segunda-feira, 13 de abril de 2009

PENSAMENTO DO DIA

“Hegel parte do Estado e faz do homem o Estado subjetivado; a democracia parte do homem e faz do Estado o homem objetivado. Do mesmo modo que a religião não cria o homem, mas o homem cria a religião, assim também não é a constituição que cria o povo, mas o povo a constituição. A democracia, em um certo sentido, está para as outras formas de Estado como o cristianismo para as outras religiões. O cristianismo é a religião, a essência da religião, o homem deificado como uma religião particular. A democracia é, assim, a essência de toda constituição política, o homem socializado como uma constituição particular; ela se relaciona com as demais constituições como o gênero com suas espécies, mas o próprio gênero aparece, aqui, como existência e, com isso, como uma espécie particular em face das existências que não contradizem a essência. A democracia relaciona-se com todas as outras formas de Estado como com seu velho testamento. O homem não existe em razão da lei, mas a lei existe em razão do homem, é a existência humana, enquanto nas outras formas de Estado o homem é a existência legal. Tal é a diferença fundamental da democracia.”

(Karl Marx, no livro “Crítica da filosofia do direito de Hegel”, pág. 50 - Boitempo Editorial, 2005)

Freire lembra que queda de juro não será por "canetada"

Abnor Gondim
DEU NO DCI – DIÁRIO COMERCIO INDÚSTRIA

Freire lembra que queda de juro não será por "canetada"

SÃO PAULO - "O sonho não acabou", costuma dizer o ex-senador e ex-deputado Roberto Freire (PE), presidente nacional do menor partido do bloco de oposição ao governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o Partido Popular Socialista (PPS), o antigo Partido Comunista Brasileiro (PCB). Para ele, uma nova forma de socialismo virá, sem o populismo latino-americano e talvez com a transição de Cuba para a democracia.

Acima do sonho, Freire está com os movimentos presos na realidade do Brasil. Em entrevista exclusiva ao DCI, ele cobrou do governo Lula explicações sobre a intenção de combater o spread e os juros bancários com a troca de comando do Banco do Brasil.

"Isso não se faz com uma canetada", criticou, justificando a decisão do PPS e dos demais partidos de oposição - PSDB e DEM - de pedirem a convocação do ministro da Fazenda, Guido Mantega. Eles querem esclarecer supostas negociatas que estariam atrás do que seria o real motivo da saída de Antonio Francisco Lima Neto do comando do Banco do Brasil.

Freire cobrou ainda investimentos com o uso do superávit primário e contenção de despesas do Executivo para enfrentar os efeitos da crise internacional.

Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista.

O senhor também acha chique o Brasil passar a emprestar dinheiro para o Fundo Monetário Internacional (FMI)?

Essa declaração de Lula parece ter sido feita por um banqueiro de olhos azuis. Também foi uma frase de mau gosto a de que a crise financeira foi provocada por "gente branca de olhos azuis", como se ele quisesse dividir o mundo entre ricos e pobres e pretos e brancos. O problema é que o Brasil deverá precisar desse dinheiro que vai emprestar ao FMI. Não que o País esteja numa situação tão difícil quanto a dos países do Leste Europeu, mas poderia estar bem melhor se tivesse aproveitado o momento em que a economia mundial estava crescendo. E, nesse período, ficou entre os países com os piores índices de crescimento.

Como o senhor avalia a reação do governo à crise?

O governo tem agido com incompetência. O governo não fez diagnóstico da crise. Pior, desarmou a sociedade ao dizer que a crise estava muito distante de nós. Só teve uma atitude certa: liberar o empréstimo compulsório dos bancos. Mas não garantiu que esse dinheiro se transformasse em mais crédito. Ao contrário, os bancos usaram os recursos disponíveis para comprar mais títulos públicos.

Mas o senhor não considera que o governo está procurando combater a crise, ao trocar o comando do Banco do Brasil para reduzir o spread bancário e os juros e aumentar a oferta de crédito?

Isso não se faz com uma canetada. Se o Banco do Brasil, sozinho, reduzir o spread e os juros bancários, vai sofrer uma avalanche de pedidos de crédito, até mesmo sem a oferta de garantia. Um banco estatal não vai conseguir. E não se pode comprometer a solvência de um banco que se confunde com a própria nacionalidade brasileira. Por isso fala-se que a troca no comando do Banco do Brasil tem a ver com a Medida Provisória 443, que permitiu a compra de instituições financeiras em dificuldades. Com isso, o governo abriu a porta dos negócios sem transparência e fiscalização. Ninguém está contestando a preocupação com o spread. Ela deveria ter vindo há mais tempo. Mas a suspeita que levantamos é que por trás dessa demissão estão a MP e negociatas. Nós, dos partidos de oposição, convocamos Mantega a explicar por que demitiu o presidente do Banco do Brasil, dando como motivo o spread, problema que não ocorre agora. O governo brasileiro é tão subalterno aos interesses financeiros que a explicação que o ministro deu não faz sentido. Por que não houve obsessão antes para enfrentar esse problema? Se fosse isso, quem teria caído seria o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles. O problema é a suspeita em relação à atuação do Banco do Brasil nessas compras. Nós queremos apurar se há negociatas por trás dessa demissão. Por exemplo, o caso da compra do Banco Votorantim.

Por quê?

Porque o governo compra e não estatiza. O controle do Banco Votorantim continua com os seus sócios. Ainda sobre a crise, é importante dizer que o governo faz todo o esforço para atender as montadoras de automóveis, sem levar em conta o impacto da redução do IPI [Imposto sobre Produtos Industrializados] nas contas dos governos estaduais e prefeituras.

Qual a receita da oposição contra a crise?

Em primeiro lugar, é o modo de encarar a crise. O governo está perdido e age pontualmente atendendo quem tem lobby mais forte. Agora atende as montadoras de veículos, depois vai para a linha branca de produção (geladeiras, freezers etc.). É preciso um projeto de governo para enfrentar a crise. A primeira medida é transformar em investimentos o superávit primário [economia para o pagamento da dívida].

Mas o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) não é uma solução de investimentos?

O PAC é uma irrelevância. No Estado de Pernambuco, apenas 10% das obras programadas foram concluídas. E isso acontece pelo País afora. O governador José Maranhão [PMDB], que é da base do governo, disse no Encontro de Governadores do Nordeste que o governo discrimina a Paraíba porque não há uma obra do PAC no estado. A mesma coisa se dá com o programa habitacional lançado pelo governo, sem ter prazo, sem ter metas, sem ter nada. E o presidente diz: "Não me cobrem data".

E o Fundo Soberano do Brasil?

