quinta-feira, 25 de junho de 2009

O PENSAMENTO DO DIA

“Diante de feroz repressão, há pouca coisa que a oposição a Ahmadinejad possa fazer porque um desfecho impulsionado pelos protestos populares não moverá um poder que reside acima e além dos votos”.

(Trecho do Editorial do jornal Valor Econômico, hoje)

Esperteza demais

Merval Pereira
DEU EM O GLOBO


Quando o senador José Sarney disse que não fora eleito presidente do Senado “para ficar submetido a cuidar da despensa, ou limpar as lixeiras da cozinha da Casa”, além de revelar uma postura elitista, estava, intencionalmente, pois se trata de um intelectual, se referindo ao que Antonio Gramsci chamava de “pequena política”, a política do dia a dia, política parlamentar, de corredor, de intrigas. Em contraposição à “grande política”, que é o que Sarney disse que lhe cabia fazer, “comandar politicamente a Casa”. O blog Democracia e Novo Reformismo, de Gilvan Cavalcanti de Melo, ligado ao PPS, publicou ontem um texto de Antonio Gramsci que fala da pequena e da alta políticas que tem tudo a ver com nosso momento atual.

A “grande política”, segundo Gramsci, compreende, entre outras funções, “a luta pela destruição, pela defesa, pela conservação de determinadas estruturas orgânicas econômico-sociais”. Já a pequena política trata, dizia Gramsci, das “questões parciais e cotidianas que se apresentam no interior de uma estrutura já estabelecida em decorrência de lutas pela predominância entre as diversas frações de uma mesma classe política”.

Justamente o que há no Senado no momento é uma disputa entre grupos de políticos e burocratas que vivem dessa “pequena política”, e o senador Sarney nunca foi alheio a ela.

Ao contrário, foi ele quem, em 1995, quando presidiu o Senado pela primeira vez, nomeou Agaciel Maia como diretor-geral da Casa, cargo em que este permaneceu até que os escândalos jogados para baixo do tapete azul do Senado estourassem irremediavelmente, revelando uma casta de burocratas milionários acobertados por políticos, que por sua vez eram acobertados pelos burocratas.

Os “decretos secretos” têm essa origem: Agaciel Maia e seus asseclas escondiam nomeações, demissões, faziam favores aos senadores permitindo que ultrapassassem suas cotas, que usassem indevidamente apartamentos funcionais, sem que as evidências fossem publicadas à luz do dia.

Mas eles ficavam com as informações, e passaram também a se utilizar desses decretos para nomear seus próprios protegidos, muitas vezes à revelia dos próprios senadores, como revela o caso de Demóstenes Torres.

Por isso é que Agaciel Maia já disse que nenhum senador pode alegar que não sabia dos atos secretos, pois, segundo garante, todos aceitaram que assim fosse.

O poder burocrático cresceu tanto que mesmo os empréstimos consignados para os funcionários eram controlados por eles, que impunham uma taxa de juros que podia chegar a 4% ao mês, e ficavam com uma parte. Uma das primeiras medidas da nova administração foi baixar a taxa para 1,6% ao mês.

O senador Heráclito Fortes, primeiro-secretário da Mesa do Senado e, a partir de terça-feira, principal responsável pela apuração das irregularidades que vêm sendo reveladas desde o início do ano — quando uma disputa entre PT e PMDB levou pela terceira vez à presidência da Casa o senador José Sarney —, é um homem cosmopolita, mas um político nordestino espirituoso, que faz questão de usar expressões regionais para definir certas situações.

Ontem, por exemplo, para tentar minimizar o que pode ser o mais novo escândalo, com o descobrimento de contas do Senado fora da contabilidade oficial, disse que elas poderiam ter uma explicação prosaica ou significar mesmo um grande escândalo.

E advertiu: “Cachorro mordido de cobra tem medo de salsicha”.

Pois, para usar um linguajar muito próprio dos políticos, especialmente os nordestinos, para definir a situação atual do Senado, podese dizer que ela está tão confusa a ponto de “vaca não reconhecer bezerro”.

Ao abrir mão de tratar dessas “questões pequenas”, como se elas não fizessem parte fundamental de sua atuação política, Sarney vai perdendo aos poucos a autoridade do cargo, pois deixa claro que não tem condições de se afastar de seu “afilhado”, o diretor-geral afastado Agaciel Maia.

Todos os movimentos acontecidos até o momento têm uma única finalidade, a de tentar desmontar o esquema Agaciel. A tal ponto que o senador Heráclito Fortes preferiu escolher dois funcionários que levantaram suspeitas por suas ligações funcionais, mas que têm uma vantagem inestimável hoje: são adversários de Agaciel Maia.

Há, no momento, três grupos de burocratas no Senado em disputa pelo butim de R$ 2,7 bilhões de orçamento: o grupo de Agaciel Maia, o que quer derrubar esse grupo e um terceiro, que espera ficar com as sobras dessa disputa.

