terça-feira, 9 de junho de 2009

O mundo de olho

Merval Pereira
DEU EM O GLOBO

Para se ter uma ideia de como o Brasil está no centro das atenções mundiais quando se trata de preservação do meio ambiente, principalmente no que se refere à Floresta Amazônica, a versão final da MP 458 aprovada pelo Senado, já apelidada pelos ambientalistas de "a MP da Grilagem", caiu como uma bomba entre os participantes nas negociações sobre mudança do clima que se realiza até sexta-feira em Bonn, na Alemanha.

No primeiro dia da reunião, a edição do "ECO", o prestigioso boletim diário editado pela Climate Action Network (CAN) que circula entre delegados em reuniões sobre meio ambiente e clima desde a cúpula de Estocolmo em 1972, publicou na página 2 artigo intitulado "Alerta - Isto é sério", em que os ambientalistas conclamam seus leitores a escrever para o presidente Lula pedindo seu veto pelo menos a alguns artigos da medida provisória.

A Climate Action Network (CAN) é uma reunião internacional de organizações não governamentais que promove ações para reduzir a níveis "ecologicamente sustentáveis" as ações humanas que provocam a mudança climática.

O documento a ser redigido na reunião de Bonn será o ponto de partida para a discussão na Convenção do Clima de Copenhague, marcada para dezembro, que definirá o sucessor para o Protocolo de Kyoto, que expira no fim de 2012.

São mais de 4 mil participantes, de 180 países, representando governos, indústrias, instituições de pesquisa e organizações não governamentais.

O texto aprovado pelo Senado brasileiro permite a legalização de 67,4 milhões de hectares de terras públicas da União na Amazônia, até o limite de 1.500 hectares. Empresas que ocuparam terras públicas até 2004 também terão direito às propriedades.

Os donos dos grandes lotes poderão revendê-los três anos após a concessão dos títulos. Os pequenos poderão ser vendidos só após dez anos.

A relatora da medida provisória no Senado, Kátia Abreu, do DEM, é também presidente da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), que recentemente pediu a demissão do Ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, que chamou de "vigaristas" os empresários do agronegócio.

Os petistas, com apoio do PSDB, querem que Lula vete a possibilidade de venda dos terrenos no período de dez anos após a regularização, assim como a possibilidade de pessoas que não ocupam diretamente as terras serem beneficiadas. Isso evitaria que "laranjas" de grandes grileiros sejam beneficiados.

Outro veto pedido é ao artigo que prevê uma declaração do ocupante da terra como requisito suficiente para a regularização fundiária. Ex-ministra do Meio Ambiente, a senadora Marina Silva quer que o governo realize vistorias nas pequenas propriedades rurais antes de conceder a regularização da terra.

O professor Luiz Pinguelli Rosa, na qualidade de secretário-executivo do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas, enviou ao presidente Lula carta em que afirma que a medida provisória tem o efeito final de privatizar terras públicas na Amazônia, o que, segundo ele, contribuirá para agravar o desmatamento, que representa a maior contribuição do Brasil para o aquecimento global.

Pinguelli Rosa diz também que a medida provisória destoa do Plano Nacional de Mudança Climática, assinado por Lula.

O boletim ambientalista "ECO", distribuído no início da reunião de Bonn, trata o meio ambiente brasileiro como sendo uma preciosidade "para os brasileiros e o resto do mundo", e cuja "exuberância, vastidão, diversidade e beleza", destacadas por Pero Vaz de Caminha em 1500, vêm sendo desde então devastadas pelo homem.

"O que fizemos para merecer essa maldição, essa doença corrupta que ameaça o bem-estar de milhões de pessoas que vivem na Amazônia e bilhões em todo o mundo?", pergunta a publicação.

Como exemplo dessa "maldição", o boletim cita a MP 458, apresentada como originalmente destinada a acertar a situação de milhões de pequenos proprietários que tentam há anos legalizar a posse da terra, às vezes incentivadas por programas de governos anteriores para a ocupação da Amazônia, mas que acabou sendo desfigurada nas mãos de "legisladores gananciosos".

A ONG Climate Action Network (CAN) acusa a medida provisória de servir aos interesses "daqueles com olhos grandes na especulação da floresta". Um dos pontos criticados pelos ambientalistas internacionais tem na senadora Marina Silva também uma ferrenha opositora. É o que permite que os proprietários de empresas possam também regularizar as terras em seus nomes, como pessoas físicas.

Os líderes ambientalistas que foram mortos nos últimos anos na região, como a freira americana Irmã Dorothy, o ambientalista Chico Mendes e o padre Josimo, são lembrados na mensagem da ONG, que pede que se escreva ao presidente Lula reforçando a necessidade de vetos na nova lei.

A decisão do presidente deve sair até amanhã.

Na coluna de domingo, escrevi que Clarence Thomas foi o primeiro juiz negro da Suprema Corte dos Estados Unidos, nomeado pelo republicano George Bush pai, mas na verdade o pioneiro foi Thurgood Marshall, nomeado em 1967 pelo presidente democrata Lyndon Johnson.

O leitor Gerardo Xavier Santiago, advogado, ressalta que, ao contrário de Clarence Thomas, ele era "liberal (no sentido norte-americano da expressão) e progressista". Atuou como advogado em causas que envolviam direitos civis e respaldava a ação afirmativa.

A grande proeza de Bush pai foi exatamente encontrar um afro-americano de direita para substituir Thurgood Marshall.

Serra acerta aliança com DEM na Bahia

CATIA SEABRA
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Tucanos firmaram apoio à candidatura de Paulo Souto (DEM); partidos não formalizam coligação no Estado desde 1998

"É uma sinalização de que estamos juntos no país", diz o democrata Rodrigo Maia; presidente do PSDB no Estado vai anunciar acerto

Dedicado à montagem de palanques sólidos no Nordeste, o governador de São Paulo, José Serra (PSDB), patrocinou ontem a reedição da aliança entre DEM e PSDB na Bahia. Rivais no Estado, tucanos e democratas não formalizam uma coligação desde 1998.

Pelo acordo -sacramentado na tarde de ontem, no gabinete de Serra-, o ex-governador Paulo Souto (DEM) será o candidato da aliança no Estado.

"Souto é o nosso candidato", disse o presidente nacional do PSDB, senador Sérgio Guerra (PE), avalista do acordo.

Segundo o presidente nacional do DEM, Rodrigo Maia (RJ), Serra afirmou que "Souto será o condutor do processo eleitoral no Estado".

A aliança será formalmente anunciada na segunda-feira que vem em Salvador. No ato, Souto representará o DEM ao lado do presidente do PSDB, Antônio Imbassahy.

O evento será ainda a comprovação de que, pela manutenção da aliança, os tucanos desistiram da ideia de levar Souto para o partido.

Ao dar uma demonstração de que trabalha pela candidatura, Serra tenta aplacar a ansiedade dos democratas para que antecipe a campanha eleitoral.

Além disso, deixa claro o esforço para consolidação de palanques confortáveis na região em que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva exibe fôlego.

"É uma sinalização para o resto do país, de que estamos trabalhando juntos", afirmou o democrata Rodrigo Maia.

A pedido de Serra, Guerra trabalhará para desatar outros nós, como o do Estado de Sergipe. Lá, o PSDB flerta com o PT.

Serra -que deverá viajar na sexta-feira para Pernambuco- preferiu, no entanto, faltar ao seminário organizado pelo DEM para discussão da crise mundial sob o argumento de que a agenda estava lotada.

No evento, foi representado pelo vice Alberto Goldman. Antes do seminário, democratas manifestavam inquietação quanto à indefinição do PSDB.

Num pequeno grupo repleto de simpatizantes da candidatura do governador de Minas Gerais, Aécio Neves, a avaliação era a de que, ao postergar a campanha, Serra torna inevitável uma disputa no PSDB.

Além de democratas, o presidente nacional do PPS, Roberto Freire (PE), manifestou sua preocupação diretamente a Serra. "Ele me disse que está no tempo certo", contou Freire.

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso disse ontem que "não é o momento de ficar aflito por causa da campanha". Segundo ele, não se pode cobrar que governadores tucanos entrem em campanha.

"É uma situação difícil", reconheceu FHC. "Não se pode pedir a um governador que não trabalhe pelo seu povo para fazer campanha."

Segundo tucanos, Serra repete que não pretende confrontar Aécio neste momento.

Governo Lula parece estar no automático, diz FHC

O ex-presidente disse ontem que "o presidente Lula parece que botou o [governo] no piloto automático". Daí a desenvoltura em se dedicar à campanha. Pregando mais controle de gastos, FHC disse que receia que "o governo atual esteja jogando tudo isso para o próximo". À saída de um seminário promovido pelo DEM sobre crise, ele disse não debitar a queda do PIB na conta do governo.

Água mole

Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

O presidente da República rejeita a ideia, a exiguidade dos prazos e a ausência de condições políticas confirmam que não há hipótese de o Congresso mudar a Constituição para permitir duas reeleições seguidas aos presidentes, governadores e prefeitos, notadamente a tempo de a regra entrar em vigor para a eleição de 2010.

Contudo, não obstante as evidências e as negativas há um fato: a emenda constitucional criando a possibilidade de os chefes de Poderes Executivos concorrerem a um terceiro mandato está na pauta do Parlamento.

E a oposição, que vinha toda catita com a dianteira nas pesquisas - ao ponto de se dar ao luxo fazer da divisão interna um passatempo - agora terá de se dedicar ao trabalho de remoção do entulho.

