quinta-feira, 16 de abril de 2009

PENSAMENTO DO DIA

“O pecebismo brasileiro – como o emedebismo acrisolado nos duros anos da resistência ao autoritarismo – forjou um tipo de atuação influenciado por valores democráticos e particularmente por condutas unitárias construtivas bem características do PCB contemporâneo. Trata-se de um estilo vivido à margem da sua filiação internacional marxista-leninista, delimitado do seu forte vínculo com o socialismo real e a URSS. O pecebismo expressa a propensão dos comunistas a compreender o sentido das conjunturas e a equacionar os requerimentos postos às esquerdas brasileiras”.

(Raimundo Santos, na apresentação do texto “Resolução Política do Comitê Estadual da Guanabara do PCB (março de 1970), publicado na coletânea Manifestos Políticos do Brasil Contemporâneo, Lincoln de Abreu Penna (Org.), editora E-Papers, Rio de Janeiro, março de 2009).

O bom combate

Merval Pereira
DEU EM O GLOBO

A prisão de Daniel Rendon Herrera, o “Don Mario”, considerado o maior traficante colombiano, chegou para o presidente Álvaro Uribe ontem quando estava em companhia de Lula na abertura do Fórum Econômico Mundial. Ele não se conteve e passou o telefone para o presidente brasileiro, para que ouvisse pessoalmente o relato da prisão. Horas mais tarde, em outra sessão do seminário, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso bateu os ombros ao saber da comemoração de seu colega Uribe, e comentou: “Quando o Fernandinho BeiraMar foi preso na Colômbia, em 2001, o então presidente Andrés Pastrana me telefonou para dar a boa notícia.

Mudou alguma coisa no tráfico de drogas do Brasil?”.

Fernando Henrique participava de uma mesa onde se discutia a relação das drogas e a democracia, e a troca do paradigma estabelecido pelos Estados Unidos na década de 70 do século passado, de combate militarizado às drogas. Ele e os ex-presidentes Cesar Gaviria, da Colômbia, e Ernesto Zedillo, do México, presidem a Comissão Latino-Americana sobre Drogas e Democracia que apresentou recentemente um documento que defende a descriminalização do uso pessoal da maconha como maneira de reduzir a demanda. E o tratamento do usuário de drogas como uma questão de saúde pública, e não criminal.

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso foi ao México para apresentar ao presidente Felipe Calderón o relatório final, e também teve um encontro com o presidente venezuelano Álvaro Uribe, a fim de tê-los como defensores, junto aos Estados Unidos de uma política mais liberal de combate às drogas.

Os dois, embora em estágios distintos, encontram-se em meio a uma verdadeira guerra ao tráfico, e não têm espaço político para aderir formalmente a essa cruzada.

Uribe, ao contrário, está em campanha mesmo é para concorrer a um terceiro mandato, e ontem deixou isso claro em uma conversa informal com alguns jornalistas no Fórum Econômico Mundial.

Tão popular ou mais do que o presidente Lula, Uribe chegou a ter 91% de aprovação no meio do ano passado, quando foi resgatada a senadora Ingrid Betancourt.

Perguntado por que não fazia como seu colega Lula, outro campeão de popularidade, e renegava a possibilidade de mudar a Constituição para poder concorrer a um terceiro mandato presidencial, Uribe não fugiu da raia e disse que a Colômbia precisa de um governo que implante as três diretrizes a que ele se dedica: erradicar o narcotráfico, melhorar a situação social do povo e atrair investimentos estrangeiros para o país.

Deixou subentendido que apenas ele pode garantir a continuidade desse programa, e falava quase como “o escolhido”, voz baixa e mansa, parecia convencido de que tem uma missão que ainda não foi concluída.

Fernando Henrique lembra que quando conversou com ele, Uribe estava certo de que a guerra contra os narcotraficantes estava conseguindo reduzir a produção de cocaína no país, mas dias depois os números oficiais mostraram que a produção não havia tido uma redução sensível.

Com uma crescente presença de cartéis das drogas assumindo o controle de vários setores da sociedade no México, e com a violência da disputa pelo mercado de drogas colocando sua segurança pública em xeque, a questão tornou-se também uma prioridade para o governo dos Estados Unidos, cuja atuação nessa mudança de paradigma será fundamental.

A tese que está por trás da nova proposta é que a política de combate ao tráfico tem sido custosa e ineficiente, inclusive para os Estados Unidos, que a implementaram. E que o combate às drogas tem que ser feito através de uma mudança de mentalidade, um trabalho de educação, de valores mais permanentes, para que a própria sociedade mude de comportamento em relação às drogas.

O gasto anual subiu de US$ 10 bilhões, nos anos 80 do século passado, para US$ 40 bilhões atualmente, segundo disse ontem o ex-presidente Cesar Gaviria.

Em 30 anos, o número de presos condenados por crimes relacionados com as drogas subiu de menos de 50 mil para 500 mil, um em cada quatro presos nos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, o preço das drogas está estabilizado ou decrescente, e o consumo não foi reduzido.

A comissão propôs a descriminalização da maconha por ser a droga de uso majoritário no mundo, e, ao mesmo tempo, cujos malefícios à saúde podem ser comparados aos do álcool e do tabaco, drogas legalizadas.

Representante do governo do Rio, o secretário de Fazenda, Joaquim Levy, defendeu a política de enfrentamento do governo estadual contra os traficantes do Rio expondo um estudo interessante que, segundo ele, deu base para que essa política fosse validada.

Um levantamento do tráfico carioca como “negócio” mostrou que ele não está ligado diretamente ao tráfico internacional, e representa um montante de dinheiro não tão grande quanto se imagina. A questão do tráfico no Brasil não seria tão grave como no México e na Colômbia, pois aqui não atuariam cartéis organizados com ligações no exterior.

Pelos cálculos da Secretaria da Fazenda, o tráfico carioca representa um negócio entre US$ 150 milhões a US$ 200 milhões, que vive basicamente do mercado local.

Por isso a disputa pelos pontos de droga, pois o domínio territorial é fundamental para um negócio que não teria ligações externas fortes.

A tática utilizada pela polícia do Rio, de estrangular o tráfico e retomar aos poucos o controle do Estado nas favelas, estaria baseada na certeza de que o tamanho do tráfico do Rio o torna um inimigo que o estado tem condições de enfrentar e vencer.

Casa da sogra

Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


Nos últimos dois meses, tentou-se de tudo no Congresso para abafar os efeitos da abertura (ainda parcial) da caixa-preta onde se acondicionam quantidades amazônicas de abusos no uso do dinheiro público.

Firmou-se um pacto de não-agressão entre PT e PMDB, cuja briga em torno da presidência do Senado denotou as primeiras bombas; ressuscitou-se o velho truque da contratação de auditoria externa para fazer um diagnóstico da situação e dar um jeito na balbúrdia; anunciaram-se exonerações de diretores e extinções de diretorias; procurou-se dar às malfeitorias um caráter de legalidade interna; restringiu-se o acesso à informação; disseminou-se a teoria da conspiração "das elites" contra a democracia representativa.

Por último, tentou-se recorrer ao estratagema da indiferença, ao molde do "nem te ligo" conferido às acusações do senador Jarbas Vasconcelos pela direção do PMDB, partido apontado como majoritariamente adepto da corrupção e do fisiologismo, agremiação dos presidentes da Câmara, Michel Temer, e do Senado, José Sarney.

Todos os esforços foram em vão, pois diariamente continuam a ser expostas novas e cada vez mais bizarras maneiras de desacato ao decoro.

O que dizer da viagem ao exterior proporcionada à sogra do governador do Ceará, Cid Gomes, diante da contratação da sogra do assessor de imprensa do senador Renan Calheiros como fantasma de gabinete ou das passagens aéreas cedidas à (hoje ex) sogra do deputado Fábio Faria? E a contratação de empregados domésticos com verbas públicas é algo aceitável em gente com perfeitas condições financeiras de arcar com esse e outro tipo de despesa?

Do mesmo jeito que o senador Tasso Jereissati tem dinheiro para pagar aluguel de jatinhos particulares, pois é rico e, de acordo com o presidente do PSDB, Sérgio Guerra, "paga para exercer o mandato", o deputado Fábio Faria é rico.

E mesmo que fosse pobre não precisaria expor ao escândalo a então namorada, uma artista cujos recursos são produto de trabalho certo e bem sabido. O problema é que o deputado e todos os outros colegas não veem escândalo na apropriação de bens em benefício de outrem.