O Fundo Soberano deveria ter sido feito na época da euforia, quando havia dinheiro para emprestar. Agora vai significar mais endividamento. Felizmente, agora, o DEM e o PSDB reconhecem falhas na política econômica do Governo Lula, o que antes consideravam como uma herança do governo Fernando Henrique Cardoso. Foi contra essa política de juros e spreads bancários altos que nós nos rebelamos e rompemos com o governo em 2004.

Quais outras medidas a oposição recomendaria?

Controle dos gastos públicos. Se é preciso apertar o cinto, como recomendou o presidente Lula aos prefeitos e aos governadores, então é preciso apertar o cinto do governo federal. Por que 37 ministérios? Não há um brasileiro que saiba o nome e o que faz cada um desses ministros. E há ministros que não se reúnem com o presidente Lula. Serve para empregar companheiros e colocar neles o status de ministro? Era melhor criar superintendências, departamentos, que funcionariam muito melhor. O País precisa investir em conhecimento, porque o Programa Bolsa Família não é um programa de futuro para país algum. Também o governo não pode querer continuar a abrir concursos, iludindo pessoas que passam e que não serão chamadas por causa da crise. Esse governo chega ao ponto de desmoralizar um dos institutos mais respeitados do País, o Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada], que divulgou uma pesquisa dando conta de que a máquina pública brasileira não está inchada.

No aspecto mundial, o senhor acha que o capitalismo faliu?

De que tipo estamos falando? Antes, havia dois polos, que eram a burguesia e o proletariado. A burguesia eram os donos do capital. E hoje são também a classe média, as instituições financeiras organizadas pelos trabalhadores, os fundos de pensão. Isso permanece e permanecerá. O que acabou foi o capitalismo sem controle do Estado, o livre mercado sem regulamentação.

''Medidas radicais têm efeito colateral nas campanhas''

Wilson Tosta
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Analista critica ideia de financiamento público exclusivo e sugere vetar doação de quem presta serviço ao Estado

Proibição de doações de quem presta serviço ao Estado, punição dura para políticos e empresários e fiscalização por amostragem. Esses são os remédios recomendados pelo cientista político Jairo Nicolau, do Instituto Universitário de Pesquisas do Estado do Rio de Janeiro (Iuperj), para ao menos reduzir irregularidades em doações eleitorais. O problema voltou ao debate nacional com a Operação Castelo de Areia, da Polícia Federal, que investiga supostas ilegalidades em doações da empreiteira Camargo Corrêa.

Estudioso de sistemas eleitorais e de financiamento de campanha de diferentes países, o pesquisador é contra o financiamento público exclusivo de campanha. "Quase sempre que se tenta tomar medidas muito radicais com relação a financiamento de campanha, gera-se um efeito colateral." Eis a entrevista:

Mais uma vez, estamos diante de um escândalo envolvendo doações de campanha. Como o senhor analisa essa situação?

Na verdade, o financiamento da política é um problema que afeta basicamente todas as democracias. Os partidos estão perdendo a contribuição de pessoas físicas, militantes, ativistas, que foram, até os anos 60, 70, dependendo do país, a principal fonte de financiamento da política. É resultado da crise que os partidos estão vivendo, de perda de filiados e de representatividade. No lugar dele, aparece o Estado, o governo, a criação de grandes subsídios e de programas gerais de financiamento estatal da política. Como as campanhas mundo afora começaram a ficar cada vez mais caras, o papel das corporações começou a ficar muito pesado no financiamento. No mundo inteiro há problemas de financiamento, escândalos.

Qual é a peculiaridade brasileira?

Acho que a gente não tem peculiaridade, não. O que a gente tem é um enorme desafio e não é solitário. Acho que todos os países hoje democráticos vivem o mesmo desafio: como controlar as finanças, os recursos, a influência do dinheiro na política? O Brasil não tem um sistema de financiamento de campanha terrível.

Não é tão ruim assim?

Ele tem alguns problemas. Mas tem pontos positivos. O acesso às informações no sistema do lado oficial, vamos dizer assim, é mais ou menos decente. Em boa parte dos países, o acesso a essas informações é complicado.

Que outros pontos são positivos?

A ideia de conferir um tempo de TV e rádio, um subsídio indireto para a campanha, é fundamental. Na verdade, o horário não é gratuito, porque é subsidiado pelos cidadãos, pelo não-recolhimento de impostos, então isso custa. E, bem ou mal, esse sistema gera um pouco mais de equilíbrio entre os competidores. O cenário seria muito pior se os políticos tivessem de comprar horário eleitoral.

No caso concreto da Camargo Corrêa, é legítimo uma empresa que tem interesses em obras públicas financiar candidatos?

Essa é a grande fragilidade do sistema de financiamento de campanha no Brasil. Ele é totalmente dependente de dinheiro de grandes doadores. Em geral, não são pessoas físicas, mas empresas, grandes corporações. Está todo mundo viciado, dependente. E é muito difícil sair desse sistema. Esse é o ponto. A experiência de outros países é que, quase sempre que se tenta tomar medidas muito radicais com relação a financiamento de campanha, gera-se um efeito colateral.

Por exemplo?

Na França, criaram uma lei muito restritiva para financiamento de empresas. Criaram tetos, botaram limites de gastos. Simplesmente o dinheiro passou a ser dado por fora. O que seria mais razoável (no Brasil)? Simplesmente proibir empresas que tenham convênios, participam de licitações, de obras com o Estado, de doar recursos. Deveriam ser proibidas. Mas isso significa o quê? Que isso pode empurrar muitas dessas doações para o caixa 2. Agora, para muitas empresas, significará que vão ter medo.

O financiamento público não é opção viável?

O financiamento público exclusivo eu leio como uma dessas decisões radicais. Tem algumas coisas positivas. No geral, deve reduzir a corrupção média. Também deve tornar a campanha mais equânime, com menos concorrentes. Mas tem um problema. Não é garantia de que o caixa 2 acabe. Pode levar os competidores a buscar mais dinheiro por fora. Segundo, se não tiver um sistema rigoroso de controle de gastos, o que acontece? Simplesmente vai gerar um sistema de corrupção com dinheiro público violento. Com nosso sistema eleitoral atual, o número de partidos e candidatos que a gente tem, é quase impossível fiscalizar essas contas.

Existe algum país com financiamento público exclusivo?

Não. No máximo, misto ou um subsídio público. Mais importante que o financiamento público é um sistema de fiscalização e punição. Por que, por exemplo, no caso do mensalão, todos disseram que era recurso para campanha? Porque não há punição severa para caixa 2.

Dá para pensar em novo financiamento sem reforma política?