Será obrigada a cuidar de um artefato nascido nas hostes governistas e ainda ouvir que fica nervosa à toa.

Os aliados do presidente Luiz Inácio da Silva tanto fizeram que o assunto, que em tese não deveria estar sendo discutido nem por brincadeira, entrou na agenda legislativa. Pela porta da frente, com o apoio de um terço dos deputados (a maioria do PT e do PMDB) e uma justificativa estapafúrdia.

De acordo com o autor, o deputado Jackson Barreto, a popularidade do presidente Lula significa que o brasileiro desejaria a sua permanência na chefia do governo e, por isso, se deve abrir um espaço constitucional para a materialização da manifestação desse agrado.

Por essa lógica, quando um presidente estiver desagradando ou não conseguir "bons" índices de popularidade, a Constituição também deveria ser alterada para possibilitar a interrupção do mandato e, assim, oficializar a instabilidade política como regra no Brasil.

O presidente Lula até agora não fez um gesto objetivo para enterrar de vez essa história de terceiro mandato. É verdade que não alimentou a iniciativa quando ainda havia tempo, mas, por algum motivo, não só deixa que o cadáver transite insepulto, como ultimamente parece bastante satisfeito com isso.

Na semana passada, foram duas declarações simulando flexibilização da posição contrária. Na Guatemala, disse que a reeleição continuada é "assimilável" quando obtida de "forma democrática". Vale dizer, sob a égide da Constituição.

Dois dias depois, já de volta ao Brasil, o presidente resolveu provocar os oposicionistas que reagiram à nova investida - desta vez bem-sucedida - do deputado Jackson Barreto.

Achou "engraçado" o nervosismo da oposição, porque a proposta apresentada não institui pura e simplesmente o terceiro mandato, mas estabelece o referendo "que as pessoas podem derrubar na hora que quiserem".

Na oportunidade, Lula informou que ia "conversar com os aliados" a respeito. Note-se: não impôs reparo à proposição de Barreto nem firmou compromisso de, na "conversa", enquadrar quem quer que seja aos costumes vigentes.

Optou pela dubiedade, pelo gracejo e por confundir as ideias. Sobre o referendo, por exemplo, que só ocorre depois de a matéria passar pelo Congresso.

Tais atitudes divergem das negativas peremptórias, destoam da realidade objetiva e, principalmente, demonstram uma inadequada e inquietante ligeireza do presidente da República ao tratar de um tema dessa importância institucional.

E por que fazer isso em tom de quase zombaria?

Para dar a impressão de que são os adversários que levantam a questão como uma maneira de criar constrangimento ao governo, e que a imprensa embarca na onda para alimentar versões fantasiosas e transformá-las em notícias.

O presidente é bom na inversão dos fatos. Naquele mesmo dia, Lula pediu atenção na campanha eleitoral contra "os salvadores" da pátria: "Vocês viram o que fizeram comigo em 2005." Referia-se aos adversários, que não fizeram nada contra ele. Ao contrário.

A denúncia do mensalão saiu da base governista e a oposição deixou passar em branco a confissão de Duda Mendonça na CPI sobre o pagamento de seu trabalho como publicitário da campanha presidencial de 2002, por meio de caixa 2.

É de se observar agora que a emenda da rerreeleição está no Congresso qual a atitude do governo e dos governistas. Os partidos de oposição mandaram seus deputados retirar as assinaturas de apoio à proposta.

O PT e o PMDB posicionaram-se contra, mas não mexeram uma palha para impedir o início da tramitação. Terão oportunidade de sobra, entretanto, de ajudar o arquivamento. Basta que deem seus votos na Comissão de Constituição e Justiça.

Se hesitarem, significa que ao governo não interessa matar esse mal na raiz. Convém, por algum motivo, deixar que ele prospere introduzindo um fator de perturbação na campanha eleitoral já suficientemente conturbada pela antecipação artificial do processo.

O ministro da Defesa, Nelson Jobim, batizou a coisa do nome certo, "pseudotema". Só omitiu do monstrengo a filiação.

Com alguma ironia e muita paciência

Raymundo Costa
DEU NO VALOR ECONÔMICO


Tem razão o governador José Serra quando cobra mais organização e efetividade do PSDB para a campanha presidencial. O partido, em geral, vai às cordas a cada golpe de Lula e do PT. Basta lembrar de 2006, quando os tucanos ficaram paralisados ao serem denunciados de querer vender a Caixa e o Banco do Brasil. Agora o partido estremece ao verificar que a popularidade do presidente continua em ascensão e que a candidatura da ministra Dilma Rousseff (Casa Civil) teve extraordinário crescimento nas pesquisas de opinião pública.

Os tucanos parecem aturdidos e querem que Serra assuma a frente da oposição a Lula, algo que a prudência política e o respeito ao eleitorado de São Paulo não recomendam ao governador do Estado, neste momento. É papel de candidato, o que Serra ainda não é. A tarefa cabe ao PSDB.

Talvez o que os tucanos precisem mesmo é de "paciência e ironia", a receita bolchevique ministrada por Serra aos desalentados companheiros.

A história recente mostra que a paciência é boa conselheira; e que ninguém mais que o PT exerceu a ironia, quando esteve na oposição. Basta comparar as posições que o partido tinha nos governos de FHC e agora, em torno dos mesmos assuntos.

Lula antecipou a campanha a fim de catapultar uma desconhecida nas pesquisas. Teve êxito. Mas a cerca de um ano e meio da eleição, é difícil saber como estarão os principais atores da sucessão no início de 2010. Em política, um ano é bastante tempo.

Basta pensar no primeiro semestre de 1988: o que se sabia sobre a eleição de 1989? Era impossível imaginar, então, que a eleição iria para o segundo turno com os dois candidatos mais improváveis da cédula eleitoral: Fernando Collor de Mello e Luiz Inácio Lula da Silva. As expectativas giravam em torno de Ulysses Guimarães e Mário Covas.

O mesmo pode se dizer de junho de 1993 em relação à eleição de 1994, na qual Lula entrou como favorito. À época, Fernando Henrique Cardoso já havia trocado O ministério das Relações Exteriores pelo da Ministério da Fazenda. Mas o Plano Real, que iria pulverizar o favoritismo eleitoral de Lula, não passava de uma pedra bruta na cabeça de alguns economistas.

Em meados de 2001, Serra era um pré-candidato questionado, mas com a expectativa de contar com o poderio do governo de retaguarda - quase não vai ao segundo turno. Mesmo em 2005 a sucessão de 2006 esteve à margem, até por conta da crise política (o mensalão) que tomou conta do governo.

O PT é forte, mas tem vulnerabilidades, como demonstra pesquisa encomendada pelo partido mês passado. Apesar das mega-operações da Polícia Federal, o sentimento de que o governo não combateu devidamente a corrupção continua presente na população, embora com menos intensidade que no ano passado.

Traço na pesquisa de 2008, a falta de investimento na educação e nas estradas, a escolha de pessoas sem qualificação para o governo e falar sem pensar (Lula dizer que a crise não passava de uma marola) são aspectos que começam a tomar forma no imaginário da população pesquisada.

Outros números indicam que a oposição ou adotou a estratégia errada ou, se acertou, Lula é que faturou: em maio de 2008, 2% das pessoas incluíam o "aumento de impostos" entre as piores coisas que Lula fez; em 2009, a mesma pergunta nem sequer teve traço de resposta. No meio do caminho, o PSDB talvez tenha abusado na dose de ironia: prometeu aprovar mas ajudou a rejeitar a CPMF, o imposto do cheque.

À pergunta "qual foi a melhor coisa que Lula fez", o que seria o carro-chefe da campanha de Dilma continua patinando: o PAC teve 3% ano passado e 2% este ano. É pouco para muita propaganda. Em compensação, subiu de 1% para 7% a resposta à pergunta sobre investimento em habitação, indicando que o programa "Minha Casa, Minha Vida" pode ter sido um tiro certeiro de Lula.

A ser observado: o índice de rejeição de Dilma, detectado também por outras sondagens (11%, empatada com Serra, que tem 12%). Heloisa Helena (17%) e Aécio Neves (13%) ocupam as duas primeiras posições. Na sequência o PT vai investigar o quadro recebido da Vox Populi por meio de pesquisas qualitativas.

O PT é o partido preferido do eleitorado, com 29% contra 7% do PSDB, tendo o PMDB no meio com 8% (os números conferem com outras pesquisas já realizadas). Impressiona o recall da sigla PMDB, que desde 1994 não disputa uma eleição presidencial mas teve 24% das citações.

Atrás do PT, com 35%, mas à frente dos tucanos (14%), que polarizaram com os petistas as quatro últimas eleições presidenciais.

Definitivamente, os tucanos precisam acertar na dose de paciência e ironia.

Raymundo Costa é repórter especial de Política, em Brasília. Escreve às terças-feiras

Para Itamar, indefinição de Serra prejudica PSDB

César Felício, de Belo Horizonte
DEU NO VALOR ECONÔMICO

O ex-presidente Itamar Franco ainda espera uma última conversa com o governador de Minas Gerais, Aécio Neves (PSDB), agendada para 17 de junho, para selar sua filiação no próximo mês ao PPS. Entrará no partido como um aliado declarado da candidatura do mineiro à Presidência da República pelo PSDB e cobra do postulante com maiores chances de encabeçar a aliança oposicionista, o governador de São Paulo, José Serra (PSDB), uma definição imediata.

"O PSDB hoje só tem um candidato que já disse que deixará o governo, conversa com aliados, coloca-se à disposição para prévias e anunciou que quer ser candidato, que é o Aécio. O Serra estrategicamente permanece mudo. Será que isso é bom, quando já existem candidaturas postas?", indagou.