Chegam ao Congresso convictos de que com a delegação do voto receberam também o direito de pintar e bordar impunemente. Muitos ingressam na carreira política com o objetivo preciso de ter acesso livre a privilégios.

Quando são chamados aos costumes, estranham, não raro se "decepcionam" com a política.

Se Fábio Faria queria ser gentil com a moça e a mãe da moça, comprasse de seu bolso as passagens. Certamente o faria como todos os cidadãos comuns e empresas privadas: escolhendo os bilhetes entre as diversas tarifas mais baratas que o preço "cheio" cobrado pelas companhias ao Congresso.

Qualquer pessoa sabe a diferença entre uma tarifa "cheia", que chega a custar mais de R$ 1.000 entre São Paulo e Brasília, por exemplo, mas não passa de R$ 300 ou R$ 400 nas promoções para o mesmo trecho.

Por isso, com apenas uma delas os parlamentares podem desdobrar em dois ou mais bilhetes para distribuir à tripa forra.

Ciente da situação, o que diz o presidente da Câmara, mesmo depois de dois meses sob intenso bombardeio? Que quem decide o que fazer com as passagens é o deputado. "A cota é sua. Se achar legal, justifique. Se não é adequado, trate de devolver."

É de boquiabrir. Primeiro, porque a "cota" não é propriedade privada do deputado Fábio Farias nem de ninguém em particular. Faz parte de uma parcela do Orçamento, cujos recursos são provenientes dos bolsos de todos os brasileiros. Ou pelo menos daqueles que pagam impostos sobre seus ganhos sem o privilégio de contar com verbas indenizatórias livres da cobrança de tributos.

Em segundo lugar, espanta a negligência do presidente da Câmara com uma decisão anunciada por ele na semana anterior, quando, entre outras medidas, a Mesa Diretora disse ter restringido ao parlamentar o uso das passagens aéreas.

Ah, a regra não é retroativa? Pois então que fosse assim instituída para que a decisão não tivesse sabor de artifício.

A única tentativa que não se fez no Congresso nos últimos tempos foi a de corrigir rápida, profunda e rigorosamente as distorções denunciadas. Tampouco se procurou descobrir outras ainda não divulgadas de forma a se antecipar às denúncias e demonstrar genuíno empenho em prol do acerto.

O primeiro-secretário do Senado, Heráclito Fortes, reconhece que há morosidade, mas garante que as medidas de correção serão tomadas "não tão rápido como gostaríamos, mas de maneira segura".

O senador fica devendo uma tradução para o português claro. Sem o quê, terá dito uma frase oca a ser entendida como intenção de protelar providências.

Isso pode até interessar de imediato aos parlamentares beneficiários dos privilégios. Mas quem paga por eles consolida a impressão de que o Congresso é um território de vale-tudo onde só uma regra é cláusula pétrea: cada um por si e todos em defesa da causa própria.

A hipótese de dois candidatos

Maria Inês Nassif
DEU NO VALOR ECONÔMICO

O argumento do PSB para bancar a pré-candidatura de Ciro Gomes à Presidência da República em 2010, de que ela reforçaria, mais do que enfraqueceria, a candidata de Lula e do PT, Dilma Rousseff, é apenas uma aposta, ou um palpite, mas não é despropositado. O partido cita o que aconteceu nas eleições de 2006 em Pernambuco, quando dois candidatos oposicionistas ao governo, Eduardo Campos (PSB) e Humberto Costa (PT), disputaram contra o governista Mendonça Filho (DEM), apoiado pelo popularíssimo governador que deixava o cargo, Jarbas Vasconcelos (PMDB), e fazia dobradinha com ele como candidato ao Senado. Se tivesse apenas um oponente na disputa, Mendonça Filho ganharia no primeiro turno. A soma dos votos dos dois oposicionistas tirou o Palácio das Princesas das mãos do favorito: ele teve que disputar um segundo turno com Campos, e perdeu.

Esse, no entanto, é apenas um exemplo mais próximo de como mais de um candidato disputando no mesmo campo - oposicionista ou governista - podem desestabilizar um pleito considerado ganho. Embora movimentos fortes de mudança das forças hegemônicas na sociedade, e mesmo fatores conjunturais, sejam elementos definidores de uma vitória eleitoral, o número e o perfil dos candidatos em disputa são decisões estratégicas que também têm bastante importância.

Um exemplo disso foram as próprias eleições de 2002, quando três candidatos oposicionistas - o favorito Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Ciro Gomes (PPS) e Anthony Garotinho (PSB) - concorriam contra um único candidato governista, José Serra (PSDB). No campo governista, Serra reinava, solitário, apoiado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso - que estava no final de um segundo mandato e sofria em sua plenitude o desgaste de políticas econômicas impopulares e de uma crise econômica que veio de fora, na esteira do "default" da vizinha Argentina, mas foi agravada pela especulação financeira que chegou com o processo eleitoral e acompanhou-o durante todo o período. O candidato do PSDB também foi prejudicado pelo "racha" do então PFL, hoje DEM, que iniciou a disputa com a candidatura de Roseana Sarney (MA) e atribuiu ao tucano uma denúncia de que ela recebia dinheiro "por fora" para a campanha eleitoral. Roseana foi torpedeada e o PFL fez campanha contra Serra, e manteve por algum tempo apoio a Ciro Gomes.

O tucano, de qualquer forma, era sozinho no campo governista. Mas, em vez de somar o apoio dos eleitores de centro e de direita - forças que apoiaram FHC nos seus dois mandatos -, acabou isolado na direita ideológica. Os três candidatos de oposição faturaram o desgaste governista com a crise e o racha pefelista. Além disso, o fato de existirem três com forte rejeição de grupos de eleitores não deixou que Serra capitalizasse totalmente os votos dos grupos que, antes de apoiar alguém, rejeitavam outro candidato - os votos que vieram de rejeição a algum dos postulantes, portanto, não tiveram um único destino. A divisão da oposição pode, assim, ter garantido o segundo turno e mantido Lula como favorito um candidato que começou como o campeão de rejeição.

Não ser o exclusivo depositário, num primeiro turno, dos votos anti-Lula pode ter enterrado Serra em 2002. Tanto é assim que, ao longo da disputa eleitoral, ele chegou a ficar atrás de Ciro, quando o candidato do PPS teve o seu melhor momento; atrás de Garotinho, quando este conseguiu o segundo lugar, atrás de Lula; e atrás de ambos e de Lula - isto é, chegou a amargar um quarto lugar na disputa.

No mês de julho de 2002, três meses, portanto, antes do primeiro turno, Ciro Gomes conseguiu sua melhor performance: encostou em Lula nas pesquisas eleitorais e, no segundo turno, venceria o petista por 47% a 40%. A partir disso, Ciro começou a cair, levado por uma forte especulação de que a sua proposta de renegociação da dívida brasileira seria um "calote". Foi uma intensa campanha do mercado - e dos tucanos - contra Ciro que acabou puxando para baixo a sua candidatura. Mas, num primeiro momento, em vez de Serra ganhar os seus votos, eles acabaram impulsionando o candidato do PSB. Em agosto, quando Garotinho começou a subir, engoliu primeiro votos de Serra, que chegou a ficar dois pontos abaixo do então candidato da legenda socialista.

Se não tivesse dividido com outros dois candidatos as atenções e os bombardeios vindos das forças governistas e do mercado, seria muito mais difícil para Lula manter-se como favorito praticamente durante todo o processo eleitoral. Nada indica que, em 2010, Dilma seja poupada do mesmo intenso bombardeio. Dividir os ataques da oposição com Ciro pode não ser um mau negócio. Ciro tem mais experiência eleitoral, é agressivo e tem um discurso que, no ataque, se assemelha muito com o que a classe média atraída pelo PSDB e pelo DEM aprova: não mede palavras, o discurso ético é moral e tem um tom incisivo. Apesar de ter provocado mal-estar com a sua proposta de renegociação da dívida, em 2002, exerce uma forte atração sobre um eleitorado mais elitizado que rejeita o PT, mas vê o PSDB com ressalvas.

Um candidato com esse perfil pode, no mínimo, dividir com a candidatura petista as atenções dos partidos oposicionistas, que vão para essas eleições unidos em torno de um único candidato - o que, neste momento, pode também ser a melhor alternativa para a candidatura tucana.