Parece-me razoável imaginar que o sistema de financiamento público exclusivo está muito associado a uma mudança do sistema eleitoral para lista fechada. O problema é que a gente não tem um sistema de punição para quem é pego, seja no caixa 1 ou 2, as pessoas não têm medo. Pelo contrário, se elas forem pegas em escândalo justificam dizendo que era dinheiro irregular para campanha. E não tem um sistema efetivo de fiscalização. Por exemplo, no ano que vem, independentemente de mudar o sistema eleitoral, (deveriam) criar um sistema de fiscalização pesada por sorteio. Sorteiam-se alguns políticos, digamos, 100, 200, e vai-se fiscalizar o sistema de prestação de contas. E mude-se a lei, de modo a criar um sistema de punição pesada para os desobedientes. O que significa isso? O partido pode ter os votos anulados, governador cassado, perda de mandato, perda do fundo partidário. Os políticos têm de ter medo de desobedecer à lei, de pegar dinheiro no caixa 2.

Jairo Nicolau é doutor e mestre em Ciência Política pelo IUPERJGraduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal FluminenseEspecialista em assuntos relativos a eleições, sistema partidário e reforma política

Enganar todo mundo o tempo todo?

Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO


Em livro cujo título, "Minims", joga com a contraposição a "máximas", Tom Weller faz adaptação cínica de conhecido aforismo de Lincoln: "Você pode enganar todo mundo por algum tempo, ou algumas pessoas o tempo todo - e isso deve ser suficiente na maioria dos casos".

Recorri aqui um par de vezes à distinção, insinuada por Mário Henrique Simonsen num velho artigo, entre um capitalismo "verdadeiro", cujos agentes prescindem do Estado e dele se afastam, e um capitalismo "cartorial" e corrupto que se envolve com o Estado. A distinção pode ser posta em paralelo com outra, estabelecida por Max Weber, entre um capitalismo moderno, ligado pelo autor à ética protestante, e tipos tradicionais de capitalismo associados com traços como aventureirismo, avareza e busca irrestrita do ganho. As feições e as proporções da crise atual deixam patente a impropriedade de pretender vincular a motivação aventureira e gananciosa a formas arcaicas de capitalismo. E, se cabe reconhecer alguma acuidade no cinismo da "mínima" de Tom Weller e na presença difundida da motivação trapaceira nas interações humanas que ela sugere, obviamente não há razão para comprar a tentativa de Simonsen de restringir ao Estado a corrupção - sobretudo diante dos supostos realistas característicos da economia como disciplina, que remetem ao egoísmo dos agentes econômicos e ao "espírito animal".

O ânimo difundido de trapaça poderia ter, em princípio, uma resposta ao estilo de Thomas Hobbes: um Estado (com o nome reverentemente grafado, entre nós, com inicial maiúscula, sem qualquer razão legítima que a exija) erigido em Leviatã poderoso, a impor autoritariamente a boa conduta e a ordem. Não queremos, naturalmente, essa resposta. Em vez dela, queremos autonomia e liberdade, isto é, somos liberais. Há o liberalismo chamado político, que afirma direitos civis e políticos há muito associados com a ideia da democracia liberal. E há o liberalismo econômico, que afirma o valor real da capacidade de iniciativa dos cidadãos na esfera econômica como condição da autonomia autêntica.

Mas a afirmação rombuda da autonomia, ou seja, o jogo em que cada qual, no limite, faz simplesmente o que quer, traz a ameaça da trapaça, da introdução de assimetrias e hierarquias e do comprometimento, ao cabo, da autonomia mesma como valor. No que se refere ao liberalismo político, o reconhecimento disso resulta imediatamente em recomendações que se tornaram objeto de amplo consenso: em síntese, a da "juridificação" das relações sociais, com direitos a serem exercidos disciplinadamente com base nas obrigações acarretadas para cada um pelos direitos dos demais. Quanto ao liberalismo econômico, o ponto crucial é algo que se salienta na crítica socialdemocrática a ele: não é admissível, como se pretendeu no "neoliberalismo" há pouco triunfante, que se veja em qualquer intervenção estatal na atividade econômica não só um embaraço a sua eficiência (posição que a crise, na esteira da desregulação como regra, fez ruir de vez), mas, mais que isso, uma ameaça à vigência dos próprios direitos civis e políticos, ou à própria democracia - ou seja, a assimilação, sem mais, entre a democracia e o mercado em sua forma mais brutal. Bem ponderado o valor da autonomia, a dimensão "libertina" de afirmação irrestrita de si e de cada um simplesmente a fazer o que quiser é cerceada e equilibrada por outra dimensão indispensável: a da autonomia como autocontrole.

Andamos em círculo? Pois o que a ideia de autocontrole sugere é algo que presumivelmente faltará se prevalecer o cinismo de Tom Weller. E a resposta é fatalmente a de que ele não pode prevalecer de modo irrestrito. Não se fará mercado que sirva ao próprio liberalismo econômico sem adesão a normas que mitiguem o cinismo e a trapaça: a sociologia econômica há muito ressalta o elemento de confiança, que agora falta tão dramaticamente, como requisito da operação do mercado. Mas sem mitigar o cinismo, na verdade, não seria possível sequer erguer um bom Leviatã, como sugere a velha pergunta de "quem guarda os guardas". Tais ponderações se encontram subjacentes a importantes revisões recentes nos postulados convencionais da economia como disciplina, levando, entre outras coisas, a contribuições que procuram valer-se de uma perspectiva evolucionária e salientam os estímulos à cooperação e a um altruísmo ao menos condicional (supondo a retribuição solidária dos outros) que teriam sido trazidos pela evolução da espécie. Ponderações análogas levam também, por outro lado, ao questionamento de tentativas problemáticas de recorrer aos mesmos postulados econômicos convencionais para explicar a emergência e a consolidação da democracia, que alguns pretendem derivar "automaticamente" do mero jogo dos interesses - sem se dar conta de que a condição para isso é certa idealização da noção mesma de interesse que a despoja, justamente, da perfídia e do potencial de trapaça e conflito inevitavelmente contido naquele jogo.

De todo modo, a "mínima" de Tom Weller, mesmo tomada com reservas (e ela não deixa de envolver reservas explícitas: "na maioria dos casos"...), traz a advertência de que o crime (a ganância, o ânimo de trapaça, a disposição aventureira no sentido mais negativo) com frequência compensa, sim. E, do ponto de vista tanto de valores econômicos quanto diretamente de valores políticos, a questão é como lidar com a complexidade das relações entre valores e normas, de um lado, e interesses, de outro, com atenção apropriada para o laborioso esforço de construção que essa complexidade requer. E do qual resulte, quem sabe, a combinação de autonomia e interesses com solidariedade, talvez disciplinando a disposição aventureira sem coibi-la no melhor de sua ousadia.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

Governo tem só R$ 300 milhões para municípios

Cristiane Jungblut
DEU EM O GLOBO

O pacote do governo para ajudar os municípios prejudicados com a queda nos repasses federais, que deve ser anunciado hoje, prevê a liberação de apenas R$300 milhões em caráter emergencial, além de outras medidas, como a antecipação do Fundeb. O impacto deve chegar a R$1 bi.