Segundo Itamar, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva antecipou o calendário eleitoral ao trabalhar pela candidatura da ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, pelo PT. "Serra enfraquece o partido dele ao não se dizer candidato e não apoiar quem já diz ser. O PSDB está perdendo tempo", afirmou.

A indefinição tucana, de acordo com Itamar, é o grande fator que alimenta possibilidades de alterações institucionais, como emendas constitucionais prevendo o terceiro mandato de Lula ou a prorrogação da permanência dos atuais governantes por mais um ou dois anos, defendidas por integrantes da base aliada federal. "O pouco tempo para fazer mudanças não as torna impossíveis, porque estamos em um país onde tudo é possível. Onde está a grande voz do PSDB a se erguer contra isso?", perguntou Itamar.

O ex-presidente afirma que a possibilidade de Dilma Rousseff fortalecer-se a ponto de ganhar as próximas eleições presidenciais não pode ser descartada. "Em 1994, ao apoiar Fernando Henrique Cardoso para a minha sucessão, quebrei a escrita de que um presidente no Brasil democrático não faz o sucessor. Mas aquilo se deu não pelo meu prestígio pessoal, mas por circunstâncias econômicas e políticas. Com a Dilma em relação ao Lula é possível se dar o mesmo, dependendo das circunstâncias, e não do Lula. Toda eleição tem um mote. A de 1994 foi o Plano Real, a de 2010 pode ser o PAC", afirmou, referindo-se ao Programa de Aceleração do Crescimento, gerenciado pela ministra.

Ao cobrar pressa na definição tucana, Itamar se alinha com seu futuro partido. Ontem, a assessoria do PPS divulgou uma nota em que sete dos treze deputados federais da bancada pedem uma solução imediata para o impasse na aliança da oposição.

Itamar hoje relativiza a questão regional no processo político. "Um candidato não pode ser paulista ou mineiro, ele tem de representar o sentimento nacional, sem que o peso de um Estado prepondere. Eu mesmo contribuí para a hegemonia paulista em 1994, ao apoiar Fernando Henrique, ainda que a minha primeira opção na época tenha sido o então ministro da Previdência, Antonio Britto", disse o ex-presidente, referindo-se ao político gaúcho que na eleição daquele ano terminou eleito governador do Rio Grande do Sul.

Cotado por aliados de Aécio como um possível candidato a vice em uma chapa presidencial liderada por Serra, o ex-presidente disse descartar a hipótese. "O meu horizonte agora é político, e não eleitoral. E no meu horizonte, o que enxergo é a candidatura presidencial de Aécio, da qual não posso fugir", disse.

Itamar prepara seu ingresso no PPS como um crítico ao presidente Lula que evita comentar temas estritamente administrativos do atual governo. Ataca Lula no plano político. "É muito pedante da parte do presidente ele habituar-se a dizer que "nunca antes" aconteceu isso ou aquilo no Brasil. Ele não tem a humildade de reconhecer não apenas o que eu, mas todos que me antecederam, já fizeram. Será que Juscelino [Kubitschek] não fez nada? Ou [José] Sarney? Tudo que acontece hoje no país é resultado de uma somatória", comentou o ex-presidente.

Itamar lembrou que, como presidente, não interferiu no jogo congressual de CPIs, enquanto Lula articula para que a oposição não tenha a presidência da CPI da Petrobras.

"No governo [Ernesto] Geisel, por iniciativa do oposicionista Paulo Brossard, foi criada uma CPI para se investigar o acordo nuclear. O governo tinha oito dos onze integrantes, mas aceitou que a oposição ficasse com a presidência da comissão", afirmou. Senador pelo MDB na ocasião, Itamar presidiu a CPI. Mas o ex-presidente negou que tenha deixado a Embaixada do Brasil em Roma, em agosto de 2005, em protesto pelas denúncias do escândalo do mensalão que à época ameaçavam a continuidade do governo Lula.

"A minha saída depois de dois anos à frente da embaixada já estava acertada no momento em que aceitei o convite para o cargo", disse. Ainda que ataque o governo no plano político, o ex-presidente demonstrou dúvidas sobre a eficácia da crítica. "A opinião pública hoje não se interessa por isso, por esta questão de CPIs. Vivemos em um tempo em que o interesse das individualidades se contrapõem a um coletivo social. Se vamos ou não continuar vendo esta somatória dos interesses individuais vencendo o coletivo social é uma resposta que teremos em 2010", disse o ex-presidente.

Ao criticar Lula, Itamar procurou elogiar o ex-ministro da Casa Civil José Dirceu, que terminou 2005 com o mandato de deputado federal cassado, acusado de ter-se envolvido no mensalão. O ex-presidente lembrou que Dirceu articulou a sua adesão à candidatura Lula em 2002, quando Itamar era governador de Minas Gerais. "Eu e Dirceu sempre tivemos boa relação. Lula deve a Dirceu a sua primeira eleição, não a nenhum marqueteiro. Foram as grandes alianças forjadas por Dirceu, e não a mudança de imagem, que garantiram a vitória dele", disse.

Depois do seu rompimento estrepitoso com o ex-presidente Fernando Henrique, entre 1998 e 2002, Itamar disse que uma reaproximação hoje não é impossível. "Anteontem (ontem) foi o aniversário do desembarque da Normandia, e a segunda guerra mundial ainda nos dá lições. Uma delas é a de que pessoas com uniformes diferentes podem lutar lado a lado, por um objetivo concreto, sem que depois não venham a defender suas posições de sempre e até travar uma guerra fria", disse.

A vitória da direita na Europa

Editorial
SEU EM O ESTADO DE S. PAULO

A primeira vítima política da recessão no mundo desenvolvido acaba de ser identificada. Trata-se do que se chamava no Brasil dos anos 1970 o "raciocínio em bloco". Aplicado à crise, o pensamento simplório levaria à previsão segura de que os partidos conservadores, com a sua filosofia antiestatista e as suas políticas orientadas para o mercado, sofreriam uma derrota devastadora seja lá onde os eleitores fossem às urnas depois do tsunami atribuído à desregulamentação dos negócios financeiros e em meio à onda de desemprego em massa. Eis que o eleitorado dos 27 membros da União Europeia (UE), chamado a escolher os representantes de seus países no Parlamento regional, na votação de quatro dias terminada no domingo, preferiu infligir à centro-esquerda uma humilhação sem precedentes desde a criação do bloco que hoje se estende do Mar do Norte ao Mediterrâneo, do Báltico aos Bálcãs.

Em geral, o resultado desse tipo de eleição tende a refletir o estado de espírito das diferentes populações em relação aos seus dirigentes de turno. Desta vez, a tradição não contou. Em vez dela, impondo-se às questões nacionais, prevaleceu uma impressionante convergência de opinião sobre quais setores políticos estariam qualificados para soerguer as economias europeias. Esse divisor de águas premiou partidos e governantes centro-direitistas e puniu - severamente - partidos e governantes esquerdistas. A centro-direita ocupará cerca de 270 das 736 cadeiras do Parlamento sediado em Estrasburgo. Socialistas e congêneres, 160. Na França, a UMP, o partido do presidente Nicolas Sarkozy, bateu a oposição socialista por 28% a 17% dos votos, o que o autoriza a se declarar o maior vitorioso da disputa supranacional. De fato, nunca antes um presidente francês levou a melhor numa eleição para o Legislativo europeu, em 30 anos de votações.

Na Itália, onde a esquerda contava com a escandalosa vida pessoal do primeiro-ministro Silvio Berlusconi para se desforrar da sua terceira eleição no país, há um ano, a chapa por ele apoiada tornou a bater a do Partido Democrático, de oposição. Na Alemanha, que elege 99 dos 736 parlamentares da UE e onde o governo é conduzido pela chamada Grande Coalizão entre a democracia cristã da chanceler Angela Merkel e a social-democracia, embora o seu partido tenha perdido 6 pontos em relação ao mesmo pleito anterior, superou o aliado por 38% a 21%. "Foi um resultado significativamente pior do que esperávamos", reconheceu o presidente social-democrata Franz Müntefering. Pior também porque pode ser uma prévia das eleições alemãs de setembro próximo. Nesse caso, Angela terá maioria parlamentar suficiente para formar com a União Social Cristã e os Democratas Livres um novo governo de centro-direita puro.

Mais ao centro, mais à direita, conforme o país, essa vertente triunfou expressivamente também na Áustria, Bulgária, Espanha, Holanda, Hungria, Irlanda, Polônia e República Checa, perdendo porém em Portugal, Grécia e Malta. Mas o descrédito da esquerda como solução para a crise não parece ter sido a única razão do seu fracasso eleitoral. Ela também pagou o preço do seu europeísmo diante de um eleitorado mais nacionalista e cético sobre as vantagens da UE.

Apenas 43% dos europeus foram às urnas, espelhando o desinteresse de muitos pelas opacas políticas do bloco, o que acabou por enfraquecer o voto moderado e fortalecer as correntes que fazem da xenofobia a sua bandeira.

Na Holanda, por exemplo, os neofascistas festejam, entre outros êxitos, a eleição do candidato que se concentrou em investir contra os imigrantes muçulmanos. E pela primeira vez a extrema-direita britânica estará representada em Estrasburgo, com 3 deputados.

No Reino Unido, aliás, os resultados parecem ter cravado a última estaca nas esperanças do primeiro-ministro trabalhista Gordon Brown de sobreviver no cargo até as eleições de 2010.