Maria Inês Nassif é editora de Opinião. Escreve às quintas-feiras

O lugar da Justiça na democracia

Fernando Filgueiras
DEU NO VALOR ECONÔMICO


Não é novo, no Brasil, a questão da politização do Judiciário, e nem, necessariamente, esse papel é negativo

Tem sido uma marca do Judiciário brasileiro, nos últimos tempos, a enunciação de sentenças atreladas à necessidade clara de se fazer justiça. Não apenas na esfera da política, em que os juízes procuram corrigir as históricas delinquências do homem público brasileiro, mas nas esferas penal, empresarial ou até mesmo cível. O argumento da justiça entrou no léxico do Judiciário brasileiro de maneira muito forte, em contraste com nossa tradição positivista e legalista, que sempre julgou as questões políticas na letra fria da lei.

A princípio, não há nenhum problema em o Judiciário assumir um discurso marcado pela ideia de justiça, em especial pela ideia de justiça social, tendo em vista o fato de que o Brasil é um país marcado por desigualdades estruturais que organizam nossa sociedade. De certa maneira, isso representa um enorme avanço, uma vez que um Judiciário passivo e atrelado apenas aos ritos processuais e à letra fria da lei pode ser instrumento da legitimação das desigualdades, sendo, portanto, pouco eficiente em seus meios.

Esse avanço veio com a Constituição de 1988, que atribuiu princípios gerais que determinam os valores básicos de nosso mundo público. Princípios estes que estão enunciados de forma clara em nossos direitos fundamentais e têm o condão de servir como um teste moral para nossa sociedade, num sentido de democratização da esfera pública, tais como os princípios de liberdade, igualdade, publicidade e outros.

Dada nossa formação histórica patriarcal, o Direito, agenciado pelo Judiciário, contribuiu de maneira ímpar para a formação de nosso mundo público, no sentido de se contrapor ao privatismo que sempre foi nossa marca histórica. O mundo público brasileiro, de certa forma, ganhou plasticidade e um caráter orgânico não pela via da política representativa em si, que sempre esteve ligada ao mundo privado e aos interesses paroquiais, mas pelo Direito e seus procedimentos. Nesse sentido, o Judiciário e o mundo corporativo do Direito, por meio da OAB, sempre tiveram um papel central em nossa vida pública, sendo esse papel, portanto, político.

Dessa forma, não é novo no Brasil o debate sobre a politização do Judiciário, e nem necessariamente é negativo esse papel político. O Judiciário tem, sim, um papel político nas ordens democráticas, uma vez que ele tenha um papel na vida pública e não apenas a finalidade de adjudicar conflitos na esfera privada. Existe uma razão pública que move o Judiciário e estabelece seus fins, já que, na vida pública, cabe a ele não permitir que uma maioria ou uma minoria, na ordem democrática, utilize dos preceitos constitucionais para favorecer interesses privados ou de eventuais facções. Cabe ao Judiciário zelar pela Constituição, tendo ele, por conseguinte, um papel de protagonista na vida pública que é típico de qualquer ordem democrática.

No que tange à ideia de justiça, ela é um claro fim normativo que está expresso em nossa Constituição. É um fim normativo que pretende estabelecer uma capilaridade de nossa vida pública, determinando o horizonte para o qual o Estado e suas políticas públicas devem seguir. A justiça é o horizonte para o qual nossa democratização deve caminhar, sendo o Judiciário, junto com os demais poderes da República, o porta-voz desses valores que estão enunciados na Constituição. Por conseguinte, esses valores caminham no sentido de construção de uma sociedade democrática, tendo em vista uma concepção de cidadania aberta ao público. Em direção a uma sociedade democrática, que está no horizonte normativo da Constituição de 1988, cabe a afirmação de que a justiça, como princípio geral, deve ser a razão que organiza essa sociedade.

A justiça não é, portanto, a razão do Judiciário, mas a razão do próprio cidadão, que não aceita qualquer tipo de arbitrariedade existente em nosso mundo público. Contudo, para que essa justiça seja realizada, é fundamental a constitucionalização de procedimentos e garantias que impeçam a instrumentalização dos ideais de justiça e da própria Constituição. A justiça, dessa forma, é um fim e não um meio para a resolução de problemas do mundo público. Pela realização da justiça, muitas democracias já estiveram em situações difíceis, como, por exemplo, em diferentes situações de guerras civis e revoluções. As revoluções comunistas foram realizadas com o claro fim de realizar justiça social, mas produziram formas de totalitarismo por não se aterem aos procedimentos democráticos.

Quando o Judiciário, no Brasil, assume em seu discurso a necessidade de produzir justiça, a toma como um meio para a solução de nossos problemas históricos, como a corrupção, a violência e as desigualdades, sem se ater a procedimentos democráticos fundamentais, como a presunção de inocência, por exemplo. Quando toma a justiça como meio, o Judiciário necessita afirmar seu poder, usurpando funções dos outros poderes republicanos. Quando toma a justiça como meio, o Judiciário não produz sentenças melhores, mas corre o risco de se corromper em poder arbitrário, mesmo que queira tomar a justiça como fim normativo.

O ideal de justiça não é, dessa forma, a razão dos juízes, mas a razão do público, a qual os juízes devem representar. A justiça não é um meio para a solução de problemas, mas um fim para o qual essa solução de problemas deve caminhar. A justiça, em uma democracia, não deve estar no Judiciário, mas na sociedade, que a toma como horizonte normativo para a construção de uma sociedade democrática. O perigo do discurso por maior justiça, tão presente no Judiciário brasileiro, é sua instrumentalização, fazendo com que ela sirva a qualquer propósito moral ou político. Não precisamos de um Judiciário em que os juízes sejam tutores da moral da sociedade, mas de um Judiciário que seja responsável diante do público. É isso que permite aos juízes exercerem seu poder sem que ele se corrompa em poder arbitrário, sem que o Judiciário seja instrumento de um grupo ou facção, num claro sentido de criação de uma sociedade democrática.

Dessa maneira, é interessante a existência de um pacto republicano para a criação de uma justiça mais ágil no Brasil, em que a mudança nas leis reflita não apenas a razão de juízes ou de qualquer outro ator político relevante, mas um esforço conjunto dos três Poderes para torná-la mais acessível ao cidadão comum. É de se esperar que esse pacto dê um sentido público para o Judiciário, tomando a justiça como um fim normativo e não um instrumento para o exercício do poder.

Fernando Filgueiras é professor do Departamento de Ciência Política da UFMG e pesquisador do Centro de Referência do Interesse Público dessa mesma Universidade.

Serra e Aécio discordam de data para prévias no PSDB

Catia Seabra
DEU NA FOLHA S. PAULO


Governador paulista só aceita consulta em 2010; mineiro quer que seja feita até setembro

Com antecipação, Aécio poderia deixar sigla dentro do prazo para concorrer por outro partido; Sérgio Guerra descarta chapa puro-sangue

Apesar do esforço do PSDB para conter o confronto, os governadores de São Paulo, José Serra, e de Minas Gerais, Aécio Neves, estão em flagrante dissonância. O motivo: a data para realização de prévias no partido. Enquanto Serra se recusa a entrar na disputa antes de 2010, aliados de Aécio defendem que a consulta aconteça ainda em setembro, o que acabaria permitindo que ele eventualmente deixasse a sigla dentro do prazo para concorrer à Presidência por outro partido.

Depois de conversar com Aécio, o primeiro-secretário da Câmara, Rafael Guerra (PSDB-MG), apresentou à Executiva Nacional do PSDB uma proposta que fixa setembro como mês ideal para as prévias.

Segundo Guerra, Aécio ponderou que a escolha do mês da consulta poderia ser interpretada como uma rota de fuga do partido. Guerra, no entanto, insiste na data como um atrativo para novos filiados.

Pela lei, um político só pode concorrer a um cargo eletivo se estiver filiado ao partido até um ano antes da eleição.

"Dependendo do resultado da prévia, poderemos montar uma boa chapa para deputado", justificou Guerra.

Já o deputado Paulo Abi-Ackel (PSDB-MG) propõe que a prévia ocorra entre novembro e dezembro, consultando-se todos os filiados.

Serra, por sua vez, já avisou que não pretende entrar na disputa antes de 2010. Seu argumento é que, depois de ter deixado a Prefeitura de São Paulo para tentar o governo, o paulista não o perdoaria caso se afastasse para se dedicar às prévias.

Serra repete que o melhor a fazer é governar São Paulo. "Se não houver consenso no ano que vem a respeito de quem será o candidato, fazemos a consulta", afirmou ele.Para aliados de Serra, se inevitável, o ideal seria convocar prévias apenas daqui a um ano, quando os administradores que não são candidatos à reeleição têm de deixar o cargo para entrar na disputa. Para Aécio, "o momento adequado para essas prévias é o final do ano".