Socorro aos municípios sai hoje

Governo acena com liberação emergencial de apenas R$300 milhões, entre outras medidas
O governo convocou o presidente da Confederação Nacional dos Municípios, Paulo Ziulkoski, partidos da base aliada e ministros para decidir hoje o pacote de ajuda a municípios que tiveram as maiores quedas nos repasses dos fundos de participação dos Municípios (FPM) e dos Estados (FPE). O presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse ontem a aliados que quer bater o martelo hoje sobre o assunto, com os ministros Paulo Bernardo (Planejamento) e Guido Mantega (Fazenda) e com o Conselho Político (formado pelos representantes dos partidos da base do governo).

Segundo governistas, o impacto do plano seria de cerca de R$1 bilhão, entre liberações diretas e medidas compensatórias. As principais ações em estudo são uma ajuda de cerca de R$300 milhões (batizada de fundo de emergência) para as cidades mais afetadas; antecipação de repasses do Fundeb (fundo da educação básica); suspensão provisória dos pagamentos de dívidas ao INSS; e adiamento do pagamento da contrapartida dos estados nas obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

O pacote pode incluir desde um piso mínimo para o FPM até uma linha de crédito para os estados destinada a obras de infraestrutura, tendo como limite os valores de repasse do FPE. A ideia, segundo um aliado, é criar fluxo de caixa. A própria ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, anunciara em Montes Claros (MG) que essa solução seria adotada.

Lula vem sendo pressionado a resolver o problema. Até o PMDB, partido com o maior número de municípios, avisou que a partir desta semana fará coro às reclamações dos prefeitos. Mas há integrantes da área econômica recomendando que o governo ganhe tempo nas discussões sobre o assunto, sob o argumento de que o valor dos repasses melhorou em abril.

Impasse sobre valor de piso para o FPM

A criação de um piso para o FPM foi admitida na semana passada por Paulo Bernardo. O piso, segundo um governista, teria como valor a média dos desembolsos nos últimos três anos. Mas os prefeitos querem que o piso seja fixado com o valor de 2008, ano da cifra recorde de R$42,3 bilhões. O governo tem hoje uma maratona de reuniões. O presidente da CNM, Paulo Ziulkoski, disse que foi chamado a Brasília pela assessoria do ministro de Relações Institucionais, José Múcio.

- A CNM tem feito sugestões, mas não havíamos sido contactados. Disseram que nessa reunião apresentariam os possíveis cenários. Mas como será a regra desse piso mínimo? - questionou Ziulkoski.

O presidente da Confederação também rebateu os argumentos da equipe econômica de que a situação melhorou para as prefeituras em abril. Depois de uma queda brusca em março, a primeira parcela do FPM deste mês (paga no último dia 10) foi a melhor do ano: R$1,9 bilhão, contra R$1,4 bilhão em março. A CNM diz que a perda nos repasses foi de 9,5%.

Para 2009, o governo projeta um FPM de R$52,9 bilhões, contra R$58,2 bilhões antes da crise. Já a CNM diz que o repasse chegará, no máximo, a R$50 bilhões. O FPM é pago em três parcelas ao mês, e corresponde a 23,5% das receitas do Imposto de Renda (IR) e do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI).

- Isso (a melhora na arrecadação) não é verdade. Ela tende a melhorar em maio e depois despenca, e vai caindo até outubro. E nossa maior preocupação é com os débitos junto ao INSS - afirmou Ziulkoski.

O líder do governo na Câmara, Henrique Fontana (PT-RS), admitiu que o governo está preocupado, mas que não há solução fácil, já que a União teve queda na arrecadação devido à crise. No ano, a União deve perder R$40 bilhões em relação à previsão:

- O governo está preocupado em encontrar uma forma, mas que haja uma justeza (sic) da alternativa, porque o impacto para os municípios (da queda do repasse do FPM) não é igual. E isso não é simples.

Não é uma licença para gastar

Carlos Alberto Sardenberg
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Por toda a parte, os governos lançam pacotes de gastos, fixam regras para diversos setores da economia, compram partes ou bancos inteiros, subsidiam e estatizam companhias. Trata-se de uma maciça intervenção do Estado na economia, que pode ser interpretada de duas maneiras: uma ação emergencial ou um novo consenso global a comandar as políticas econômicas.

Aqui no Brasil, o pessoal do governo Lula e os chamados "desenvolvimentistas" não têm a menor dúvida. Estão certos, como, aliás, o presidente francês, Nicolas Sarkozy, de que o liberalismo ou neoliberalismo estão mortos, já substituídos pelo capitalismo com o Estado controlando largos setores da economia.

Os chineses vão ainda mais longe. Acham que o lado político do capitalismo liberal, a democracia, também se mostrou ineficiente para lidar com situações de crise. Para eles, se o Estado controla a economia, deve controlar também a vida política, pois isso facilita a administração da política econômica.

Por aqui, porém, ficamos com a intervenção econômica sem ditadura - digamos logo o nome do tal "sistema chinês". Mas o governo Lula leva essa intervenção a limites bem distantes. Manda a Petrobrás anunciar enormes investimentos, manda o Banco do Brasil reduzir os juros e aumentar os empréstimos.

Quem manda aqui é o governo, dizem todos lá em Brasília, com a concordância dos empresários que batem às portas dos gabinetes em busca de subsídios, dinheiro dado, redução de impostos, garantia de mercado e outras vantagens.

Nessa toada, o governo Lula já deu todos os sinais de que não vai cumprir a meta de superávit primário deste ano - ou seja, vai pagar menos juros - com a consequente elevação da dívida pública como porcentagem do PIB, o mais importante indicador de solvência do País.

E parece que está tudo bem. O risco Brasil, que mostra como o mundo vê o País, terminou a semana passada nos 370 pontos, bem abaixo do nível alcançado no momento mais agudo da crise e mais de 200 pontos abaixo da média dos emergentes.

A Bovespa se manteve em alta, terminando a semana acima dos 45 mil pontos (ante 39 mil em março) e o dólar caiu para a casa dos R$ 2,20. Estão vendo? - tudo funciona sob o comando do presidente Lula.