O novo diretor-geral, Haroldo Tajra, servidor de carreira, é um piauiense como Heráclito e primo de ninguém menos que o seu suplente, Jesus Tajra. Para a área de Recursos Humanos, foi nomeada Dóris Romariz Peixoto, que já chefiou o gabinete de Roseana Sarney.

O primeiro-secretário Heráclito Fortes sabe que a impressão na opinião pública não foi boa, mas garante que precisava buscar no grupo contrário a Agaciel os funcionários para desfazer o verdadeiro império que ele montou.

Existe hoje cerca de uma centena de gestores dos contratos e terceirizações — onde se suspeita de muitas irregularidades —, todos eles nomeados e treinados por Agaciel Maia nesses 15 anos de poder.

Poder tamanho que, mesmo afastado das funções, ele continua a frequentar o Senado e a usar sua sala, de onde continuava a fazer sua “pequena política”. Ontem foi nomeado um servidor para ocupar aquela sala, na tentativa de dificultar a presença física de Agaciel Maia no Senado.

Como diz um antigo ditado político, desta vez mineiro, e não nordestino, a esperteza, quando excessiva, engole o esperto. É o que está acontecendo no Senado.

Débito de confiança

Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Noves fora, até agora os transgressores do Parlamento têm motivos para achar que as transgressões compensaram. São cinco meses de escândalos praticamente ininterruptos, ora revelando as mazelas do Senado, ora revirando os entulhos da Câmara, e a única perda material registrada foi o afastamento - não a demissão - de quatro diretores do Senado.

Os dois primeiros a serem retirados de cena sob acusação de crimes específicos, Agaciel Maia e João Carlos Zoghbi, foram substituídos pelos dois que foram agora afastados, cujos lugares serão ocupados por um assessor do atual primeiro-secretário e pela ex-chefe de gabinete da filha do presidente do Senado.

Com todo crédito de confiança que possam merecer funcionários contra os quais não pesam suspeições, não contribui para uma boa sinalização de propósitos a indicação de pessoas tão diretamente ligadas aos senadores Heráclito Fortes e José Sarney.

Por mais que atribuam à atual Mesa Diretora o desmonte da rede de ilicitudes, a realidade os desmente.

A resistência de Sarney em agir dispensa maiores apresentações. Heráclito tratou com zombaria as primeiras denúncias, ameaçou, mas não cumpriu a ameaça de divulgar a lista dos jornalistas que se beneficiavam com passagens aéreas do Senado e, à frente da comissão que descobriu a existência dos atos secretos, não denunciou sua nulidade de origem. Preferiu providenciar a publicação com data retroativa à época das edições sigilosas.

Ambos vocalizaram o discurso da conspiração de forças ocultas em prol do fechamento do Congresso e só levaram a história a sério quando sentiram o tamanho da pressão.

Isso não invalida as providências nem desqualifica liminarmente suas decisões. Mas exige mais deles. Exatamente para que seus atos sejam e pareçam legítimos na visão do público - afinal, trata-se, em última análise, de um problema de imagem - é que precisam ser cercadas de todos os cuidados.

Ainda mais que a lisura dos dois primeiros substitutos não resistiu aos quatro meses seguintes de continuidade da crise. Se, de um lado, a nomeação de duas pessoas de ligações tão estreitas estabelece um elo de responsabilidade inequívoco para os dois senadores, de outro, o primeiro-secretário e o presidente do Senado dão margem à interpretação de que pretendem com isso controlar as investigações. E fechar os dutos por onde têm escapado informações.

Caberá a eles desfazer essa má impressão.

Diga-se em favor do Senado que o escândalo tem tido um efeito didático. Se não a maioria, boa parte dos senadores discute o assunto aberta e constantemente no plenário.

Na Câmara não há isso. É como se ali não se ouvisse mais o barulho do turbilhão. O uso indevido de verbas indenizatórias e de passagens aéreas abrigou-se na lei interna de anistia, bem como os prejuízos decorrentes; o caso dos bilhetes vendidos no câmbio negro caiu em providencial esquecimento - a despeito do caráter criminal e do envolvimento de parlamentares - e o processo do deputado do castelo por quebra de decoro parlamentar acaba virando uma contradição em termos diante de perdões tão indecorosos.

O presidente da Câmara, Michel Temer, demorou 20 dias para divulgar a decisão "jurídica" de deixar por isso mesmo o ato do deputado Fábio Faria que usou passagens para transportar artistas a um evento comercial patrocinado por ele.

Gastou R$ 150 mil em pareceres para embasar a decisão e deixou de lado a evidente vantagem financeira obtida pelo deputado em questão. As infrações receberam o mesmo tratamento, nivelando a Casa por baixo.

Quem levou a melhor foram os que teriam levado a pior se as malfeitorias tivessem tido tratadas com o rigor exigido.

Tanto Temer quanto Sarney ao assumirem os respectivos postos consideraram "menores" os temas relativos à modernização e moralização do Poder Legislativo.