Segundo tucanos, Aécio tem dito que em agosto decidirá se será mesmo candidato à Presidência. Até lá, o partido se esforça para evitar que qualquer atrito sirva de argumento para um afastamento dele -do partido ou da campanha.

Ontem, o presidente nacional do PSDB, Sérgio Guerra (PE), duvidou da edição de uma chapa Serra e Aécio em 2010. Em entrevista à Rádio Jornal, de Recife, o senador disse que, apesar de Fernando Henrique Cardoso acreditar na possibilidade, ele acha "complicado e sem chances para acontecer". Para Guerra, no entanto, se a união acontecesse, "a vitória já estaria garantida".

Deslize: Tarso se confunde e chama José Serra de presidente

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Em evento no Rio, o ministro da Justiça, Tarso Genro, cometeu uma gafe durante sua fala ao chamar o governador José Serra, um dos nomes do PSDB para a disputa presidencial de 2010, de "presidente". Imediatamente, corrigiu-se. Tarso elogiava uma iniciativa do governo de São Paulo. "Com a mudança na estrutura da [Secretaria de] Segurança [Pública] de São Paulo, eu acho que o presidente... o governador Serra, né?", disse.

Dilma é ignorante em questões rurais, diz MST

Eduardo Scolese
Da Sucursal de Brasília
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Numa demonstração explícita da resistência dos movimentos sociais com Dilma Rousseff, o líder do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) João Pedro Stedile afirmou ontem que a ministra da Casa Civil, assim como todo o governo, é "ignorante" nas questões rurais do país.

Para Stedile, integrante da coordenação nacional do MST, o principal nome petista para a sucessão presidencial "não entende nada" de projetos de desenvolvimento para o meio rural. "É um governo ignorante nas questões rurais. Esse governo que está aí, começando pela dona Dilma", declarou. "A Dilma não entende nada de projetos de desenvolvimento rural, senão ela já teria aprovado [linhas de crédito para a agroindústria]", disse.

A declaração do líder dos sem-terra foi feita num debate sobre reforma agrária organizado pela associação de servidores do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Participaram do evento o novo reitor da UnB, José Geraldo, e representantes de quilombolas e do Cimi (Conselho Indigenista Missionário).

Stedile disse que a criação de linhas de crédito para a construção de agroindústrias poderia ter ocorrido por meio do Banco do Brasil e do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social).

"E [no governo] ficam falando em progresso, em desenvolvimento, que não sei o que, que agora vai", disse, antes de citar a ministra da Casa Civil.

Procurada e informada sobre o teor da reportagem, a Casa Civil não havia se manifestado até o fechamento da edição.

Reportagem da Folha do último sábado mostrou a resistência dos movimentos sociais em relação à ministra Dilma e revelou a iniciativa do Palácio do Planalto para aproximá-los.O movimentos enxergam na ministra uma representante do crescimento a qualquer custo, ou seja, pouco preocupada com questões sociais e ambientais -o que não implica, porém, uma inclinação para outro candidato.

Gilmar, uma mãe para Lula

Eliane Cantanhêde
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


BRASÍLIA - O Supremo Tribunal Federal, ao contrário do que dizem as más línguas, tem sido o grande aliado, um auxiliar mesmo, do governo Lula. Aliás, do próprio Lula. Como? Fazendo tudo o que Lula gostaria, mas às vezes não pode, às vezes não tem coragem de fazer.

Exemplo: foi depois de o presidente do Supremo, Gilmar Mendes, bater o pé que o governo afastou o delegado Protógenes, pela ordem, da Operação Satiagraha, de um cargo de elite da Polícia Federal e, enfim, da própria PF. Como despachou o delegado Paulo Lacerda da Abin para um cargo honorário bem longe, em Lisboa.

Lula se livrou de dois abacaxis ao mesmo tempo, pois a aliança PF-Abin na Satiagraha não poupava nem mesmo os telefones do Palácio do Planalto. Mas a fúria popular, ou pelo menos da internet, recaiu toda sobre Gilmar Mendes.

Outro exemplo: Lula aproveitou a saída dos dois para uma "faxina" na PF. Já andava incomodado com o excesso de grampos e bisbilhotices, mas foi com o grito de Gilmar que deslanchou a mudança. Sem que critiquem, nem aplaudam, Lula. Como se não fosse com ele.

Mais exemplos: o "cala a boca" de Gilmar no MST, que Lula gostaria, mas não poderia dar; a demarcação contínua da reserva Raposa/Serra do Sol, quando o STF enfrentou o tiroteio, enquanto Lula, em silêncio, se protegia atrás das barricadas; todo o debate sobre a extradição ou não de Cesare Battisti, centrado no STF, sem que Lula se comprometesse com lado nenhum; e, enfim, a aplicação das regras de restrição às greves no serviço público.

A ira foi para o tribunal. Quem respirou aliviado foi Lula. É assim, pela personalidade polemista de Gilmar e a decantada esperteza de Lula, que o "líder da oposição no Judiciário" (como o presidente do Supremo é chamado) acaba sendo uma verdadeira mãe para o Executivo. Lula finalmente atingiu o sonho de todo governante: a ausência de oposição.

MST promove ações em seis Estados e no Distrito Federal

José Maria Tomazela, Angela Lacerda, Carlos Mendes e João Naves
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


Em memória a mortos de Carajás, houve invasões, marchas e protestos

A jornada nacional de lutas que o Movimento dos Sem-Terra costuma realizar nesta época do ano, também conhecida como "abril vermelho", resultou ontem em invasões de terras, marchas e atos de protesto no Rio Grande do Sul, Pernambuco, Mato Grosso, Pará, Bahia, São Paulo e Distrito Federal. Somadas as ações iniciadas na semana passada, a jornada já atinge oito Estados.

Em Marabá Paulista, município da região do Pontal do Paranapanema, no oeste do Estado, cerca de 200 integrantes do MST montaram um acampamento na Fazenda São José. A propriedade havia sido invadida na noite de terça-feira, quando os militantes chegaram num comboio formado por ônibus, caminhões e carros.

A Polícia Militar confirmou a invasão e informou que o proprietário, José Teixeira dos Santos, entrou com pedido de reintegração de posse no Fórum de Presidente Venceslau, sede da comarca. Aos policiais, Santos disse que as terras são documentadas e produtivas. Ele não foi localizado ontem. Os líderes do MST, no entanto, alegam que os 1.200 hectares são improdutivos e devem ser desapropriados.

Em Belém, no Pará, o MST organizou uma marcha, com quase 500 trabalhadores. Eles atravessaram várias ruas da capital reivindicando reforma agrária e a punição dos responsáveis pelo massacre de 19 trabalhadores rurais ocorrido durante um confronto com a Polícia Militar, em Eldorado dos Carajás, no dia 17 de abril ano de 1996. No local das mortes, conhecido como curva do S, foram realizadas manifestações em memória dos mortos.

Ainda em Eldorado dos Carajás, os sem-terra invadiram uma nova área da Fazenda Maria Bonita, ligada à Agropecuária Santa Bárbara, empresa do grupo do banqueiro Daniel Dantas. Segundo o MST, a ação foi um protesto contra decisão da Justiça de manter presos doze integrantes do movimento, acusados de porte de ilegal de armas e formação de quadrilha. Eles foram detidos dez dias atrás, quando paravam motoristas que trafegavam pela Rodovia PA-150.

"Está havendo uma criminalização dos movimentos sociais", disse o coordenador estadual do MST, Ulisses Manaças. Ao falar sobre o massacre de Eldorado, observou disse que já se passaram 13 anos e nenhum dos responsáveis foi preso.

Em Pernambuco, o MST realizou duas invasões, totalizando três nesta semana. Uma das novas áreas ocupadas, a Fazenda Santa Cristina, de 180 hectares, pertence à Prefeitura de Vitória de Santo Antão. A propriedade, de acordo com o secretário municipal de Agricultura, Roberto Bezerra, estava sendo reservada para indústrias que tenham interesse em se instalar no município - a exemplo da Sadia, que inaugurou uma fábrica no mês passado, com a presença do presidente Lula.

A outra área ocupada foi a Fazenda Pernambuco, no município de Inajá, no sertão, a 295 quilômetros do Recife.

Em Mato Grosso do Sul, cerca de 300 sem-terra ligados ao MST fizeram um ato de protesto diante do prédio do Incra na capital do Estado. Depois de cobrirem a fachada do edifício com faixas e cartazes, passaram o dia gritando em defesa da reforma agrária.