A sua popularidade já em baixa acentuada caiu a níveis insustentáveis com o desempenho do seu partido nas urnas de domingo. Com 16% dos votos, aquém dos conservadores e do Partido da Independência, radicalmente antieuropeu, o Labour sofreu a pior derrota desde a 1ª Guerra mundial. As pressões dos companheiros de Brown para a sua renúncia se avolumam como uma avalanche.

Deve ser terrível...

Azuete Fogaça
DEU EM O GLOBO

Depois da decisão judicial contrária às cotas “raciais” para o ingresso nas universidades públicas do Rio de Janeiro finalmente consigo dormir tranquila. Eu estava preocupada com o futuro do país por causa das cotas e da proposta de estatuto da igualdade racial que transita no Congresso Nacional. Afinal, temos uma história invejável, onde se destaca a prevalência dos princípios democráticos, o funcionamento perfeito de uma sociedade igualitária, na qual todos têm seus direitos humanos, sociais e de cidadania respeitados. O resultado desse processo é visível, quando se observa que brancos e negros se distribuem igualmente pelos diferentes patamares da hierarquia social.

Assim, nada justifica qualquer destaque à existência de pessoas com características físicas diferenciadas.

Isso se comprova na excelência das escolas públicas frequentadas pela quase totalidade dos negros, que são tão boas como qualquer escola privada; também está presente no atendimento rápido e eficiente da rede hospitalar pública, alternativa única da maioria dos negros que necessitam de assistência médica; pode-se confirmar ainda no conforto e regularidade do transporte de massa e no acesso aos bens públicos — praticamente não há diferença entre morar num condomínio da Barra ou em alguma favela da periferia, onde os negros são majoritários.

Custo a entender a atitude de pessoas que como eu são produtos dessa maravilhosa mistura de “raças”, mas que não são gratas à história que nos livrou de uma vida pagã, pautada por rituais tribais, por práticas religiosas exóticas, para nos integrar a uma cultura superior, referendada e reverenciada nos nossos livros didáticos, na nossa mídia, nos princípios básicos da nossa legislação e, principalmente, na interação entre os diferentes estratos sociais e que mostra sua excelência no processo de desenvolvimento sociopolítico e econômico dos países do chamado Primeiro Mundo. Afinal, olhem para a África negra de hoje. É isso que querem para nós, mestiços brasileiros? Benditos navios negreiros; bendita política de miscigenação, que permitiu estarmos hoje numa sociedade que avalia as pessoas pelo que elas realmente são, e não por suas características físicas; uma sociedade que dá oportunidades iguais para todos, porque nela não se admite que as diferenças étnicas e culturais sejam promotoras da desigualdade.

Fico imaginando como essas políticas de ações afirmativas que o movimento negro quer implantar podem acabar com essa convivência democrática que hoje desfrutamos e inaugurar a discriminação racial, coisa que este país miscigenado não conhece.

Como diria o Ancelmo, deve ser terrível viver num país onde, por exemplo, um policial trate alguém como criminoso só porque sua pele é clarinha e seu nariz afilado; deve ser pior ainda encontrar professores que olhem para um aluno e por causa de seus cachinhos dourados, e só por isso, não acreditem que ele seja capaz de aprender. Pensando no fantástico bom humor dos brasileiros, que triste seria se surgissem piadinhas do tipo “negro quando corre na rua é atleta, branco quando corre na rua é ladrão”, ou “branco quando não suja na entrada, suja na saída”.

Na busca de emprego, que tragédia! Quantos jovens talentos seriam perdidos, quantas famílias seriam jogadas ou mantidas na pobreza, se pelas exigências de “boa aparência”, as empresas deixassem de dar oportunidades a jovens e adultos que não tivessem lábios grossos e cabelos crespos. E na universidade? Que terrível seria, se nesse templo da formação das elites, um professor-doutor, com renome internacional, fosse humilhado e tratado como um servidor subalterno só por ser branco e ter olhos azuis! Felizmente, nas nossas elites políticas e intelectuais predominam pessoas preocupadas em preservar esse doce convívio de que hoje desfrutamos, e que não medirão esforços tanto para apontar as virtudes da nossa miscigenação, quanto para desestruturar os argumentos a favor das cotas e do estatuto da igualdade racial.

Tenho certeza que tudo farão para que as coisas continuem como estão pois, como se diz no futebol, não se mexe em time que está ganhando...

Azuete Fogaça é professora da Universidade Federal de Juiz de Fora.

Desarmamento perde especialista no voo AF-447

Antônio Rangel Bandeira
Sociólogo do Viva Rio
DEU NO CORREIO BRAZILIENSE

Para os defensores do controle de armas, o desaparecimento de Pablo Dreyfus foi uma perda irreparável. Considerado uma das maiores autoridades mundiais nessa especialidade, esse argentino procurou o Viva Rio há 9 anos, “para ajudar os brasileiros a controlar as armas e deixarem de ser campeões em mortes por arma de fogo”. Nesse período, foi figura essencial em todas as medidas de sucesso tomadas para combater o tráfico ilícito de armas e reduzir o que chamava de “genocídio em tempo de paz”.

Foi o grande inspirador do Estatuto do Desarmamento, consultado pelos parlamentares na sua formulação. Por exemplo, a marcação de munição, para permitir seu rastreamento, transcendeu a lei brasileira e entrou na agenda internacional de política contra o seu tráfico ilícito. A campanha de desarmamento, em que foram entregues 459 mil armas, utilizou o resultado de suas pesquisas, que apontavam os riscos de se ter arma em casa. Em 2000, como membro da delegação enviada pelo Brasil para solicitar ao presidente do Paraguai medidas contra o contrabando de armas, foi decisivo nas negociações; os dados que levantou sobre os desvios de armas levou o governo paraguaio a suspender a importação de armamento brasileiro e a melhor controlar a venda de armas.

Após a nossa derrota no referendo sobre a proibição do comércio de armas, Pablo não se deu por vencido. Fomos desanuviar a cabeça percorrendo as fronteiras dos países vizinhos com o Brasil, onde constatamos uma enorme queda na venda ilegal de armas e munições brasileiras. Queda devida à aplicação da Resolução 17, da Carteira de Comércio Exterior do Banco do Brasil (Cacex), que aumentou para 150% a alíquota de exportação de armamento para esses países, medida ainda hoje ameaçada pelo lobby das armas.

Pablo coordenou a pioneira, e única, pesquisa nacional sobre armas no Brasil. Publicada no livro Brasil: as armas e as vítimas, demonstrou que circulam entre nós mais de 17 milhões de armas, 90% nas mãos da sociedade e 50% delas na ilegalidade, pesquisa elogiada pelo Exército e pela Polícia Federal, por seu rigor científico. Requisitado a dar cursos de controle e rastreamento de armas para a Polícia Federal e para a polícia do Rio de Janeiro, elaborou o Manual de Classificação e Rastreamento de Armas, adotado por várias secretarias de segurança e utilizado em outros países.

À CPI do Tráfico de Armas entregou relação de 36 mil armas brasileiras apreendidas na ilegalidade no Rio de Janeiro. Assim, com a orientação desse especialista, cerca de 15 mil dessas armas puderam ser rastreadas pela Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados (DFPC) do Exército, pela PF e pelas indústrias, concluindo-se que grande parte havia sido desviada via “cidadãos de bem”, lojistas, empresas de segurança privada e das próprias polícias. A revelação levou a polícia do Rio de Janeiro a reformular o controle sobre seu armamento, hoje o mais moderno do país.

Seu último trabalho foi uma pesquisa, solicitada pela Subcomissão de Armas da Câmara, e apoiada pelo Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), sobre o controle de armamento em todos os estados, para orientar o Ministério da Justiça na aplicação de recursos no combate ao desvio de armas. Pablo colaborou no controle de armas também em Moçambique, Argentina, Paraguai, Bolívia, El Salvador e Colômbia.

Há dois meses, estivemos em Angola, assessorando o seu governo. Pablo se angustiava com as tentativas de desmanche do Estatuto do Desarmamento. “Como podem querer mudar o que está dando certo?”, lamentava, referindo-se à redução em 18% no número de mortes por arma de fogo nos últimos cinco anos, devido à proibição do porte de arma e à campanha do desarmamento. Preocupava-se com os vários projetos de lei apresentados pela “bancada da bala” para acabar com essa proibição. Sua última anotação se referia à recente votação na Comissão de Segurança visando derrubar a obrigatoriedade de testes psicológico e de manuseio para os proprietários de rifles calibre 22. Ele escreveu: “O massacre na Finlândia, em que o estudante Pekka-Eric teve um surto psicótico e matou sete colegas com uma arma calibre 22, demonstra a importância dos testes psicológicos”.

Após a viagem, tragicamente interrompida, Pablo viria para Brasília, falar no seminário da Rede Desarma Brasil com a Conferência Nacional de Segurança (Conseg). Nós temos uma enorme dívida de gratidão para com esse argentino alegre, que cantava tango e celebrava a vida, e que contribuiu decisivamente para evitar a morte até agora de 6 mil brasileiros.

Lula apela a Sarney sobre CPI

Chico de Gois, Adriana Vasconcelos e Gerson Camarotti
DEU EM O GLOBO

UM POÇO DE POLÊMICAS

Governo não abre mão de controle da comissão, e instalação pode ser adiada de novo

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva se convenceu de que terá que atuar pessoalmente, mais uma vez, para tentar um acordo no Senado que garanta a aliados fiéis o efetivo controle da CPI da Petrobras, prevista para ser instalada amanhã. Lula vai apelar à influência que o presidente da Casa, José Sarney (PMDB-AP), tem sobre o líder do PMDB, Renan Calheiros (AL), que dificulta um acordo na base ao vetar o líder do governo, Romero Jucá (RR), para a relatoria da CPI. Renan quer um nome de sua confiança na função. Lula quer Jucá.