Será? Talvez valesse a pena olhar as coisas mais de perto.

Onde mais se fala de regulação de mercado financeiro é nos Estados Unidos, o que faz sentido. O mercado lá era amplamente desregulado, com amplos setores, como o dos bancos de investimento, trabalhando livres de regras. Ou seja, a questão lá é partir da regulação quase zero para alguma regulação.

Não se aplica ao Brasil. O sistema financeiro aqui é super-regulado, travado mesmo. Era antes da crise e continua assim. Nosso problema é o contrário do americano. Inclusive para derrubar as taxas de juros, será preciso dar mais liberdade de atuação aos bancos.

No quesito gasto público, consideremos o pacote chinês, de US$ 500 bilhões em dois anos. Isso dá quase 15% do PIB de estímulo fiscal, um gasto espantoso, especialmente considerando que quase tudo vai para investimentos em infraestrutura.

Comparando: mesmo que o governo chinês consiga aplicar tudo, portanto aumentando a despesa pública em sete pontos porcentuais do PIB ao ano, ainda assim gastará proporcionalmente menos que o governo brasileiro. Isso no que se refere ao gasto total, porque na composição da despesa a diferença é brutal: aqui, gastos concentrados em custeio, pessoal e previdência; lá, em investimento. Aqui, poupança doméstica abaixo dos 20% do PIB. Lá, mais de 40%. Ou seja, eles têm superávits para gastar.

Do mesmo modo, o governo chinês está aumentando seu endividamento. Pode fazer isso, porque a dívida pública hoje equivale a modestos 15% do PIB. O Brasil também vai aumentar a dívida líquida do setor público, mas para 37% do PIB.

Faz diferença, não é mesmo?

Nos EUA, o governo está subsidiando bancos. Na Inglaterra, o governo está comprando bancos. Não serve para o Brasil, pela simples razão de que metade do sistema financeiro aqui já é estatal.
Alguns dirão: mas eles lá estão caminhando para onde já estamos. Errado.

O governo inglês está comprando bancos para não deixá-los quebrar, já que o setor privado está sem dinheiro. Idem para o governo americano. Ambos dizem que pretendem reprivatizar tudo assim que a crise esteja superada.

Isso faz sentido, porque não se pode dizer que o sistema financeiro brasileiro, fortemente estatal, tivesse sido mais eficiente que os outros, dominantemente privados. Os juros aqui sempre foram mais altos e o sistema empresta muito pouco. Por isso, aliás, não tem bolhas e excessos por aqui, porque não tem crédito em volume significativo.

Se lá no coração da crise eles precisam conter os excessos dos bancos, aqui é o contrário. É preciso ampliar os empréstimos e para isso são necessárias reformas que liberem o sistema.

Em resumo, passada a crise, os obstáculos ao crescimento do Brasil continuarão sendo os mesmos: carga tributária elevada, gasto público elevado e de má qualidade, excesso de burocracia e entraves à atividade das empresas.

Hoje, dada a crise, o mundo está mais tolerante com pecados de política econômica. Não haverá problemas com a deterioração das contas públicas, por exemplo. Mas o governo está enganado quando pensa que o novo ambiente internacional dá uma licença permanente para gastar e detonar as contas. É um passe provisório e condicionado.

*Carlos Alberto Sardenberg é jornalista.

Um pouco de esperança

Luiz Carlos Mendonça de Barros
DEU NO VALOR ECONÔMICO


Completamos seis meses desde que a quebra da Lehman Brothers abalou o mundo. Neste período vivenciamos a mais abrupta contração da economia global das últimas décadas. A súbita interrupção do crédito que aconteceu a partir deste evento cortou fortemente a demanda global de consumo e investimento, arrastando junto o comércio internacional e a produção industrial em todos os países do mundo. Nos últimos dois trimestres, assistimos a inéditas quedas da ordem de 25% ao ano na produção industrial global, na medida em que as empresas tentavam reduzir estoques e se ajustar às novas perspectivas de demanda.

As autoridades econômicas mundiais tentaram reagir a este verdadeiro colapso, mas com sucesso apenas limitado até o momento. Em vários países foram aprovados maciços programas de expansão fiscal, e uma nova era na gestão da política monetária iniciou-se com a adoção do chamado "quantitative easing" por vários Bancos Centrais, inclusive o Fed. Finalmente, os governos realizaram intervenções dramáticas em vários setores produtivos tentando minimizar os problemas de ajuste à nova realidade. Mais recentemente, chegou-se a um renovado esforço de coordenação global, como vimos na última reunião do G-20.

Vivemos hoje o que tenho chamado de ambiente "bipolar". De um lado, a tensão entre a perspectiva da continuidade da contração do crédito e da demanda privada a nível global e, de outro, o esforço das autoridades para compensá-la por meio de maciças intervenções nos mercados financeiros e gastos fiscais. Este é o pano de fundo a partir do qual deve ser considerado o cenário estrutural prospectivo. Mas, em momentos de mudanças como o que vivemos, torna-se também importante separar as perspectivas de longo prazo - medidas em no mínimo alguns trimestres - das oscilações de curto prazo.

Começando com o curto prazo, são claros os sinais que apontam para alguma melhora da atividade econômica. O primeiro deles é a dinâmica recente da indústria no mundo. Após dois trimestres de queda generalizada, temos algum progresso na redução de estoques excessivos e ajuste às condições de demanda mais fraca. O setor automobilístico é o caso mais evidente, com os cortes de produção nos últimos meses incompatíveis com a demanda ainda existente. Após este período de ajustes, é natural que a produção tenha alguma alta. Este padrão deve se repetir em outros setores de bens finais, em especial os ligados ao consumo das famílias. Do lado de bens de capital, a recuperação deve ser muito pequena, ou inexistente em muitos casos, pois a ampla capacidade ociosa que existe no mundo manterá o investimento das empresas em queda por mais tempo.

De fato, os indicadores antecedentes de atividade industrial têm mostrado aumento de novas ordens e redução dos estoques a nível global, compatíveis com uma diminuição dos cortes de produção nos próximos meses dos atuais 25% ao ano para algo próximo a 5%. Note-se que estou falando de redução de queda, mas em muitos casos isso implicará em altas pontuais para alguns setores. Tal dinâmica parece compatível com a estabilização, ao menos temporária, dos volumes de comércio exterior e do PIB global até meados do ano.