Em Dourados, ao sul do Estado, a 220 quilômetros de Campo Grande, realizaram protestos semelhantes dentro do terreno que abriga a sede do Incra. Os dois locais estão sob força de um interdito proibitório expedido pela Justiça Federal. O documento garante despejo imediato no caso de invasão, sem pedido de reintegração de posse - o que levou os sem-terra a ficarem do lado de fora dos imóveis.

Na Bahia, segundo o MST, 400 famílias invadiram a Fazenda Culturosa, no sul do Estado, para protestar contra o plantio de seringais. Em Planaltina, no Distrito Federal, a invasão ocorrida na Fazenda Engenho teria sido para protestar contra o desrespeito a leis ambientais.

Na semana passada, o MST já havia promovido ações em Minas Gerais e Roraima.

Estrada para Teerã

Demétrio Magnoli
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

O Irã cultua duas heranças, que moldaram expressões distintas de nacionalismo. O Império Persa, de Ciro e Dario, o mais poderoso de seu tempo, funcionou como mito de origem para o regime modernizante, autoritário e pró-ocidental do xá Reza Pahlevi. A Pérsia islâmica medieval, xiita e sufita, berço de sábios corânicos, de notáveis gramáticos, linguistas e juristas, é a fonte de legitimação do Estado teocrático, tradicionalista e antiocidental implantado pela Revolução Iraniana de 1979. O ato inaugural da política externa de Barack Obama foi o discurso de abertura para o Irã, que encerra três décadas de hostilidade declarada entre Washington e Teerã.

De Jimmy Carter a Bill Clinton, os EUA persistiram na estratégia de dissuasão dupla indireta, utilizando a rivalidade entre Irã e Iraque para sustentar um cenário de equilíbrio de poder no Golfo Pérsico. A Guerra Irã-Iraque (1980-1988), deflagrada por um Saddam Hussein apoiado tanto por Washington quanto por Moscou, conteve o impulso inicial da revolução xiita, à custa da inflação das ambições iraquianas. Na Guerra do Golfo (1991), George H. Bush absteve-se de derrubar Saddam Hussein, para não remover o contraponto regional ao Irã. George W. Bush, o filho, encantado pela visão cruzadista dos neoconservadores, eliminou o ditador iraquiano em 2003, destruindo os frágeis pilares da ordem no Oriente Médio.

Os neoconservadores imaginaram a ocupação do Iraque como o prelúdio da reforma geopolítica no Oriente Médio. O Iraque se converteria no principal parceiro dos EUA no Golfo Pérsico, enquanto os regimes iraniano e sírio, enquadrados no "eixo do mal", seriam arrastados pela avalanche da mudança. O discurso de Obama é o reconhecimento da falência da Doutrina Bush. Hoje, Washington precisa de Teerã para evitar o desastre no Afeganistão e impedir a desestabilização do Iraque. A política realista toma o lugar do voluntarismo arrogante, neoimperial, que cobria sua nudez com os trapos de uma bandeira de liberdade.

"Af-Paqui" é o código pelo qual os estrategistas americanos começam a se referir a um teatro único de guerra abrangendo Afeganistão e Paquistão, um Estado em crise estrutural, cujo governo não exerce controle sobre os territórios tribais da fronteira ocidental que servem como santuários para os jihadistas do Taleban e da Al-Qaeda. As linhas logísticas que cruzam o Paquistão, por onde passam três quartos dos suprimentos não letais destinados às forças ocidentais no Afeganistão, encontram-se virtualmente estranguladas por ataques jihadistas. No fim de janeiro, Jaap de Hoop Scheffer, o secretário-geral da Otan, solicitou dos EUA uma parceria com o Irã, um antigo rival do regime taleban, para a cooperação na guerra afegã. Interpelado sobre o uso do território iraniano na diversificação de rotas de suprimentos, o supremo comandante da Otan, general John Craddock, admitiu que a aliança militar "está em busca de rotas flexíveis, alternativas". Obama precisa do Irã, na hora em que começa a dobrar, para 60 mil, o número de tropas americanas no Afeganistão.

Os arautos remanescentes da Doutrina Bush, depois de errarem em todas as previsões que fizeram sobre a ocupação do Iraque, difundem entre os desinformados a tese do sucesso do surge, o reforço de tropas promovido por Bush em 2007. Os generais americanos sabem, contudo, que a precária estabilidade iraquiana derivou da conjunção de uma nova estratégia política com a influência moderadora do Irã. Os EUA renunciaram à meta de erguer um Estado iraquiano fundado no monopólio da violência legítima pelo governo central e armaram as lideranças tribais sunitas em ruptura com a Al-Qaeda. Paralelamente, em nome de seus próprios interesses, que não incluem a implosão territorial do Iraque, o Irã jogou seu peso para conseguir uma trégua nas ações das correntes xiitas extremistas iraquianas. Agora, a cooperação de Washington com Teerã emerge como a melhor chance de evitar que a retirada das forças americanas coincida com um mergulho do Iraque rumo à catástrofe.

O caráter incendiário e repulsivo das proclamações do presidente Mahmoud Ahmadinejad não reflete a natureza do regime iraniano, que é extremamente realista quando está em jogo a sua própria segurança. As mazelas econômicas do Irã, até há pouco escondidas pela exuberância dos preços do petróleo, já se traduzem em crescente descontentamento popular. A República islâmica, para se afirmar como potência regional, precisa reformular suas relações com os EUA e a União Europeia. O alto clero xiita, que controla as rédeas do poder, não está em posição de rejeitar por inteiro o gesto de aproximação de Obama.

Mas o Irã não baixará suas bandeiras a troco de nada. Ele pode negociar a evolução de seu programa nuclear sem desistir da obtenção de tecnologias com intrínseca dupla finalidade, civil e militar. Além disso, não dinamitará a rede de influência que criou no Oriente Médio, assentada no tripé formado pela Síria, pelo Hezbollah libanês e pelo Hamas palestino. A reconstrução de um processo de paz entre Israel, os palestinos e a Síria é o mínimo que Teerã espera de Washington. Obama fracassará se não confrontar o novo governo israelense, que renega até mesmo o compromisso de princípio com a solução de dois Estados na Palestina.

O Israel negacionista de Benjamin Netanyahu e Avigdor Lieberman afigura-se como o elemento disfuncional na grande estratégia imaginada por Obama para o Oriente Médio. Há muito, oficiais da comunidade de defesa israelense indicam que, quando o programa nuclear iraniano alcançar o ponto de não retorno, nada evitará um ataque unilateral ao Irã. Antes, isso podia ser interpretado como mera chantagem diplomática. Agora, adquire as feições de uma assustadora hipótese realista. Claro: uma chuva de mísseis israelenses contra o Irã calcinaria no nascedouro a Doutrina Obama.

Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP.

Covardia contra a população na linha do trem

Agentes agridem a socos e chicotadas passageiros dentro de vagões apinhados em Madureira

Rio - A greve dos ferroviários queria alertar para a falta de segurança nos trilhos, mas mostrou muito mais: o passageiro corre perigo também com socos, pontapés e chicotadas desferidos por agentes de controle, como são denominados os guardas que deveriam orientar a entrada nos vagões. Ontem, por volta das 7h30, câmeras de TV flagraram funcionários agredindo trabalhadores para forçá-los a entrar em vagões apinhados em Madureira. Um PM ajudou a empurrar os passageiros — sem agredi-los —, mas não impediu a ação dos guardas. As imagens chocaram a cidade. Em Assembléia que terminou no final da noite desta quarta-feira, em Deodoro, os ferroviários decidiram continuar em greve.

As cenas chocantes geraram uma série de denúncias. O Ministério Público, a Comissão de Transportes da Assembleia Legislativa e a Agetransp (Agência Reguladora de Transportes) receberam queixas de que agressões são rotineiras. A Agetransp abriu processo que pode terminar em multa ou recomendação de cancelamento da concessão da SuperVia.

Os seguranças usaram os crachás como chicotes nos passageiros para manter as portas das composições fechadas. Foto: reprodução

O governador Sérgio Cabral determinou a punição dos culpados e o presidente do TJ, Luiz Zveiter, recomendou que as vítimas processem os responsáveis. A SuperVia já demitiu três agentes — terceirizados — e ficou de decidir sobre outro, que presenciou a violência. A Delegacia de Serviços Delegados abriu inquérito e deve ouvir os agressores amanhã.

Apesar de a SuperVia ter emitido nota repudiando as agressões, repercutiram mal as declarações do diretor de Marketing José Carlos Leitão. “Havia um princípio de tumulto na estação. Convenhamos que quem segura as portas é marginal. Num momento desses não dá para chegar para a pessoa e pedir ‘por favor, o senhor gostaria de sair da porta?’”, disse ele em entrevista à Globo News. “Eles forçam a abertura da porta, que acaba quebrada, causando risco de acidentes para eles mesmos e para os passageiros”, acrescentou.