Para o Planalto, se o impasse continuar, a maioria governista deve adiar novamente o início dos trabalhos. O calendário legislativo, com feriadão, festas juninas e recesso de julho, é favorável à estratégia do governo.

Enquanto a base não se entende, a oposição tenta se organizar. Busca apoio de governistas como Fernando Collor (PTB-AL) e Jefferson Praia (PDT-AM), para assegurar, amanhã, a instalação da CPI da Petrobras. E convocou para hoje reunião da CPI das ONGs, na qual o novo relator, Arthur Virgílio (PSDB-AM), promete apresentar um plano de trabalho com foco nos convênios do governo com entidades ligadas ao PT e ao MST.

Lula, que conversou com Renan há cerca de dez dias - quando aceitou o pedido do líder para que o petista Aloizio Mercadante (SP) ficasse fora da CPI -, deve procurá-lo de novo, mas antes tentará a ajuda de Sarney como intermediário.

- O presidente disse que vai tomar a iniciativa de conversar com ele (Sarney), com o líder do PMDB e com o líder do PT (Aloizio Mercadante) para, vamos dizer assim, assuntar sobre a montagem da relatoria e da presidência - disse o ministro de Relações Institucionais, José Múcio Monteiro, ao fim da reunião de coordenação do governo, salientando que essa atuação de Lula é normal. - Tudo é ele. Na verdade, ele é quem faz a coordenação do governo dele. Eu apenas dou os recados e trago as preocupações.

Feriado e São João favorecem governo

Para a sessão da CPI da Petrobras de amanhã, PSDB e DEM tentam garantir a presença de seis dos 11 integrantes. A oposição tem três titulares, mas conta com o apoio de Collor e Jefferson Praia, além de Paulo Duque (PMDB-RJ), que, como parlamentar mais velho, convocou a sessão.

- Nossa expectativa é instalar a CPI esta semana, mesmo sendo véspera do feriado. Collor e Jefferson Praia se comprometeram a comparecer. O governo se comprometeu a dar quórum quando propôs o adiamento. Acredito que não são moleques e não vão tratar a oposição com desdém - disse Álvaro Dias (PSDB-PR).

Mesmo que a oposição instale a CPI, o governo usará sua maioria e o calendário para adiar ao máximo as investigações. Além do feriadão, os governistas contam com os festejos de São João e o consequente esvaziamento do Legislativo. Entrando julho, o Congresso tem apenas mais duas semanas de trabalho antes do recesso de cerca de 20 dias.

- Como a maioria é do governo, é possível, sim, que ele use o calendário para esvaziar a CPI - admite o líder do PDT, Osmar Dias (PR).

Lula vai tentar usar Sarney como fiador das negociações, mas no PMDB o consenso é que Renan só voltará atrás no veto a Jucá com um apelo do presidente. Múcio negou que a atuação de Lula signifique pôr panos quentes na disputa entre PT e PMDB, e reconheceu que não tem como evitar a politização da CPI:

- É uma CPI importantíssima. A um ano das próximas eleições, não vamos conseguir fugir de ter um tom político. É do próprio sentimento da Casa.

A machadinha de Minc

Ediane Merola e Catarina Alencastro
DEU EM O GLOBO

Cerca de 300 pessoas participaram no Rio de ato em apoio ao ministro Carlos Minc (Meio Ambiente). Carregando machadinhas de plástico, ambientalistas, membros de ONGs e de sindicatos tomaram as escadarias da Alerj e criticaram a aprovação da MP458, que regulariza ocupações em áreas da União na Amazônia. Minc ouviu palavras de ordem como "Fora Mangabeira (Unger)", mas não cantou. Quebrou uma machadinha e prometeu mais 70 ações contra desmatadores.

Minc defende veto a artigos da MP 458

"Lula não é a favor do grileiro; é a favor do posseiro", diz ministro, que no Rio fingiu quebrar uma machadinha

RIO e BRASÍLIA. O ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, disse ontem que pedirá ao presidente Lula para vetar artigos da MP 458, que trata da regularização fundiária na Amazônia. Segundo ele, a proposta do governo foi desfigurada em pontos importantes, ao ser aprovada na Câmara e no Senado. Minc deve se reunir esta semana com dez ministros que participaram da elaboração da medida e parlamentares que a negociaram no Congresso, antes de levar a sugestão ao presidente:

- Regularização fundiária é boa para o Brasil, mas alguns pontos desfiguraram a ideia original. Cabe a nós provar que alguns pontos contrariam o que foi conversado com o presidente e os ministros.

Minc explicou o que pretende que seja vetado:

- Não se trata de derrubar tudo, porque, no essencial, o projeto será benéfico para a Amazônia.

Trata-se de tirar pontos que abrem uma brecha e, em vez de beneficiar os posseiros, acabam beneficiando os grileiros. O Lula não é a favor do grileiro; é a favor do posseiro.

Minc disse que a ideia é manter o texto mais próximo do que foi enviado pelo governo ao Congresso. Sobre a briga com os ruralistas em torno do Código Florestal, Minc admitiu mais uma vez que a legislação pode ser simplificada. Disse que dará tratamento preferencial ao agricultor familiar, mas que tentará um acordo com os grandes.

No Rio, cerca de 300 pessoas participaram ontem de um ato em defesa da legislação, contra os ruralistas e em apoio a Minc, nas escadarias da Assembleia Legislativa. Minc atacou a senadora Kátia Abreu (DEM-TO), relatora da MP 458, e anunciou que em 15 dias vai protocolar mais 70 ações criminais contra os maiores desmatadores da Amazônia. Segundo ele, hoje há cem processos na Justiça.

Os manifestantes levaram cartazes contra o desmatamento e machadinhas de plástico, numa referência à declaração de Minc de que ministros como Mangabeira Unger (Assuntos Estratégicos), Reinhold Stephanes (Agricultura) e Alfredo Nascimento (Transportes) combinam um projeto e depois vão ao Congresso com uma machadinha desfigurar leis.

Num gesto simbólico, o ministro quebrou uma das machadinhas. Mas, quando os manifestantes cantaram paródias criticando Mangabeira, apenas sorriu sem graça, e disse que não poderia cantar junto. O ato foi promovido por movimentos como Rede de ONGs da Mata Atlântica, Instituto Terra, Viva Rio, Grupo Ação Ecológica, CUT, Contag e Sindicato dos Bancários.

Um grupo de teatro fez uma sátira sobre Kátia Abreu. Para Minc, ela também pode ser alvo de piadas, pois acha que pode dizer a Lula que ministros ele deve nomear ou demitir.

- Se o presidente não fosse o Lula, e sim a Kátia Abreu, não teríamos o Bolsa Família, mas o Bolsa Latifúndio - disse.

À tarde, porém, Minc disse que fará as pazes com Kátia:

- Ora, se eu fiz as pazes com o governador (Blairo) Maggi, com a soja e com a cana, por que não posso fazer com a senadora Kátia Abreu, que é muito mais articulada e mais bonita?

Lula deverá manter MP sobre terras na Amazônia

João Domingos
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

O presidente Lula tende a ignorar os apelos do PT, dos tucanos e dos ambientalistas para que vete artigos da medida provisória que permite a regularização de posses de até 1,5 mil hectares na Amazônia. Se houver algum veto, deverá ser apenas no artigo sobre terras ocupadas por empresas.

Lula deve ignorar pressão e vetar um só artigo da MP da Amazônia

Apesar da cobrança de ambientalistas, PT e PSDB, deve cair apenas a regularização de áreas das empresas

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva tende a ignorar os apelos do PT, dos tucanos e dos ambientalistas para que vete artigos tidos como nocivos ao meio ambiente da medida provisória que permite a regularização de posses de até 1,5 mil hectares na Amazônia. De acordo com informações do Palácio do Planalto, a maior probabilidade é de veto apenas ao artigo que permite a regularização das terras ocupadas por empresas.

"A MP está bem do jeito que foi aprovada. Meu único questionamento é sobre a parte que permite a legalização de terras de pessoas jurídicas", disse o ministro do Desenvolvimento Agrário, Guilherme Cassel.

O ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, afirmou que considera o projeto "muito bom" e, por isso, acha que deve ser mantido. Afirmou que pedirá três vetos, embora não possa garantir que o presidente os fará. Ele quer que saia do texto a parte relativa às empresas, a que reduz o prazo para a concessão do título definitivo de 10 para três anos e a que permite a concessão da posse a quem não mora no município.

A Casa Civil informou que Lula tem prazo até o dia 25 para sancionar a lei integralmente ou com vetos. Antes, todo o texto da medida passará pelo crivo da subchefia jurídica do órgão, quando haverá decisão sobre a necessidade de algum veto.

De acordo com o Meio Ambiente, o texto final aprovado pelo Congresso foi amplamente negociado pela liderança do governo com todos os partidos da base aliada. Coube ao deputado Asdrubal Bentes (PMDB-PA) costurar o acordo até o momento da votação. As emendas apresentadas pelo PPS - em particular pelo deputado Moreira Mendes (RO), todas tidas como desvirtuadoras da ideia original da medida provisória - foram todas rejeitadas.