Outro elemento favorável para o curto prazo é a redução, ainda que momentânea, do stress financeiro. Vivemos nas últimas semanas nos EUA dias menos agitados, com o mercado em compasso de espera para ver os resultados concretos do novo programa de resgate anunciado pelo governo e do aumento do volume de compra de ativos por parte do Fed. Além disso, o resultado da reunião do G-20 deu força ao que parece ser o início da maior reconfiguração dos mecanismos de governança monetária e financeira desde 1973. A nova sensação dos EUA como parceiros no cenário internacional ajuda muito neste sentido.

Além das esperadas declarações de princípio sobre a maior participação dos países emergentes neste novo arranjo institucional, o principal resultado do encontro foi o aumento do volume de recursos para o FMI. Na prática, tais recursos reduzem de forma importante os riscos de ruptura em parte do mundo emergente e compram tempo em regiões mais problemáticas em termos de equilíbrio de balanço de pagamentos. A Europa Oriental é o caso principal, mas os benefícios podem se estender a muitos outros países emergentes - como o caso do México - reduzindo sensivelmente o risco de rolagem de dívida nos próximos meses. A combinação destes fatores indica que podemos de fato ter alguma acomodação nas perspectivas de atividade econômica nos próximos poucos meses e esta percepção tem influenciado para melhor a dinâmica recente dos mercados.

Contudo, esses elementos positivos são um alívio temporário, que compram tempo, mas que não se sustentam em um prazo mais longo caso algumas condições não sejam satisfeitas. Isso nos leva às perspectivas mais estruturais, que ainda são desanimadoras ou, no mínimo, altamente incertas. Em primeiro lugar há o desequilíbrio financeiro nas famílias americanas, que apenas começaram o longo e penoso processo de ajuste em seus níveis de poupança. Isso significa ainda no mínimo dois anos de consumo muito fraco nos Estados Unidos, ou mesmo cadente. Sem ele o mundo não terá condições de se recuperar de forma estável. Este ponto foi realçado pelo presidente Obama na reunião do G-20: o mundo não deve mais contar com os EUA para ser o consumidor de última instância, declarou ele de forma corajosa.

De modo geral, o fim do ciclo de consumo nos EUA implica que a economia mundial não vai mais operar como nas últimas duas décadas. Parcela importante do hub industrial asiático, concentrado na China e servido por importações de matérias primas e maquinário sofisticado de outras regiões do mundo, precisará ser reconfigurado em função de níveis menores de demanda por alguns anos. Mas isto vai levar tempo e depende de mudanças nas estratégias de crescimento de grande número de países, especialmente da China. São mudanças de rumo que demandam tempo e muito esforço por parte dos governos nacionais.

Por isto as incertezas devem dominar por um bom tempo as expectativas dos agentes econômicos.

Luiz Carlos Mendonça de Barros, engenheiro e economista, é diretor-estrategista da Quest Investimentos. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações. Escreve mensalmente às segundas.

A crise do supérfluo

Luiz Carlos Bresser-Pereira
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


Sociedades que combinam consumismo e desigualdade, luxo e pobreza, parecem doentes, apontam críticos

PARA entendermos que a crise que a economia mundial enfrenta é quase tão grave quanto a dos anos 1930, devemos considerar uma variável que não vi ainda discutida: ela acontece em um momento em que as famílias são muito mais ricas do que eram há 80 anos.

Naquela época os salários em todos os países em desenvolvimento estavam no nível da subsistência, e nos países ricos, estavam um pouco acima. Em consequência, uma perda generalizada de confiança, como aquela que aconteceu então, não podia ter um efeito tão violento sobre a demanda agregada como aquele que está acontecendo agora.

Vivendo ao nível de subsistência ou pouco acima, as famílias não podiam, de uma hora para outra, reduzir de forma radical seu consumo como o fazem agora. Naquela época, nem sequer existiam muitos bens e serviços de consumo, cuja compra hoje pode ser descartada sem grande problema para cada pessoa; ou, quando existiam, eram considerados bens de luxo. Hoje, não são mais bens de luxo -ficaram baratos-, mas são bens supérfluos.

Esta é provavelmente a razão fundamental pela qual a crise atingirá mais violentamente os países ricos do que os países em desenvolvimento: enquanto para estes as previsões são ainda de crescimento positivo ou de crescimento zero em 2009, na Europa, a queda esperada é de cerca de 2%, nos Estados Unidos, de 4,5%, e no Japão, de 6,5%! Certamente existem outras causas. As famílias nesses países se endividaram mais, e a desregulação dos mercados financeiros foi maior.

Por outro lado, a principal razão pela qual a queda do PIB é maior no Japão e nos Estados Unidos do que na Europa é o fato de aqueles países não contarem com o sistema de proteção ao trabalho -não contarem com um Estado social como o existente na Europa. Quanto aos países em desenvolvimento, embora também não contem com sistemas de seguro social (o Brasil é uma rigorosa e saudável exceção), que, em um momento como este, têm um papel amortecedor da crise na medida em que mantêm a renda dos trabalhadores, não é essa a principal razão pela qual a crise é menor. Nem é menor o endividamento das famílias.A grande "vantagem" dos países pobres e mesmo dos países de renda média é a de que suas famílias não podem reduzir de uma hora para outra o consumo supérfluo porque esse tipo de consumo é pequeno. No caso do Japão é preciso também considerar que em março suas exportações caíram 47% em relação ao ano anterior. Como o coeficiente de exportações em relação ao PIB é alto nesse país, essa queda tem um forte efeito negativo sobre o crescimento.

Mas sabemos que o Japão exporta principalmente bens de consumo tecnologicamente sofisticados. Ora, são esses os bens supérfluos por excelência da sociedade de consumo de massa em que vivemos.

A triste experiência do Japão parece dar razão aos críticos sociais. Sociedades que combinam consumismo e desigualdade, luxo e pobreza, como são todas as sociedades modernas, são sociedades doentes. Entretanto, nesse caso, o Japão é a boa exceção: segundo a maioria das avaliações, é o país que apresenta menor desigualdade entre todos os países, inclusive os escandinavos.

Por essa razão deveria sofrer menos com a crise. Mas não é isso o que está acontecendo. Por quê? Porque as outras variáveis -o alto coeficiente de exportações e a especialização em bens supérfluos- pesam mais? Não sabemos. Nunca ficou tão claro como nesta crise como deveriam ser modestos os economistas.

Luiz Carlos Bresser-Pereira, 74, professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (governo Sarney), da Administração e Reforma do Estado (primeiro governo FHC) e da Ciência e Tecnologia (segundo governo FHC), é autor de "Macroeconomia da Estagnação: Crítica da Ortodoxia Convencional no Brasil pós-1994".