Mais tarde, porém, Leitão criticou os agressores: “Bater em passageiro não é um comportamento da SuperVia”. O presidente da empresa, Amin Murad, admitiu falhas no treinamento. “Essas pessoas não estavam preparadas. Nós vamos refazer a preparação. Essas imagens serão repetidas sempre como exemplo de como não proceder”, afirmou.

Por conta dos vagões lotados devido à greve dos ferroviários nos últimos três dias, passageiros viajaram pendurados nas janelas e portas, que mal eram fechadas. Assim que o trem parou, os funcionários da MS Agenciamento de Serviços atacaram os passageiros.

QUEM IA DESEMBARCAR FICOU SEM SAÍDA

Com socos e chutes, os agentes até empurraram de volta à composição passageiros que queriam desembarcar. Dois agentes ainda usaram os cordões que prendem seus apitos para chicotear as pessoas, enquanto o trem deixava o local. Feridos, dois passageiros registraram queixa de lesão corporal. A Polícia Militar tenta identificar o PM que estava no local e determinou atenção especial nos batalhões com estações em sua área de atuação.

“Eles agrediram pessoas que tentavam descer, que precisavam sair dali para trabalhar. Davam socos, chutes e tapas na cara até de mulheres”, contou o auxiliar de serviços gerais Carlos dos Santos Fernandes.

Os três agentes demitidos possuíam menos de um ano de casa. A demissão de Luis Carlos Belizário, 25, com um ano no serviço, ainda será decidida. Ele presenciou os ataques. Ontem, Belizário foi à polícia depor porque deteve Anderson Santos, 22, que viajava sobre o trem. O advogado da empresa, Luiz Eduardo Guimarães, disse que os guardas alegaram que haviam reagido a agressões.

A superlotação provocou uma crise de hipertensão na doméstica Maria Filomena Pereira Gaioso, 56. Ela foi levada para o Hospital Souza Aguiar. Ontem à noite, rodoviários de Nova Iguaçu e seis municípios da Baixada decidiram não entrar em greve. A categoria volta a negociar semana que vem.

AS REAÇÕES À BARBÁRIE

TRIBUNAL DE JUSTIÇA

O presidente do Tribunal de Justiça do Rio,Luiz Zveiter, classificou a ação dos agentes da SuperVia como “desequilibrada”. Para ele, “os funcionários são desajustados”. Zveiter orientou as vítimas a responsabilizar a empresa e os agressores na Justiça.

MINISTÉRIO PÚBLICO

O procurador-geral de Justiça, Cláudio Lopes, promete providências. “As provas de agressão gratuita contra pessoas indefesas são mais que convincentes”, diz.

DIREITOS HUMANOS

O presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, Marcelo Freixo (PSol), pediu cópias de gravações dos últimos 30 dias nas estações. “Com este material poderemos saber se este tipo de ato foi uma ação isolada ou se isso já vem acontecendo”, observa.

SECRETÁRIO DE TRANSPORTES

O secretário estadual de Transportes, Julio Lopes, reconheceu que atos de vandalismo, como subir nos trens, devem ser reprimidos. “Só que com a devida ação enérgica, mas, de forma alguma, violenta e desumana”, diz.

Prefeituras fechadas em dia de protesto em Minas

Isabella Souto e Simone Lima
DEU NO ESTADO DE MINAS


Pelo menos 738 cidades paralisaram atividades ontem no estado em manifestação contra situação financeira, mas serviços essenciais foram mantidos. Municípios maiores não aderem

Departamentos fechados, faixas de protesto, bandeiras a meio mastro, panfletos distribuídos à população. Esse foi o cenário encontrado por muitos mineiros que passaram ontem por prefeituras de todas as regiões do estado. Entre as 853 cidades de Minas Gerais, 738 engrossaram a mobilização articulada pela Associação Mineira de Municípios (AMM) para reivindicar mais verba nos caixas municipais, uma revisão do pacto federativo e a aprovação da reforma tributária pelo Congresso Nacional. Optaram por não participar do movimento algumas das maiores cidades mineiras.

Em várias cidades foram mantidos apenas os serviços essenciais à população, como os postos de saúde, escolas e limpeza urbana. Entre os manifestantes, 590 paralisaram os setores administrativos – com exceção, por exemplo, do departamento de cobrança do IPTU, mantido aberto em Itaúna. “Nossa arrecadação diminuiu muito e não podemos nos dar ao luxo de fechar as portas por completo”, justificou a secretária de Finanças da cidade, Shirlei Regina Pereira. Em Santa Luzia, das 14 secretarias municipais, apenas três funcionaram: Saúde, Educação e Fazenda. Setores como habitação e meio ambiente foram completamente paralisados. O prefeito, Doutor Gilberto (PMDB), viajou.

Em São Gonçalo do Pará, um pano preto foi colocado na porta das secretarias e faixas de protesto foram espalhadas pelas ruas. “É extremamente importante mostrar nossa insatisfação. Só nesses três primeiros meses, deixamos de receber cerca de R$ 110 mil. Isso para a cidade é muito significativo”, afirmou o secretário de Obras Afonso Ligório. Outras 148 prefeituras mantiveram o serviço administrativo, mas aderiram ao movimento de outras formas, como a distribuição de folhetos com denúncia sobre a penúria financeira das prefeituras, faixas afixadas nas ruas e bandeiras a meio mastro.

GRANDES

Os três principais municípios da Região Metropolitana optaram por não participar da mobilização. O Prefeito de Belo Horizonte, Márcio Lacerda (PSB), havia dito segunda-feira que as cidades que têm arrecadação própria devem se adequar à crise econômica mundial. Entre as medidas adotadas pela capital está o corte no pagamento de horas extras a partir de 1º de maio. Em Betim, a participação do município no movimento nem chegou a ser discutida. A mesma opção fez a Prefeitura de Contagem. Ontem, a prefeita Marília Campos (PT) nem estava na cidade: foi a Brasília para uma reunião da Frente Nacional de Prefeitos.

A prefeitura de Montes Claros foi outra que não aderiu ao movimento. O prefeito Luiz Tadeu leite (PMDB) informou por meio da assessoria de imprensa que é solidário ao movimento e que, por causa da crise, cortou em 20% as despesas na administração. Quanto ao atendimento ao público e aos serviços prestados, não houve alterações. Em nota, informou que a queda nos repasses do FPM não justifica a manifestação, visto que o governo garantiu que todos os municípios terão, no fim deste ano, pelo menos o mesmo valor repassado em 2008. Cerca de R$ 1 bilhão será distribuído para compensar as perdas. A prefeitura de Governador Valadares funcionou normalmente, assim como as de Januária, Coronel Fabriciano, Teófilo Otoni, Juiz de Fora e Barbacena.

O presidente da AMM, Celso Cota, comemorou a adesão da maioria das cidades mineiras no movimento – e criticou a ausência das principais prefeituras. “Ainda há uma cultura no país de os grandes municípios acharem que são independentes. Mas eles são, na verdade, os mais dependentes, pois é neles que estão os grandes problemas sociais”, argumentou.

A crise, contraditoriamente, ameaça e potencializa o lulismo

Jarbas de Holanda
jornalista


A persistência da crise econômica, ao mesmo que ameaça os planos e os objetivos político-eleitorais do Palácio do Planalto – em face do cenário previsto de recuo do PIB deste ano, de queda da receita federal e do estreitamento do mercado de trabalho, bem como da postura dos aliados, sobretudo o PMDB, de adiar definições sobre o embate maior de 2010 – essa persistência, concomitantemente, fortalece o presidente e potencializa o populismo lulista ao lhes fornecer bom pretexto para uma escalada de gastos em custeio e em investimento público sem o devido respeito aos limites orçamentários, e para ações arbitrárias como a intervenção praticada dias atrás no Banco do Brasil. Bom pretexto porque é legitimado, ao menos em parte, pelo extraordinário contexto macroeconômico internacional que temos hoje. O qual justifica, de fato, o exercício pelo Estado de papel excepcional nas respostas aos efeitos da crise – papel assumido como transitório, passageiro, nos países bem administrados, mas que é proposto como permanente, central na economia, pelas diversas variantes do populismo. Em maior grau pelas radicais, como o “bolivarianismo” de Hugo Chávez; em grau menor, pelo lulismo brasileiro.

