no contexto de uma gestão compartilhada e interdepartamental, como era intenção do governo.

Caso não consiga exercer sua capacidade coordenadora - o que parece mais provável -, ficarão evidenciadas a fraqueza do órgão colegiado e a necessidade de seu fortalecimento. No Enaex foi discutida a necessidade de mudanças institucionais para revitalizar a Camex. Uma das propostas discutidas foi a sua subordinação direta à Presidência da República, com a criação da função de ministro do Comércio Exterior para coordenar e dirigir o colegiado, seguindo o modelo USTR, norte-americano, adaptado às peculiaridades brasileiras. A crise global e seus efeitos negativos para o comércio exterior brasileiro oferecem uma oportunidade para o exame isento e objetivo do futuro da Camex pelo Congresso, pelo governo e pelo setor privado.

A frente externa de negociações comerciais para permitir o incremento das exportações brasileiras - que complementa a reorganização administrativa interna - fica para um próximo artigo.

Rubens Barbosa, consultor de negócios, é presidente do Conselho de Comércio Exterior da Fiesp

A recessão da deflação de ativos

Yoshiaki Nakano
DEU NO VALOR ECONÔMICO


Até o momento, a crise financeira nos Estados Unidos e na Europa provocou uma contração econômica modesta, mas está entrando numa nova fase, dentro de um padrão clássico de recessão. A contração inicial, comandada pela queda na demanda de consumo, está se deslocando para ajuste significativo no emprego (e na folha de pessoal) e corte nos investimentos. Esta aceleração no corte de pessoal e salários implicará em novas quedas na demanda e deverá se estender por este ano. A forte aceleração na queda nos pedidos de bens de capital desde novembro deverá ter os mesmos efeitos. Assim, apesar da ação agressiva do Federal Reserve e do Banco Central Europeu, e da política fiscal expansionista adotada também do lado real da economia, o pior está por vir.

Profundo e rápido ajuste pelas empresas diante da queda na demanda poderia facilitar a posterior recuperação do crescimento, se a recessão atual fosse típica. Se a ação rápida e agressiva da política monetária fosse capaz de evitar o colapso do sistema financeiro, e a política fiscal fosse capaz de revitalizar a demanda agregada, as empresas estariam melhor preparadas para recuperar a produção, recontratar os trabalhadores e retomar os planos de investimento. Mas a atual recessão não é apenas "profunda e prolongada".

Paul Krugman, ganhador do último Prêmio Nobel de economia, vem sistematicamente chamando atenção para o fato de que podemos estar caindo num abismo econômico, e que se isso acontecer será muito difícil sair dele. Segundo Krugman, o pior de tudo é a possibilidade de que a economia americana se veja presa numa prolongada armadilha deflacionária. Isto é, estamos de novo com a economia em depressão, enfrentando problemas que caracterizaram a maior parte da economia mundial nos anos 30 e que o Japão enfrentou durante 15 anos, desde o início da década de 90. Citando Irving Fisher, ele lembra que a deflação, uma vez iniciada, tende a se autoalimentar, por isso pode durar muito e é difícil sair dela.

Mas é Richard C. Koo, economista-Chefe do Nomura Research Institute, o braço de pesquisa da Nomura Securities, que no seu recente livro "The Holy Grail of Macroeconomics Lessons from Japan´s Great Recession", (Singapura, John Wiley and Sons Asia, 2008) apresenta certamente a mais significativa e bem documentada análise com seu conceito de "balance sheet recession". Este conceito oferece um novo entendimento sobre os problemas que as economias americanas e europeia começam a enfrentar.

De fato, a crise financeira está atingindo a fase em que as as grandes dívidas assumidas pelas empresas na fase de euforia começam a vencer. Na zona do euro estas dívidas atingiram US$ 11 trilhões, cerca de 95% do PIB da região, e os empréstimos bancários despencaram 40% no fim de 2008. As empresas americanas não estão numa situação melhor. Num primeiro momento, o aumento da inadimplência deverá provocar novas ondas de choques que irradiarão pela economia global, e mais dívidas tóxicas desabarão sobre o sistema financeiro.