Brasil agrário tem alta tecnologia e trabalho escravo

Roldão Arruda
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Estudo mostra onde estão os polos modernos e as áreas de maior atraso

O estudo Atlas da Questão Agrária Brasileira, resultante da tese de doutorado do geógrafo Eduardo Girardi, da Unesp, mapeia as enormes contradições do Brasil agrário, que abriga 16,4 milhões de pessoas. Zonas de altíssima produtividade agrícola convivem com terras subexploradas. E enquanto em algumas áreas predominam relações trabalhistas avançadas, em outras há empregados em condições semelhantes às da escravidão.

Concentração de terra resiste a ação de governo, diz Atlas

Estudo mostra onde está o País moderno e as áreas em que se explora até trabalho escravo

O Brasil agrário é um mundo ainda marcado por grandes fluxos migratórios, disputas territoriais e contradições. O moderno e o arcaico convivem nessa parte do País, que abriga 16,4 milhões de pessoas e onde a concentração da propriedade permanece alta, apesar das políticas de redistribuição de terras. É isso o que sinaliza o recém-lançado Atlas da Questão Agrária Brasileira - conjunto de quase 300 mapas, acompanhados de análises, resultante da tese de doutorado do geógrafo Eduardo Girardi, desenvolvida no Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária (Nera), da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Poucas vezes um conjunto tão abrangente de informações sobre a questão foi reunido num estudo. Ele mostra que em determinadas partes do Brasil predominam relações trabalhistas avançadas, em termos capitalistas, envolvendo assalariados com altas rendas, enquanto em outras é possível encontrar empregados submetidos a condições de trabalho sub-humanas, semelhantes às da escravidão. Existem zonas de alta produtividade agrícola, com notável índice tecnológico, ao lado de terras sub-exploradas, mantidas como reserva de valor.

A movimentação de dinheiro, tecnologias e pessoas é tão grande que, em dez anos, entre 1996 e 2006, a área de agropecuária na Amazônia Legal cresceu 23 milhões de hectares - vastidão maior que a do território do Paraná. No mesmo período, os assentamentos da reforma agrária receberam 3,2 milhões de pessoas; e, no sentido inverso, 1,5 milhão de brasileiros foram obrigados a deixar o campo, por causa do desaparecimento de seus empregos.

É uma realidade complexa, difícil de ajustar num retrato. Mas é justamente essa a proposta do Atlas, cuja feitura contou com recursos da Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Combinando informações conhecidas com outras inéditas e utilizando, exaustivamente, técnicas cartográficas, ele procura flagrar o que ocorre nesse mundo, que abrigava 44% da população do País 30 anos atrás e hoje contém o equivalente a apenas 8,2% do total.

O foco principal de Girardi, que defende franca e abertamente a reforma agrária, é a questão da propriedade da terra. Um dos capítulos mais detalhados do Atlas é o que trata da estrutura fundiária do País - com mapas inéditos sobre a situação dos Estados e municípios. Fica-se sabendo ali que, ao contrário do que acreditam líderes dos movimentos de sem-terra, a propriedade da terra não ficou mais concentrada nos últimos anos. Utilizando os dados disponíveis, Girardi mostra que houve até uma alteração para menos no chamado índice de Gini - critério de avaliação que varia 0 a 1, sendo que quanto mais alto maior é o grau de concentração de terras. Entre 1992 e 2003, o índice nacional baixou de 0,826 para 0,816 - uma variação de -0,010.

Não se trata, porém, de motivo para comemorar. Segundo Girardi, a marca de 0,816 é das mais altas, sinalizando que a terra continua concentrada nas mãos de poucos proprietários. Por outro lado, ela indica também o fracasso das políticas de reforma agrária desenvolvidas por sucessivos governos.

Entre 1979 e 2006, foram criados 7.666 assentamentos da reforma agrária, cobrindo uma área de 64,5 milhões de hectares. Era de se esperar que isso tivesse um impacto maior do que o registrado nos índices de concentração fundiária. Por que não teve? Em entrevista ao Estado, Girardi observou que nenhum dos governos esteve realmente interessado na reforma agrária, preocupando-se sobretudo em conter as pressões dos movimentos sociais e os conflitos no campo.

"Eles fazem isso sem alterar a estrutura fundiária", disse Girardi. Como é possível? Segundo o pesquisador, quem olhar o mapa da estrutura agrária verá que as ocupações de terras ocorrem numa área do País, no Centro-Sul e Nordeste, enquanto os assentamentos são concentrados na Região Norte: "Desde o regime militar, assentam-se pessoas nos confins da Amazônia, com o objetivo de não alterar a estrutura do Centro-Sul."

Outro objetivo dos governos, ao fincar assentamentos na Região Norte, seria engordar estatísticas: "O reconhecimento de posses, antigos projetos de colonização e unidades de conservação de uso sustentável são contados como assentamentos."

Girardi se opõe ao modelo agrário baseado no agronegócio, especialmente o da monocultura de soja, que atingiu seu ápice em Estados como Mato Grosso e Goiás. Recomenda uma intervenção maior do Estado, para impedir que terras continuem a ser usadas com fins especulativos e para incentivar o que chama de agricultura camponesa - aquela baseada no sistema familiar de produção.

Crise reduz exportação e investimento da indústria

Samantha Lima
Da Sucursal Do Rio
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Percentual da produção destinado ao exterior é o menor desde 2002

A crise econômica internacional fez a indústria reduzir as exportações e os investimentos no exterior.

Levantamento da Firjan (federação das indústrias do Rio) mostra que o percentual exportado pelo setor caiu, no final do ano passado, a 21,9% do volume produzido, menor patamar desde 2002. De 2003 a 2007, as vendas externas chegaram a 24,1% da produção total, com pico de 25,2% em 2005.

Para a indústria, a crise teve impacto superior ao câmbio de 2005 a 2007, quando o setor dizia que o dólar barato tirava competitividade.

"Mesmo com a valorização do dólar, as exportações não cresceram. Os importadores lá fora sofrem por falta de crédito", diz José Augusto de Castro, vice-presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil.

As empresas também não mantêm o nível recorde de investimentos externos dos últimos anos. No primeiro bimestre, segundo o Banco Central, o dinheiro aplicado no exterior caiu 67% sobre igual período de 2008. Especialistas dizem que a queda é temporária e que a situação deve melhorar após a fase mais aguda da crise.

Crise faz indústria perder projeção externa

Demanda e crédito em queda levam fatia da produção destinada ao mercado internacional ao menor nível desde 2002

Volume exportado caiu para 21,9% no fim de 2008, após ter atingido 25,2% em 2005; produtos de couro e móveis estão entre os mais afetados

As fábricas brasileiras de bens de maior valor agregado, que se esforçaram para conquistar o mercado externo nos últimos anos, viram a crise derrubar a exportação de seus produtos ao menor patamar desde o fim de 2002. A queda na demanda e a escassez de crédito ajudam a explicar o fenômeno.