Mendes queria, por exemplo, que os ocupantes das terras pagassem apenas pelos 20% que podem ser legalmente desmatados em cada propriedade. Os 80% restantes, necessários para a reserva legal, sairiam de graça. O deputado argumentava que essa área não poderia ser cobrada porque o proprietário não teria o usufruto dela para a produção.

RESISTÊNCIA

Durante a votação da medida provisória na Câmara, o líder do governo, Henrique Fontana (PT-RS), informou que o texto era fruto de acordo - até mesmo a parte que permite a regularização das terras ocupadas por empresas. No Senado, porém, o PT, sob o comando da ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva, resolveu protestar. Em carta a Lula, o PT argumentou que a MP, como foi aprovada pelo Congresso, representou a "legalização da grilagem".

Na carta, Marina e o PT do Senado pediram o veto à parte que permite a posse a quem não mora no município ou que tem outra propriedade.

Também foi pedido o veto ao artigo 7º, o que trata da titulação e comercialização de terras em áreas de até 1,5 mil hectares. O PT argumentou que o artigo amplia muito as possibilidades de legalização de terras griladas, permitindo a transferência de terras da União para empresas, para quem já possuiu outras propriedades rurais e para a ocupação indireta. O PSDB, de oposição, ficou ao lado do PT no pedido aos vetos.

A MEDIDA PROVISÓRIA

Objetivo original: Permitir que uma área de 67,4 milhões de hectares de terra, no valor de R$ 70 bilhões, seja regularizada

Crítica dos ambientalistas: A título de regularizar as posses de pequenos agricultores em terras públicas federais na Amazônia, abriu-se a possibilidade de legalizar a situação de muitos grileiros. Por isso, vem sendo chamada de "MP da grilagem"

Brechas: Com a intenção de evitar brechas para anistiar aqueles que cometeram crime de apropriação de grandes extensões de terras públicas, a senadora Marina Silva (PT), ex-ministra do Meio Ambiente, apoiada por seu partido e pelo PSDB, enviou carta a Lula pedindo veto a 3 artigos da MP: 2º, 7º e 13º. Os objetivos são: impedir que pessoas que não ocupam diretamente as terras, além de pessoas jurídicas, sejam beneficiadas; garantir vistoria para separar os que ocuparam a terra dentro da lei dos que falsificaram documentos; evitar que o prazo de venda de médias (400 a 1.500 hectares) e grandes propriedades (acima de 1.500 hectares) seja de 3 anos, o que poderia favorecer especuladores

Na travessia

Panorama Econômico :: Míriam Leitão
DEU EM O GLOBO

As boas notícias: o ministro Guido Mantega disse que a confiança está voltando à economia; o economista José Roberto Mendonça de Barros acredita que a queda livre da economia acabou; o empresário Jorge Gerdau, que tem usinas no Brasil e nos Estados Unidos, acha que aqui está melhor. Mas, nesta terça-feira, o Brasil será oficialmente informado de que está em recessão.

Hoje, sai o resultado do PIB do primeiro trimestre e ele vai confirmar o que temos dito aqui desde o começo do ano: o Brasil entrou em recessão no final do ano passado. Na quarta-feira, o país verá um fato histórico: a queda dos juros abaixo de 10%. Qualquer que seja a decisão do Copom - de corte de 0,5; de 0,75; ou de 1 ponto percentual -, os juros vão atravessar uma marca histórica.

Ontem, o Fórum Globonews reuniu Mantega, Gerdau e José Roberto. Coordenei o debate cujo resumo vai ao ar no próximo domingo. Mesmo divergindo em vários pontos, os três mostram o retrato de um meio do caminho: a situação não está tão grave quanto já foi, mas ainda há muitos desafios a serem enfrentados antes que se possa dizer que a crise acabou.

José Roberto acha que a recuperação pode ser em "W", ou seja, pode haver outra queda depois dessa melhora recente. Gerdau acha que há chances de evitar um novo tombo. Ele acredita que o risco de a situação voltar a piorar está nos Estados Unidos.

- Este ano não escapamos de uma recessão forte nos EUA, nos países desenvolvidos, e em parte dos emergentes - disse Mantega, que continua afirmando que o Brasil deve crescer 1%. Mas ele admite que isso não é projeção, mas uma meta.

José Roberto acredita que o resultado do PIB do primeiro trimestre vai mostrar quedas de 3,4% em relação ao mesmo período do ano passado e de 2,3% em relação ao último trimestre. E que em 2009 o país deve ficar num PIB de zero. Ele não faz a previsão mais pessimista do mercado. Mantega não quis arriscar números do PIB do trimestre. No almoço que se seguiu ao Fórum, sentei ao lado do ministro, e ele me disse que o segundo trimestre deve ser positivo, ainda que ele esteja esperando uma recuperação fraca, de talvez 0,5%. O que todos concordaram é que o final do ano será muito melhor do que esse trimestre que deixamos. José Roberto acha que o consumo das famílias estará crescendo a 1,2% no fim do ano.

Jorge Gerdau acha que mais importante do que o momento atual é o fato de que não nos preparamos para sair bem da crise. Segundo ele, o Brasil não fez mudanças necessárias para ser mais competitivo e continua taxando o investimento.

- Fiz um investimento de US$600 milhões em São Paulo. Paguei US$130 milhões de imposto, consegui abater uma parte disso, mas pelo menos US$60 milhões não recuperei - disse ele, explicando em grandes números o que quer dizer com a reclamação de que "no Brasil se paga imposto sobre o imobilizado".

Onde não houve acordo foi no gasto público. O economista disse que o Brasil está aumentando o gasto de forma irracional porque estão crescendo as despesas correntes há muitos anos em termos reais. O ministro disse que aumento de gasto é a forma de se fazer política anticíclica. O empresário acha que o gasto não é eficiente. Esse assunto, claro, tomou boa parte da discussão.

Mantega acha que está reduzindo a carga tributária com medidas pontuais. Gerdau concordou que várias das medidas tomadas pelo governo aliviaram, sim, as empresas. Mas José Roberto alerta que tudo o que provocou o aumento da arrecadação nos últimos anos não vai mais ocorrer.

- O bônus tributário acabou. O governo aumentou a arrecadação por que vários setores que não pagavam imposto passaram a pagar com mudanças como o Simples. Houve queda de custo com a redução de juros, só este ano o governo vai deixar de gastar um ponto percentual do PIB com juros. Mas, nada disso se repete. E o governo aumentou gastos de forma permanente com funcionários e salários - disse José Roberto.

- As contas fiscais estão melhores no Brasil que em outros países. Os gastos com pessoal estão estáveis como percentual do PIB e o Brasil precisava mesmo contratar mais e gastar mais com educação, saúde, segurança. Não acho que isso é gasto - respondeu Mantega.

Os três acham que o Brasil volta a crescer no ano que vem, ainda que mais devagar. José Roberto aposta em 3%. Ele acredita que o câmbio deve continuar fraco, que pode ir abaixo de R$1,90 e que no fim do ano deve estar em R$2,00. Mantega descartou qualquer tipo de política para tentar evitar a entrada de dólares. Nem IOF sobre entrada de capital. Ele disse que tem entrado pouco recurso para renda fixa, que a maior parte é para a bolsa. Sobre o IPI de automóveis, cuja redução acaba no fim do mês, o ministro não quis adiantar se ele continua ou não. Lembrou apenas que é uma política temporária.

No debate de duas horas e meia muita coisa foi conversada, mas no resumo o que se vê é a cena de um país atravessando a crise. Felizmente, uma parte dela já ficou para trás. E o numero que sai hoje faz parte desse passado.

Enquanto isso, no interior do país

Vinicius Torres Freire
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

IBGE mostra que a indústria ainda cortava emprego, horas de trabalho e salários em abril, em particular no interior

MUITO DEVAGAR , quase parando, a indústria brasileira se recupera do naufrágio do trimestre final de 2008, período em que a produção caiu 20%. De janeiro a abril, a recuperação foi de modestos 6,2%, com o que a indústria voltou a um nível de atividade semelhante ao de outubro de 2005.

Mas, no que diz respeito ao emprego, a indústria ainda caminha de volta para o passado, segundo números divulgados ontem pelo IBGE. O nível de emprego (pessoas ocupadas) na indústria cai mês a mês, desde outubro de 2008 -em agosto e setembro, ficara estagnado. No Norte, no Centro-Oeste e no Sul, a situação é ainda pior que a da média nacional.

Os dados são menos animadores que a pesquisa geral de emprego do mesmo IBGE, limitada a seis regiões metropolitanas. As informações não podem obviamente ser comparadas. Mas colocam um grão de sal nas demais estatísticas sobre trabalho, mostram que a deterioração continua nos setores com melhores salários e indica ameaças graves a certas partes da indústria.

A folha de pagamento da indústria caiu em abril (desde agosto, mês a mês, só cresceu em setembro e fevereiro). Em um ano, o nível de emprego caiu 5,6% na média nacional (ante abril de 2008). No conjunto das regiões Norte e Centro-Oeste, caiu 8,8%. No Rio Grande do Sul e no Paraná, idênticos 7,8%. Em Minas Gerais, 7,2%. Em Pernambuco, 7,1%.

No que diz respeito ao total de horas de trabalho pagas, a queda foi de 6,2% no Brasil (em relação a abril de 2008). No conjunto do Norte-Centro-Oeste, a queda foi de horríveis 10,2%. No Sul, de 7,5%.