Duas reportagens, do Globo de ontem e do Estadão de sábado último, resumem bem a estratégia anticrise do Palácio do Planalto. A primeira tem a chamada de capa “Lula abre o cofre para socorrer municípios”, e o título interno “Socorro de R$ 1 bi, de olho em 2010”. A segunda, do Estadão, é intitulada “Ordem é acelerar gastos nas estatais”. E no Globo de hoje, com o título “Gasto com pessoal cresce 27%”: “Num ano marcado pela crise global e pela queda na arrecadação, a execução do Orçamento no primeiro trimestre mostra que os gastos da União, com pessoal e custeio – as “despesas correntes” – cresceram 23,4% em relação ao mesmo período de 2008. O índice representa o dobro dos investimentos, que aumentaram 11,7%”.

Mas tal avaliação sobre os últimos projetos anticrise do governo Lula, predominante na imprensa, assim como as criticas dirigidas à vinculação do novo plano de habitação ao calendário eleitoral e ao andamento precário das obras do PAC, nada disso muda a realidade de que eles estão representando um forte instrumento político do presidente junto à população de baixa renda e a outros segmentos da sociedade. Atendendo também a necessidades importantes do empresariado. Dois deles – o PAC e o plano habitacional – correspondem a demandas econômicas (de infra-estrutura) e sociais de indiscutível prioridade. Por outro lado, a crise favorece Lula no plano internacional, o que se evidenciou no recente encontro do G-20, quando ele soube, competente e pertinentemente, reforçar a imagem de contraponto moderado e pragmático ao radicalismo chavista, afirmando-se como interlocutor qualificado dos governos dos EUA e da Comunidade Européia. O que foi igualmente útil para que os investidores externos comecem a retornar ao Brasil.

Esses elementos da conjuntura favoráveis ao presidente Lula e ao seu governo poderão manter-se ou sofrer substancial alteração na dependência da profundidade e extensão da crise – com uma progressiva recuperação da economia e do nível de emprego nos próximos meses, ou com o prolongamento dela ao longo de todo o ano e os seus efeitos desdobrando-se em 2010. Independentemente das contrapostas implicações políticas e eleitorais de um e de outro desses cenários, o Brasil pós-crise poderá ter que pagar um preço alto pela potencialização do populismo lulista que está sendo promovida por meio de temerária escalada de gatos, sobretudo com despesas de custeio – o preço da perda do equilíbrio econômico-financeiro (conquistado nos governos FHC e mantido com rigor no atual enquanto Antônio Palocci ocupou o ministério da Fazenda), com sério risco de uma recidiva da inflação e de novo avanço da sangria fiscal contra as atividades produtivas e o conjunto da sociedade.

Gastar é para quem pode

Carlos Alberto Sardenberg
DEU EM O GLOBO

A senha foi dada pelo governo de Barack Obama: diante da dupla e pavorosa ameaça de um colapso do sistema financeiro seguido de uma longa recessão, e talvez deflação, o déficit das contas públicas não é problema. Como só o governo tem dinheiro para agir, porque só o governo emite os dólares, não há outra saída senão uma combinação de pesados aportes do Banco Central para resgatar os bancos com a ampliação do gasto público em setores que revigorem a atividade econômica.

Assim, quando Obama apresentou seu orçamento com um déficit que pode chegar a 10% do Produto Interno Bruto (PIB), quase não houve contestações.

Além disso, o governo americano tem estimulado outros países a lançarem pesados pacotes de investimentos públicos de modo a tornar global o esforço de combater a recessão.

Aqui não tem obtido tanto sucesso.

Países europeus que, ao contrário dos EUA, já passaram por catástrofes como colapso financeiro, hiperinflação, destruição da moeda, calotes da dívida pública, resistem à idéia de relaxar o controle das contas governamentais.

Já a China não vacilou. Anunciou um enorme programa de gastos que, em dois anos, vai ultrapassar os 10% do PIB, se tudo foi concretizado. Proporcionalmente, é o maior pacote do mundo.

Olhando o cenário, o presidente Lula resolveu ouvir a sua turma dita “desenvolvimentista”, na qual se inclui, desde sempre, o atual ministro da Fazenda, Guido Mantega. Esse pessoal entende que a crise sepultou o liberalismo, o neoliberalismo, o capitalismo à americana, e deu razão, ainda que tardia, às teses de que o governo é que deve mandar na economia, quer investindo e gastando diretamente, quer dirigindo e orientando os negócios das empresas privadas.

Vai daí que o governo Lula aumenta os gastos, manda dinheiro para Estados, prefeituras e para uma série de empresas e setores, subsidia companhias e empresas com redução de impostos e crédito oficial mais barato, manda os bancos públicos emprestarem a juros cada vez menores, mesmo à custa de sua rentabilidade. E reduz o superávit primário, os recursos orçamentários para pagar juros e reduzir o endividamento público.

Agora, as coisas são assim no mundo todo, diz Lula que, afinal, nunca se sentiu à vontade em manter a política econômica herdada de FHC. Como funcionava, foi levando, mas agora está encontrando a oportunidade de fazer a coisa de seu jeito.

Quem tem razão nessa história? Obama tem. Lá na sua terra, a pesada intervenção do governo, neste momento, certamente alivia e abrevia a crise. E o déficit? Ele tem moral para fazer. Reparem: os EUA nunca trocaram de moeda, nunca deram calote, nunca atrasaram o pagamento de um centavo nos juros dos títulos públicos, sempre garantiram o dólar portado por qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo, o governo nunca entrou em colapso.

Por isso, ainda nesta crise, que é de origem americana, os investidores do mundo todo correram para o dólar e para os títulos do Tesouro americano.

Obama tem credibilidade para dizer: vamos fazer um déficit agora, na emergência, mas o equilíbrio das contas públicas será recuperado antes do final deste governo. Ou seja, a virtude fiscal está suspensa, não eliminada.

Os países europeus já não tem esse conforto. Hoje, estão sólidos, mas o passado os condena. Portanto, os governos do Velho Continente também têm razão em mostrar prudência com os pacotes.

E a China? Ora, pessoal, é o caso mais fácil. A China poupa mais de 40% do PIB, o país tem superávits enormes nas contas externas, o governo é superavitário nas contas internas. Resumo: o governo gasta muito pouco, o equivalente a 20% do PIB, para uma arrecadação de impostos de 21%. E sua dívida hoje é de 16% do PIB.

Isso quer dizer que Lula não tem razão quando acha que ganhou uma licença para gastar. A dívida pública aqui é de 37% do PIB. O governo (em todos os níveis) arrecada e gasta pouco em torno de 40% do PIB. E gasta mal. No período janeiro/fevereiro deste ano, para uma despesa de R$ 83,4 bilhões em custeio, pessoal e previdência, sabem quanto o governo Lula investiu em obras? R$ 2,7 bilhões.

Se continuar nessa linha, Lula não estará fazendo a nova política econômica.

Estará simplesmente abrindo novos buracos nas contas públicas e criando esqueletos nos bancos públicos

Reflexos da crise

Panorama Econômico :: Míriam Leitão
DEU EM O GLOBO

O ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga disse que a Petrobras já deveria ter saído do cálculo do superávit primário, e que o preocupante é o governo aumentar o gasto de custeio e de pessoal sistematicamente acima do crescimento do PIB. No World Economic Forum, o presidente Lula deu sinais claros de que a moda agora é mesmo aumentar o tamanho do Estado.

Chamado do “estadista global” pelo presidente do WE F, o alemão Klaus Schwab, e de “conselheiro” pelo presidente da Colômbia, Álvaro Uribe, o presidente Lula se soltou ontem no plenário do encontro, feito no Rio de Janeiro, para discutir a América Latina.

Disse que faz sempre dois discursos: um para prestigiar os assessores que escrevem o que ele vai falar e outro sobre o que ele realmente quer dizer. Nos dois, defendeu o aumento da presença do Estado na economia.

Para ele, não se pode ter preconceito contra a estatização. “Não podemos ficar presos ao paradigma que ruiu nos últimos meses.” Mais adiante, fez uma interpretação muita pessoal da História recente do mundo: “A ideia de que o Estado não vale nada e só atrapalha foi moda durante todo o século XX.” Na verdade, a ideia liberal ganhou força mais no final do século, que teve várias décadas de ampliação do estatismo aqui e em diversos países do mundo.

Lula criticou também a política econômica dos anos 90, quando “tudo era o ajuste fiscal”.