Levantamento da Firjan (federação das indústrias do Rio) mostra que o percentual exportado da indústria de transformação nacional caiu a 21,9% do volume produzido ao fim de 2008. De 2003 a 2007, as vendas externas chegaram a 24,1% do que era produzido, com um pico de 25,2% em 2005.

A indústria de transformação compreende o setor que submete determinado produto a processo para transformá-lo em um outro bem de maior valor agregado, com o uso de máquinas ou equipamentos. Estão excluídos os setores extrativos, como a produção de petróleo e de minério de ferro, cujos preços têm cotação internacional.

De 2007 a 2008, o índice revelara tendência de queda, explicada pelo aquecimento do mercado interno. "Estava mais atraente vender internamente", diz Patrick Aguiar Carvalho, chefe de estudos econômicos da Firjan. "Desde setembro, porém, o mercado interno também se contrai.

A crise continuará a derrubar a inserção dos produtos do país no exterior."

A empresária carioca Gilda Sampaio sentiu em seus negócios o fechamento do mercado externo. Fundada há 20 anos, sua fábrica de bolsas de couro, a Dautore, havia conseguido fechar contratos de representação com revendedores em Nova York e Paris há três anos.

No início do ano passado, as vendas externas chegaram a representar metade das 2.000 bolsas produzidas mensalmente. "Hoje, não chega a 20% da produção", diz. "Não houve encomendas canceladas, mas ficaram com estoque e sinalizaram que vão comprar menos."

Em 2007, a Dautore havia ampliado a fábrica e contratado. Com a retração, a produção de bolsas caiu pela metade, e 30% dos empregados foram demitidos. "Mudamos fornecedores de couro para reduzir os custos em 20%", diz Gilda.

Como mostra a Dautore, o ramo de produtos de couro é um dos mais afetados, segundo a Firjan. O percentual exportado caiu de 70% para 59%. Na indústria de móveis, foi de 69% para 59%, e na de minerais não metálicos, de 18% para 12%.

Os dados revelam que a crise representou para o setor impacto maior do que o câmbio de 2005 a 2007, quando a indústria dizia que a desvalorização do dólar tirava a competitividade dos produtos. "Agora, mesmo com a valorização do dólar, as exportações não cresceram. Os importadores lá fora sofrem por falta de crédito", diz José Augusto de Castro, vice-presidente da AEB (Associação de Comércio Exterior do Brasil).

Para as fábricas que viram seus clientes estrangeiros suspenderem encomenda, não resta saída que não se ajustar para produzir menos. "O mercado interno também está contraído, o desemprego cresce e a renda dá sinais de que não crescerá mais como antes, portanto não vai absorver essa produção", diz o economista Rogério César de Souza, do Iedi (Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial).

PPS lamenta morte de João Hermann e Carlos Wilson

Da redação
DEU NO PORTAL DO PPS

O PPS lamenta a morte, neste final de semana, de dois grandes nomes da política brasileira. Na madrugada deste domingo, falceceu o deputado João Herrmann Neto (PDT-SP), de 64 anos, que morreu em Presidente Alves, no interior de São Paulo. Ele foi um dos fundadores do PPS e líder da legenda na Câmara dos Deputados. Na noite deste sábado, o deputado Carlos Wilson (PT-PE), 59 anos, faleceu no Recife.

Internado desde o dia 3 de março para tratamento de um câncer, Carlos Wilson foi governador de Pernambuco em 1990/91. Durante o primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o pernambucano presidiu a Infraero. O presidente do PPS, Roberto Freire, compareceu ao velório.

Já João Herrmann Neto era engenheiro agrônomo e estava em seu quinto mandato. Ele faleceu após bater a cabeça no fundo da piscina enquanto mergulhava em sua fazenda. João Herrmann Neto tinha o hábito de nadar à noite.

A Câmara dos Deputados estará de luto oficial nesta segunda-feira por causa da morte de dois deputados

Filho de Gregório Bezerra ainda espera indenização

Moacir Assunção
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO (ontem)

Jurandir é único sobrevivente da família de líder comunista e pode ir à Justiça

A família de Gregório Bezerra (1900-1982), líder comunista e ex-deputado federal pelo PCB, jamais recebeu qualquer reparação econômica da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, ao contrário de contemporâneos famosos como Luiz Carlos Prestes - com quem dividiu cela no Presídio Frei Caneca -, Miguel Arraes, Carlos Lamarca e Carlos Marighella. Em novembro de 2007, a família conseguiu que ele recebesse da comissão o título de anistiado político, mas sem direito a indenização.

O único filho vivo de Bezerra, Jurandir, também perseguido político no regime militar, vive em um conjunto habitacional, na Grande Recife, com o salário de servidor aposentado da prefeitura da capital pernambucana. "Não digo quanto ganho para não ofender sua sensibilidade", brincou. Jurandir prepara-se para recorrer à comissão pedindo indenização. Se não for atendido, entrará na Justiça.

O presidente da comissão, Paulo Abrão, disse que o pedido de reparação não foi atendido porque a Lei 10.559 veda o pagamento a sucessores, a não ser que sejam dependentes do perseguido político. "Infelizmente, nem o Gregório, que tinha todo o direito de ser ressarcido pelo que sofreu, nem sua viúva fizeram o pedido. Quanto ao recurso, a família perdeu o prazo." Mesmo assim, afirmou que vai esperar o recurso para analisá-lo.

AGRESSÃO

Personagem da chamada Intentona Comunista de 1935, quando, como sargento do Exército, sublevou-se em apoio a Prestes, Bezerra foi um dos mais conhecidos líderes comunistas brasileiros.

Em 1964, foi preso novamente ao apoiar o então governador Miguel Arraes (1916-2005), derrubado pelos militares em 1964 e anistiado na semana passada. Depois do golpe, fugiu para Pernambuco. Acabou preso e foi levado para um quartel, onde teve os pés queimados por uma solução ácida. A seguir, o coronel do Exército Darcy Ursmar Villocq Viana amarrou uma corda em seu pescoço e o agrediu em plena Rua 17 de Agosto. Só de calção, Bezerra, já sexagenário, levou golpes de barra de ferro, socos e pontapés dos soldados.

Em entrevista ao Estado em 1979, o oficial admitiu ter agredido, mas não torturado Bezerra. O líder político só foi libertado em 1969, com outros 14 presos políticos, ao ser trocado pelo embaixador dos Estados Unidos, Charles Burke Elbrick, sequestrado por guerrilheiros.