Em Minas, apanham as indústrias de vestuário e veículos. No Norte-Centro-Oeste, a de madeira e a da Zona Franca (eletroeletrônicos, com queda de 20,4% no pessoal ocupado ante abril de 2008). Por quase todo o país, a indústria de máquinas apresenta declínio no número de horas pagas: em São Paulo (-11,7% ante abril de 2008), Rio Grande do Sul (-10,8%), em Minas (-17,6%).

A indústria espalhou-se mais pelo país depois da abertura econômica, na primeira metade dos anos 1990, e também devido à guerra fiscal (reduções de impostos e outros benefícios oferecidos por Estados menos industrializados) e ao progresso do agronegócio. Tal espraiamento, se reduziu salários, por outro lado elevou salários no interior. É óbvio, faz tempo, que não se pode pensar a indústria com base em dados de meia dúzia de aglomerações urbanas.

Dadas as limitações das nossas estatísticas nacionais de emprego e de renda (faltam recursos ao IBGE), tal mudança dificulta um tanto o acompanhamento das andanças dos indicadores macroeconômicos, das condições sociais e dos infortúnios de setores industriais inteiros.

De mais pontual, os números do IBGE, embora um tanto velhuscos, indicam que o emprego ainda encolhia depois de abril. Antes de contratar, as empresas aumentam o número de horas extras -mas as horas pagas ainda estavam caindo em abril.

O aumento da renda bancado pelo governo talvez compense parte da lerdeza industrial, mas, caso o crédito dos bancos não volte a crescer mais rápido, a recuperação tão cantada como certa tende a ser menos animada que a efusividade vista nos mercados financeiros e no governo.

''Cada vez mais, o lance é São Paulo''

Lauro Lisboa Garcia
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / Caderno 2

Caetano Veloso mata a saudade da cidade, onde faz shows na sexta e no sábado

De uns tempos pra cá, durante a série de shows Obra em Progresso e até a realização do recém-lançado CD Zii e Zie, Caetano Veloso tem falado muito de São Paulo. Na sexta e no sábado, ele vem para matar a declarada saudade da cidade, com duas apresentações no Credicard Hall, ao lado da ótima Banda Cê formada por Pedro Sá (guitarra), Marcelo Callado (baixo) e Ricardo Dias Gomes (bateria). Caetano tinha intenção de fazer temporada no Studio SP, mas não foi possível.

Além das novas canções, ele reinterpreta, no formato de "transambas" ou "transrocks", clássicos do repertório de Clementina de Jesus e outros de sua autoria, como Irene, Eu Sou Neguinha? e Não Identificado. Em entrevista por e-mail ao Estado, ele fala da adaptação do show a espaços diferentes, deixa impressões sobre a cidade hoje ("Cada vez mais é em São Paulo que está o lance"). Ele também reafirma sua aversão a drogas, elogia o novo livro de Chico Buarque, Leite Derramado, fala de velhice e de Wilson Simonal.

Desde que lançou o novo álbum, Caetano parou de escrever no blog Obra em Progresso, que deu muito o que falar. Sobre as críticas ao CD, comenta nesta entrevista: "Não apareceu nada em minha cabeça nem no meu coração que me desse vontade de comentar as poucas coisas que li." Eis Caetano:

Você tinha intenção de fazer o show de lançamento de Zii e Zie em São Paulo, no Studio SP, que é um espaço com "conceito", digamos. Tem boa programação voltada para artistas novos, independentes e criativos. É pequeno, bem representativo da "cena contemporânea". O Credicard Hall, onde você vai se apresentar, é o oposto disso tudo. Sabemos que determinados artistas atraem diferentes públicos em relação aos espaços onde se apresentam por aqui. Essa transferência de lugar frustra suas intenções com esse novo trabalho?

Infelizmente não deu pra rolar no Studio SP. Tinha ficado animado quando Alê (Alexandre Youssef, um dos sócios da casa) propôs. Lugares diferentes dão resultados diferentes. Mas o show é maleável. Já o fizemos no Canecão, num teatro em Maceió, em imensos salões de clubes em Belém e Fortaleza e agora ao ar livre na Bahia (na Concha Acústica do Castro Alves). O mais intenso foi o domingo (retrasado) do Canecão. Mas acho que teatros são o melhor para esse show. Nem o Studio SP nem o Credicard Hall são teatros. Mas um teria o charme do ambiente cool e o outro pode ter a energia dos grandes espetáculos - embora o show seja simples e mesmo modesto. Em suma: adoraria fazer no SP, mas, como não sou um artista novo, independente e criativo e sim um medalhão, acho essas casas de show compatíveis com minha condição.

No último texto de seu blog, você diz que Zii e Zie fica "mais perto de São Paulo", que é o que você deseja agora. Em entrevistas anteriores você disse que tinha saudade daqui. O que o impede de passar uma temporada em São Paulo? Quais são seus interesses sobre a cidade neste momento da carreira/vida pessoal?

Meus filhos vivem e estudam no Rio. Afora isso, nada me impede de me demorar mais em Sampa como desejo. Vou fazer isso. Possivelmente no final da excursão. São Paulo sempre me interessou apaixonadamente, desde que descobri seu encanto e suas vantagens. No tropicalismo, foi crucial o encontro com os Mutantes, os poetas concretos, Rogério Duprat e as plateias mais energéticas e mais inocentes de São Paulo. Hoje em dia, a cidade é mais bonita e sua vocação cosmopolita já supera o provincianismo. Cada vez mais é em São Paulo que está o lance.

O público para música no Rio é bem diferente de São Paulo. Sempre foi, mas parece que tem sido mais. Alguns cantores/cantoras têm dito isso abertamente, até com uma ponta de insatisfação por causa do comportamento dispersivo. Zii e Zie, como Velô, passou pelo teste do público antes de ser gravado. Já que boa parte das canções de seu novo álbum é uma declaração de afeto ao Rio e ao mesmo tempo você diz que tem a ver com a saudade que sente de São Paulo, sem querer levantar qualquer questão bairrista, qual sua opinião a respeito das diferenças entre essas plateias?

A plateia carioca da zona sul é tipicamente uma plateia de corte e de capital federal: ela própria está habituada a ser estrela. O que é bonito e desafiador, além de dar lugar a sutilezas de percepção. A plateia paulistana é a de uma superprovíncia conectada ao grande mundo. Está sempre mais apta a acolher coisas novas sem filtrar muito. O Rio foi o filtro por longo tempo. Sampa começa a ser um outro tipo de filtro.

Histórico, político e mais abrangente

Lauro Lisboa Garcia
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / Caderno 2

É como Caetano Veloso define o show de divulgação do disco Zii e Zie, na comparação com a turnê anterior, do álbum Cê

A seguir a continuação da entrevista com Caetano Veloso, em que ele fala sobre as críticas ao novo álbum ("Não sinto as reações a Zii e Zie) , reforça sua repulsa às drogas ("por mim mesmo, só o álcool"), fala de velhice, Wilson Simonal e o novo livro de Chico Buarque ("O tamanho das frases tem uma quase regularidade agradável, elegante, sonora - e isso vem do trato dele com a canção").

No ano passado, você reagiu duramente contra dois jornalistas de São Paulo por causa das críticas ao seu encontro com Roberto Carlos em homenagem Tom Jobim. As críticas a Zii e Zie também não foram muito entusiasmadas, tanto no Brasil como em outros países, como Portugal. Ao mesmo tempo, os elogios são fartos à banda, e no blog você declarou ter feito o álbum pensando na banda. Que resposta você daria a essas críticas?

Não sinto as reações a Zii e Zie. Não consigo dar importância. As canções circulam na internet desde 2008, todas. Ninguém as conheceu agora. Não concordo com as frases lusitanas que você cita. Mas acharia perfeitamente satisfatório se o disco fosse apenas um bom veículo para a banda mostrar que é boa. Acho Lobão Tem Razão, Lapa, Por Quem e Perdeu canções lindas. E Base de Guatánamo é feita de uma só frase emocionantemente intuída. Não preciso que ninguém concorde com isso. Nem li as críticas todas que saíram no Brasil. Gostei do cara que escreveu dizendo que estamos com síndrome de segundo disco. Não apareceu nada em minha cabeça nem no meu coração que me desse vontade de comentar as poucas coisas que li. Além do mais, aqui não tem Roberto Carlos. Nem eu mantenho blog para ficar escrevendo meias-brincadeiras quase todo dia.

Circulam pela internet frases que você teria dito à revista Poder sobre drogas e mais especificamente sobre cocaína. "Não gosto de drogas. Odeio cocaína. Tudo: odeio a maneira como as pessoas aspiram, odeio o fedor do corpo de quem cheira. Odeio a cultura de economia paralela ilegal que cresceu por causa do consumo da cocaína", são as frases. Você sempre pensou dessa maneira a respeito de drogas?

Sim. Sempre odiei a cocaína. E apenas tolerei o uso de drogas por outras pessoas, mesmo o álcool. Por mim mesmo, só o álcool. Mas nunca me habituei a beber todos os dias. Vinho me faz mal já no meio da primeira taça. E odeio champanhe. Já gostei de vodca e de sakê. Gosto de cerveja mas só bebo na terça-feira de carnaval.

Continuando no tema, recentemente houve mais uma Marcha da Maconha em várias cidades de diversos países. No Rio, o ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, esteve entre os participantes. O que acha de manifestações desse tipo? Legalizar é a solução?