Mas o ponto central, para Koo, é que a crise financeira destruirá centenas de trilhões de dólares de ativos financeiros que foram criados durante a fase de longa expansão da economia global, que geraram grande "boom" de crédito e sustentavam uma inflação de preços de ativos financeiros e bolhas especulativas. A desalavancagem, a iliquidez dos mercados e a incerteza e aversão ao risco num processo de retroalimentação já provocaram uma brutal deflação de preços de ativos, as bolsas de valores perderam a metade de seu valor, e o mesmo aconteceu com as commodities e outros mercados. Esta brutal deflação de ativos terá um efeito devastador não só sobre o balanço dos bancos, mas também sobre o das empresas, com redução no patrimônio liquido. Muitas empresas ficarão com patrimônio líquido negativo. Neste quadro, a lógica que regerá as empresas será a lógica da recomposição do patrimônio, minimizando a sua dívida: redução do valor dos ativos forçando a redução dos passivos, num processo que se autoalimenta. É a versão da deflação de preços ativos em contrapartida à deflação de preços bens e serviços de Irving Fisher.

A lógica da expansão econômica e de crédito que imperava até meados de 2007 será substituída pela lógica da contração econômica e de ativos. Na expansão, as expectativas de elevados retornos dos investimentos produtivos estimulam o sistema financeiro a gerar ativos financeiros, dando-lhes liquidez imediata para a produção futura, e criam um ambiente de crédito barato que estimula novos investimentos, e assim por adiante. Nesta fase, os agentes econômicos expandem seus gastos sustentados pelo crédito e aumento do valor da riqueza financeira. Quando o ciclo se reverte, a contração econômica reduz os preços dos bens e serviços. Quando desencadeado por crises financeiras, os preços dos ativos despencam, com grandes perdas patrimoniais, arruinando o balanço das famílias e das empresas. Tanto as famílias como as empresas são obrigadas a pagar suas dívidas para não irem à falência. E a contração econômica será tão mais profunda e prolongada, quanto mais exagerada for a geração de crédito e inflação de ativos.

Numa recessão normal, a demanda de consumo que sustenta o nível de atividade e depende da renda gerada pelo emprego se contrai, mas se recupera em seguida. Numa grande contração provocada pela crise financeira, ativos são destruídos e dívidas precisam ser pagas, ou seja, é preciso poupar, subtraindo demanda de consumo, para recompor o patrimônio líquido. As famílias americanas que não só deixaram de poupar, como se endividaram para consumir mais e mais, sustentaram uma grande expansão econômica até 2007. Subitamente, desde lá até o final do ano passado, tiveram uma perda patrimonial estimada de mais US$ 5 trilhões. Além disso, os economistas estimam que a taxa de poupança das famílias deverá chegar a 4% a 5% do PIB.

Mesmo que não haja uma deflação de preços de bens e serviços, o colapso no preços dos ativos financeiros - a deflação de ativos - muda totalmente a lógica da ação econômica das empresas e dos bancos, que têm agora também que reduzir, a qualquer custo, as suas dívidas e recompor os seus patrimônios, para evitar a falência. As famílias aumentam a poupança, mas as empresas não tomam empréstimos para expandir seus investimentos - tomam apenas para pagar suas dívidas. Seus lucros, se houver, também são canalizados para reduzir seus passivos.

Neste quadro, a política monetária deixa de ter efeitos e, mesmo reduzindo a taxa de juros para zero, nem as famílias, nem as empresas, têm estímulo para se endividar, consumir ou investir. No desespero, os bancos centrais reduzem a taxa de juros. Nos Estados Unidos, o Fed já reduziu para 0% a 0,25%, mas a economia não responde, pois ninguém está disposto a se endividar e investir. No máximo substituem empréstimos com juros mais altos por mais baixos. É por isso que, mesmo com juros negativos, o mercado de títulos de empresas também paralisa.

Yoshiaki Nakano, ex-secretário da Fazenda do governo Mário Covas (SP), professor e diretor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas - FGV/EESP, escreve mensalmente às terças-feiras.

Ataque engasgado

Miriam Leitão
DEU EM O GLOBO


O governo americano tenta um ataque duplo à crise, mas o gatilho ainda está mascando. De um lado, o anúncio do plano de reestruturação do mercado financeiro preparado pelo secretário do Tesouro foi adiado para hoje. Barack Obama subiu o tom ontem e atacou o "atraso sem fim e paralisia" do Congresso em aprovar o pacote. Essas três primeiras semanas foram decepcionantes.

O tom do presidente Barack Obama ontem, criticando o Congresso americano em Indiana, estado que está com 15% de desemprego, mostra que ele enterrou os sonhos de fazer um histórico governo bipartidário. Até a simples carona no Air Force One oferecida por Obama ao senador moderado de Indiana Dick Lugar foi rejeitada. Não, os republicanos não querem nada que pareça com governo bipartidário. Eles estão aproveitando os deslizes fiscais dos primeiros indicados ao governo e forçando o atraso do plano econômico para começar a reorganizar suas forças devastadas na última eleição.