O presidente Álvaro Uribe foi mais preciso ao definir o papel clássico do governo na recuperação econômica: o país, de US$ 200 bilhões de PIB, vai investir US$ 25 bilhões em projetos de infraestrutura como medida anticíclica; a rede de proteção social já estendeu os planos de saúde para 90% da população; a luta contra o terrorismo e o narcotráfico já conseguiu feitos impressionantes, como o de reduzir de três mil para menos de 200 o número de sequestros por ano ou de prender, ontem mesmo, um dos grandes chefes do tráfico de drogas. “Isso tem um valor intangível, o Estado colombiano restabeleceu o monopólio da força e da Justiça preservando a democracia e sem apelar para o estado de sítio.” A América Latina, atingida pela crise, precisará da força do Estado para sair do atoleiro, mas qual é a melhor forma de fazer isso? Na Venezuela, disse Mireya Cisneros, de um dos grandes grupos de comunicação do país, ela estava desanimada.

Disse que o governo Hugo Chávez está investindo contra a imprensa de forma cada vez mais forte. Ela acha que daqui para a frente vai ficar pior a cada dia.

Em geral, as análises nos encontros, debates e conversas de corredores eram de que a crise atingiu a América Latina de forma mais fraca do que outras regiões e que, portanto, podese sair dela de forma mais rápida. Lula repetiu que o Brasil foi o último país a entrar em crise e será o primeiro a sair. Nos painéis, acompanhados por Leonardo Zanelli, aqui da coluna, e por Débora Thomé, do blog Notícias das Américas, o clima era o mesmo. Todo mundo preocupado com a crise, mas ninguém desesperado, talvez porque a região já esteja escaldada de tanta crise. O ex-ministro Luiz Fernando Furlan me disse que as vendas da Sadia estão aumentando um pouco mais a cada mês.

Uma saudável preocupação de todos — não se sabe até que ponto apenas teórica — foi com o risco de protecionismo. O presidente Lula o definiu como “vício”.

A ministra das Relações Exteriores de El Salvador, Marisol Argueta de Barillas, foi pela mesma linha, disse que o protecionismo “é um alívio de curto prazo”, que não resolve o problema a médio e longo prazos. O ministro da Indústria e Comércio da Colômbia, Luis Guillermo Plata, disse que as maiores barreiras no comércio da região são a burocracia, as licenças de importação e as barreiras sanitárias. O México, apesar de estar sofrendo mais com a crise que terá, segundo o embaixador Andrés Benevides, com uma recessão de pelo menos 2% este ano, reduziu tarifas de importação em dezembro do ano passado, no pior da crise.

A América Latina está claramente aliviada — e se sente isso no tom das apresentações e nas conversas de corredores — por não ser, desta vez, o epicentro da crise. Mas há muitos riscos pela frente que podem, inclusive, ser criados pela má qualidade das respostas à recessão. A interpretação de que os governos podem aumentar os gastos impunemente, porque assim estão fazendo os países ricos, não leva em conta uma grande diferença: aqui temos o difícil histórico de hiperinflação, de quebras e moratórias que têm alguns países da região. Armínio Fraga disse que não está particularmente preocupado com a queda do superávit primário neste momento em que o país está indo para um PIB negativo de 1% a 1,5%. O que ele teme é a herança do gasto de custeio subindo sempre acima do PIB e a ideia de que o Brasil pode ignorar algumas de suas fragilidades, como a de ter uma dívida bruta de 55% do PIB. Ele acha que a herança dessas medidas pode prejudicar o Brasil para além da crise.

— Nós precisamos derrubar os juros agora, para que eles permaneçam baixos estruturalmente. O México tem juros reais de 3,5%.

Precisamos chegar lá.

O emprego e a virada do ministro

Vinicius Torres Freire
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


Em relação a 2008, país cria 612 mil empregos a menos; criação de vagas em março não evita alta do desemprego

DE JANEIRO a março de 2008, o país criou 612 mil empregos formais a mais do que no primeiro trimestre deste ano. Ou seja, 2009 está num vermelho-sangue escuro em matéria de emprego formal.

As indústrias ligadas à produção de veículos, de material de transporte e metalúrgica são dois dos três subsetores que, proporcionalmente, mais demitiram no primeiro trimestre (o outro foi a indústria de materiais elétricos e comunicações).

Quando o governo renovou a redução do IPI sobre carros, disse que um "acordo de cavalheiros" suspenderia demissões. Depois de abril.

Evitar desemprego por decreto é um equívoco. Mas, ainda que seja para valer, o pacto dos cavalheiros, intermediado pelos sindicatos, cai um pouco no ridículo: muitas cabeças já foram cortadas no primeiro trimestre e no final de 2008. O pacto protege uma porta arrombada e escorrega no leite derramado.

Ontem, o governo disse que pretende arrumar uma redução de impostos também para os frigoríficos. Os produtores de carnes foram ao matadouro devido à queda violenta das exportações e, em alguns casos, devido a apostas alucinadas no preço do dólar. Apenas um grande frigorífico demitiu mais gente que a Embraer. A fabricante de aviões foi parar nos tribunais e mereceu um show de Lula, que considerava as demissões "inaceitáveis". São aceitáveis as demissões nos frigoríficos?

Segundo o ministro do Trabalho, Carlos Lupi, março foi "o mês da virada do Brasil". Lupi destaca a informação, factualmente também correta, de que em março foram criados 34 mil empregos formais. Isto é, entre demitidos e contratados, sobraram 34 mil empregados em março deste ano (em março de 2008, sobraram 206 mil). É um número positivo, decerto. De novembro de 2008 até janeiro de 2009, mais gente havia sido demitida do que contratada: o "saldo" havia ficado negativo em 797 mil empregos formais. Na média, foram quase 266 mil empregos a menos por mês.

O problema da "virada" de Lupi reside no fato de que os brasileiros que passam a procurar emprego todos os anos mal vão perceber que o saldo de empregos foi de 34 mil em março. Vão sentir na pele é que, de novembro de 2008 até março de 2009, caiu em 753 mil a "criação" de empregos formais (em relação ao período de novembro de 2007 a março de 2008). A depender de quem faz a conta, estima-se que é preciso criar de 90 mil a 120 mil empregos formais por mês apenas para incorporar os novos trabalhadores.

Isto é, o desemprego formal cresce; assim, os novos empregos que sobram pagam menos, em média. Apenas a indústria de transformação (exclui a extrativa, como a de minérios) perdeu 501 mil empregos desde novembro de 2008. É o grande setor que paga salários maiores.

Enfim, note-se que foi na administração pública que o emprego mais cresceu, proporcionalmente, no trimestre (afora o subsetor de "ensino"). No governo. Bidu.

Muito bem que a desgraça no emprego tenha ficado menor. Em abril, felizmente, outra vez a tristeza deve ser um pouco menor. Mas os indícios presentes de despiora da economia apenas nos dizem que empobrecemos bem e, por ora, apenas paramos de ficar mais pobres.

O muro, aí como aqui

Clóvis Rossi
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


PORT OF SPAIN - Saio do Brasil com a polêmica sobre o muro em torno de uma favela carioca comendo solta. Chego a Port of Spain, em Trinidad e Tobago, com a polêmica sobre o muro para esconder uma favela comendo solta. Ah, América Latina, quando se fecharão suas veias eternamente abertas, para citar o clássico de Eduardo Galeano?

O "Miami Herald" visitou o muro e reproduziu ontem frase de um dos moradores de Beetham Gardens, a favela que está sendo escondida da vista dos chefes de governo que participarão da Cúpula das Américas, a partir de sexta-feira.

"Em todo lugar a que vou, quando digo que sou de Beetham, sou estigmatizado", reclama Anthony Bailey. Troque "Beetham" por "Rocinha", "Buraco Quente" ou qualquer outra favela brasileira e seja bem-vindo ao Brasil, estando em Trinidad e Tobago. O pior de tudo é que os últimos seis anos foram de formidável crescimento econômico para toda a região, possivelmente inédito. Trinidad e Tobago, por exemplo, mal sentiu, até agora, a crise internacional, depois de ter alcançado um índice asiático de crescimento em 2006 por exemplo (12%).

Se ainda assim a pobreza é tanta que é preciso escondê-la, quantos muros mais serão necessários nos anos magros ou de crescimento modesto?

Menos mal que os governantes reconhecem o tamanho do problema. Diz o rascunho do documento final da cúpula: "Continuam existindo profundas e persistentes desigualdades, especialmente na educação, nos níveis de renda, na saúde e no estado de nutrição, na exposição à violência e ao crime e no acesso aos serviços básicos".

Soluções? Também estão no texto, mas parciais e para 2015: "Diminuir pela metade os índices de pobreza" As veias continuarão abertas -e sangrando.