Eu jamais participaria de uma marcha dessas. Sempre fui pela legalização total de todas as drogas, contra o comércio paralelo, o crime organizado nos moldes da época da lei seca nos Estados Unidos. Mas a visão de crianças e mulheres esquálidas nas ruas do centro das nossas cidades por causa do crack me faz recuar até dessa posição tão sensata. Sempre houve e há drogados. O ser humano precisa mudar sua sensação de estar no mundo. Não é só para aplacar a dor. É a curiosidade da criança que roda até ficar tonta: ela tem um pouco de medo, não é só prazer, mas é descoberta. A destrutividade de certas drogas e da economia que as acompanha me leva a olhar sem muita receptividade para esse aspecto da liberdade humana. Idealmente, drogas legais, pagando imposto alto e desestimulada pela educação e pela propaganda pública seria o certo. Mas não vivemos num mundo ideal.

Outro tema que você tem abordado é em relação à velhice, no seu caso, ''a infância da velhice''. Aproveitando que há uma relação entre o processo de criação de Zii e Zie e Velô, lembro que naquele álbum de 1984 havia uma canção chamada O Homem Velho. Hoje você se vê refletido naquela letra? O que ou como é ter ''coragem de saber que é imortal"?

O Homem Velho estava no repertório do show Cê (e recebeu observação profunda e emocionada do crítico do New York Times). Somos todos imortais. Um analista que eu tive, chamado Rubens Molina, me disse isso uma vez numa sessão e eu logo entendi. Meu atual analista, MD Magno, pensa assim também. Para o eu não há morte. Eu era angustiado com a morte quando era jovem. Hoje sou bem menos. Meio que não ligo mais. No show de Zii e Zie não precisa mais estar aquela canção. Ao contrário, músicas doces chegam bem e fazem o show ter um sentido amplo, profundo e comovente. É um show mais histórico, mais político, mais abrangente - o Cê era muito eu comigo mesmo e em poucas palavras, muito anglo-saxão. Este agora é Brasil no mundo, mundo no Brasil, nós na fita, Psirico e Aracy de Almeida. Começa com Viva Paulinho da Viola e termina com Viva Roberto Carlos. Tem Mário Reis e Kassin. Muitas vezes tenho de me controlar para não chorar.

Tem plano de escrever outro livro? Algo em relação a cinema?

Assim, em meio a excursão é que não penso mesmo em fazer planos de outra natureza que não musical. Mas gosto de escrever e sempre sonho em fazer outros filmes.

Já teve tempo de ler Leite Derramado, de Chico Buarque? Se leu, o que achou?

Sim. Gostei muito. O texto de Chico é sempre muito bonito. Adorei não haver parágrafos, como em Panamérica, de Zé Agrippino de Paula. A fabulação equívoca do velho que repete, muda, esquece, confunde prende o leitor. Há o parentesco com Dom Casmurro, na dúvida sobre a mulher. Mas parece ser de outra natureza: algo muito preciso aconteceu àquela mulher e apenas não está explicitado no romance. Permanece a impressão de que Budapeste é, até agora, o mais bem estruturado dos romances da maturidade de Chico. Mas esse agora ainda é novo. E é bonito demais. O tamanho das frases tem uma quase regularidade agradável, elegante, sonora - e isso vem do trato dele com a canção.

Serviço

Caetano Veloso. Credicard Hall (3.800 lugs.). Avenida das Nações Unidas, 17.955, Santo Amaro, tel. 2846-6000. 6.ª e sáb., às 22h. R$ 40 a R$ 180

Dois virgens na noite dos anos 50

Arnaldo Jabor
DEU EM O GLOBO / Segundo caderno

Já escrevi que, em anos remotos, meus professores de sexo foram Bené, o pipoqueiro conquistador de empregadas, e seu ajudante Alfredinho, um aleijado de tórax musculoso e perninhas secas.

Esse texto foi para o celuloide, pois ontem rodei essa cena, no filme A Suprema Felicidade, que estou fazendo no Rio, a antiga cidade delicada e docemente atrasada em que amei e sofri minha adolescência.

Eu era um garoto, querendo aprender sobre os terríveis "pecados" daquele tempo.

Pois bem, numa noite ventosa que fazia silvar a luz da carrocinha de pipocas de Bené? eu ouvi a palavra nova: "Rendevu." A palavra vinha do oblíquo francesismo "maison de rendez-vous" (casa de encontros) ou em português mais clássico: bordel, lupanar ou prostíbulo. Senti que, talvez ali, tudo que me era escondido pela família estaria decifrado no contato com a crueza do pecado. Bené e Alfredinho discorreram longamente sobre os tipos de "rendevus" mitológicos que existiriam, como a casa das menininhas do colégio de freiras, a célebre e inexistente casa dos espelhos e o palácio das mulheres casadas...

Assim, estimulados pela ficção, fui ao meu primeiro "rendevu" com meu amigo Cabeção, também virgem, deixando o Bené e Alfredinho olhando-nos, descrentes, na carrocinha.

E lá fomos nós, topetes penteados com "quina petróleo", camisa nova dobrada na manga curta e pente no bolsinho. Eu não tinha um tostão e Cabeção, com boa mesada, declarou cruelmente que eu iria "só para olhar" e que se alguma mulher me quisesse "no amorzinho", tudo bem; senão, "azar o meu".

Ali na Rua Correa Dutra tinha um "rendevu". Hoje, os bordeis são "sauna relax for men" com nomes em néon tipo "Crazy Love", cheio de meninas de maiô de oncinha mas, naquele tempo, o prostíbulo se disfarçava de "casa de família".

Minha primeira surpresa foi encontrar uma grande sala de visitas, de assoalho encerado, quadros na parede e um silêncio espantoso. Não havia sinal de pecado, nem sombra de "artes do demônio". Em volta da grande sala, como num velório sem caixão, sentavam-se umas 20 mulheres, de perna cruzada, olhando para fregueses de terno, bigodinho, amontoados na porta do corredor, travados em constrangimento, como numa antessala de dentista.

De vez em quando, um deles se adiantava e fazia um sinalzinho disfarçado em direção a uma menina. A moça se erguia com visível enfado, como para um sacrifício; seu "mau humor" fazia parte do ritual - era uma homenagem à virtude perdida. Nós olhávamos o casal subindo, com a mulher na frente, de vestido justo "tomara-que-caia" rebolando profissionalmente.

Nessa época, o animador do bordel era a figura obrigatória do veado, o "pau-para-toda-obra" dos bordéis: gerente e conselheiro das mulheres. O veadinho de bordel era boa dona de casa, fazia as compras, se metia com fregueses e, estranhamente, fazia um tipo coquete, como se fosse uma mocinha virtuosa no meio das "decaídas". Olhava com desprezo os bofes, sempre com a língua afiada para uma resposta: "Sai para lá, cafajeste! Eu sou pobre, mas tive boa educação." E andava pela casa toda, catando sua felicidade entre vasos sujos e papel higiênico, para suportar sua solidão terrível dos anos 50 (bruta época para os gays...) Era faxineiro e mãe substituta para as "mulheres da vida", como diziam minhas tias.

O veadinho passou, atirando-nos a língua aguda: ''Chiiii!... Hoje isto está um jardim de infância...!" A gargalhada da boneca e dos bofes próximos queimou os brios do Cabeção que, com o dinheiro do pai no bolso e um requebro que imitava o Bené, chamou uma moreninha com cara de índia paraense. Sem ar, vi o Cabeção subir as escadas com ela, me jogando um olhar de triunfo.

Fiquei ali embaixo, sem um tostão, esperando o Cabeção perder a virgindade lá em cima. Estava desamparado sem ele, mas tive um surto de coragem e apareci à frente do grupinho de otários atravancando o corredor. As mulheres notaram minha súbita "allure" e me enviaram sorrisinhos e piscadas de olhos. No entanto, cada sorriso e piscadela me doíam fundo, fazendo mais vazio meu bolso, onde só estavam as moedinhas do ônibus, o que me desarmou logo a pose, diante dos rapazes de terno... (ia-se ao puteiro de terno!...)

Foi quando uma das moças, uma lourinha magrela de vestido-saco, se enrabichou por mim... Levantou-se, passou faceira a meu lado e sumiu nos fundos da casa, sorrindo-me, convidativa. Gelou-me a alma sem dinheiro: que fazer?

Fiquei por ali, enquanto a bichinha reclamava da aglomeração de homens: "Ihhh! Isso aqui não é fila do açougue, não !..."

Eu disfarçava a aflição com Continentais sem filtro, apalpando o dinheiro da condução. Nada do Cabeção aparecer. Onde estaria minha lourinha magrela e triste? Fui me esgueirando até uma porta no fundo do corredor. Fingindo de bobo, abri a porta. Era uma cozinha escura onde, numa mesa com linóleo quadriculado, umas putinhas jantavam. Estavam comendo um triste macarrão nos pratos de alumínios.

A lourinha me sorriu: "E aí, não vai fazer um amorzinho?..." Sorri amarelo. "Está servido?" "Não, obrigado, já jantei..."

"Experimenta a sobremesa, então..."

De repente, me vi comendo um pedaço de goiabada num pratinho, mudo de medo. Foi quando ouvi uma gritaria lá em cima. O Cabeção estava descendo a escada atarantado, escorraçado pelo ??viadinho. Saímos de cambulhada, enquanto a índia, com cara guerreira e xavante, berrava do alto da escada: "Não pagou! Pega ele! Que desaforo!" E o veadinho-gerente fazia coro: "Pega ele... Vou navalhar vocês! Eu sou mau! Mau!"

No ônibus, o Cabeção me explicou que brochara e quisera pagar só a metade do "miché"? para indignação da xavante e xingamentos do veado. E no ônibus vazio da madrugada íamos nós: o Cabeção chorando, virgem e humilhado, e eu com gosto de goiabada na boca.