Ainda que esteja demorando, o movimento do governo Obama contra a crise econômica é a única saída possível. Mas é mais complexa do que se imagina. A engenharia financeira de limpeza dos ativos tóxicos dos bancos vai ser demorada, complexa e cara. E não está contabilizada no pacote que está sendo aprovado no Senado. Resta ao governo Obama dizer que todo esse custo é a limpeza do lixo deixado pelos oito anos do governo republicano.

O Tesouro americano vai ter que injetar mais dinheiro dos contribuintes nos bancos, porque a segunda parcela do primeiro plano do governo George Bush, aqueles US$350 bilhões que ficariam para este fim, foi em grande parte já comprometida. O plano Obama, que está sendo aprovado no Senado, é para outros fins: redução de impostos, ajuda a mutuários, obras públicas, isenção tributária para indústrias que se quer incentivar, como a produção de energia eólica e solar.

A economia americana enfrenta dois problemas agudos. O primeiro é resgatar os bancos dos seus papéis podres; o segundo é resgatar a economia, que se afunda numa espiral recessiva. A primeira tarefa parece ser uma história sem fim: o governo já salvou banco a banco ou com a estatização, ou com capitalização, ou com garantia de depósitos e, ainda assim, os bancos continuam financeiramente instáveis, com os especialistas falando ainda em insolvência e crise sistêmica.

A ideia original do ex-secretário do Tesouro Henry Paulson, de "comprar" os ativos podres, que não foi implementada porque ninguém sabia responder às perguntas básicas - o que, como, quanto, de quem e por quanto comprar -, continua rondando os formuladores dos planos de salvamento. Os bancos querem se livrar dos micos que eles mesmos produziram com seus erros passados, e a chantagem que pesa sobre os contribuintes é a mesma de sempre nestes casos: se a indústria bancária ruir, desmonta-se toda a economia. O contribuinte está às vésperas de ser informado de que terá que gastar mais dinheiro nos bancos, que os micos virão para o setor público, e que terá que engordar o fundo garantidor de crédito, o FDIC.

Depois de fazer este resgate, se ele der certo, o governo americano terá que liderar uma ampla faxina na regulação bancária. Ontem, o economista Nouriel Roubini disse, em entrevista ao "Financial Times", que o modelo anglo-saxão de autorregulação do mercado financeiro falhou. Que o conjunto de normas prudenciais, conhecido como Basiléia II, fracassou antes de ser completamente implementado. Esta faxina ampla, geral e irrestrita será um trabalho de anos.

Enquanto isso, será preciso reerguer a economia em que definham produção, consumo e emprego. É para isso que será usado o dinheiro do Pacote Obama. Mas ele vem para nós com o amargo sabor do protecionismo, se não for eliminada a cláusula que determina que as obras públicas para estímulo econômico consumam apenas matérias-primas e componentes produzidos internamente.

O protecionismo é sempre o primeiro instinto numa crise e sempre o maior risco em qualquer crise. O mundo, agora, balança entre o instinto e a razão. Há sinais de que a razão leva a pior em alguns fatos: pressões de trabalhadores, em vários países, para que se pense primeiro nos empregos locais; pressão das indústrias nacionais para barrar as concorrências estrangeiras; fortalecimento do lobby nacionalista. Se essas pressões vencem o comércio internacional, que é um grande estimulador econômico, será a primeira vítima. O consumidor local acaba pagando o custo do fechamento dos mercados através de preços mais altos. Mas é difícil, num momento de perigo, dizer aos governantes e aos trabalhadores que o instinto de reservar os empregos só para os trabalhadores nacionais está errado.

No Brasil, foi o que se viu dias atrás: diante do primeiro vermelho da balança comercial, num surto, a área econômica decidiu levantar barreiras não tarifárias contra 60% das importações. O Brasil protesta na Organização Mundial do Comércio contra a cláusula de preferenciais nacionais nas compras governamentais do pacote americano, só que o Brasil nunca aceitou assinar o acordo que estabelece as regras para essas compras. Só nos resta torcer para que a Europa e o Japão, signatários do tratado de compras governamentais, derrotem todas as pressões protecionistas que vão continuar surgindo na economia americana neste momento.