Quando questionados a respeito, argumentaram que o momento era de concentrar as atenções na grande obra inaugural da administração do PMDB nas duas Casas do Congresso Nacional: a criação de uma comissão de notáveis para discutir a crise econômica mundial.

Como se viu, a agenda era outra e precisa ser cumprida em sua totalidade.

Dialética

A tese de que o recrudescimento da crise no Senado é um artifício para abafar a CPI da Petrobrás é prima-irmã da ideia de que a CPI da Petrobrás teria o condão de abafar a crise no Senado, e ambas são filhas da simplificação analítica.

Apoteose

O presidente Lula reincidiu no aval à lisura da eleição do iraniano Ahmadinejad, insistiu na defesa dos equívocos de José Sarney e levantou trincheira em prol dos impostos altos. Tudo num dia só. A impressão que dá é que incorporou um Roberto Jefferson e sublimou o mandato.

Na Argentina, a contenção do populismo desenfreado

Jarbas de Holanda
Jornalista

Para compensar a alta rejeição da presidenta Cristina Kirchner em Buenos Aires e outras grandes cidades, como Córdoba, seu governo exacerba o clientelismo e a retórica de envolvimento da população mais carente e pouco informada das periferias urbanas, num enorme esforço para evitar dois dividendos muito negativos para o oficialismo no pleito parlamentar do próximo domingo: a perda de maioria no Senado (de par com o enfraquecimento na Câmara) e a derrota de Néstor Kirchner como candidato a deputado federal pela província de que a capital faz parte. E os oposicionistas estão denunciando a preparação de fraude eleitoral pelo governo para ampliar a votação do marido da presidenta de 1,5 a 3%, propiciando-lhe assim superar o principal adversário, Francisco De Narváez, do bloco União-PRO. A fraude consistiria na falta de cédulas do adversário nas mesas das urnas (com o desvio antecipado delas) e na entrega de vários documentos de identidade, títulos, a um mesmo eleitor, para que ele vote duas ou mais vezes em outras seções.

A enorme queda da popularidade dos Kirchers – da folgada vitória que tiveram na eleição presidencial do fim de 2008 até os baixíssimos índices de aprovação a Cristina (só 19% na capital) que as pesquisas registram nos últimos meses – reflete, sobretudo, a incompatibilidade da prática de um populismo desenfreado numa economia de mercado e numa sociedade que preservam significativos controles institucionais democráticos (divisão de poderes, pluralismo político-partidário, liberdade de imprensa). Incompatibilidade configurada nos danos da subordinação do conjunto das atividades produtivas, dos investimentos privados e das decisões micro e macroeconômicas ao populismo eleitoreiro. E agravada pela completa incapacidade de respostas aos efeitos da crise global.

Eis uma das conseqüências das ações do governo com essas características, destacada na coluna de Sonia Racy, no Estadão, de ontem: “A que ponto chegou a política do casal Kirchner. Enquanto o governo brasileiro lança pacote de R$ 10 bilhões a favor da agricultura, a Argentina se prepara para importar tanto trigo como carne. Seria o mesmo que o Brasil importar café. A informação circulou na imprensa de Buenos Aires: o campo argentino terá em 2010 o pior resultado dos últimos 100 anos. A plantação de trigo será “do mesmo tamanho que a de .... 1902”.

Trata-se de contextos, político-institucional e econômico bem diversos dos da Venezuela de Hugo Chávez. Onde o Executivo já controla o Congresso e o Judiciário, sem enfrentar bloqueios institucionais para a ampla estatização que processa, e sufoca o que resta da liberdade de imprensa (que resiste bravamente). Tudo isso facilitado nos últimos anos pela manipulação dos vultosos recursos gerados pela exportação de petróleo (cujo esgotamento é que poderá implodir o domínio chavista). E de contextos bem diferentes também, felizmente e por motivos de conteúdo oposto, do que acontece no Brasil. Onde a alta popularidade e o sucesso político do presidente Lula se devem ao pragmático mix de seu populismo moderado com a preservação e até o reforço dos fundamentos macroeconômicos pró-mercado que herdou dos governo FHC; à combinação de um questionado projeto desenvolvimentista de maior papel do Estado mas em parceria com grandes grupos empresariais; e ao respeito à institucionalidade e aos valores democráticos da sociedade brasileira (até porque fracassou o projeto do mensalão).

Voltando à Argentina, a derrota em menor ou maior escala dos Kirchners, no próximo domingo, inviabilizará o avanço ou forçará a reversão do populismo irresponsável que eles têm praticado. E representará um importante e oportuníssimo sinal positivo para a defesa e a afirmação da institucionalidade democrática nas Américas do Sul e Central, com vários países ameaçados pela onda de populismo autoritário e radical de Hugo Chávez e seus seguidores ou comparsas.

Por que não te calas?

Eliane Cantanhêde
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


BRASÍLIA - Ok. Já se sabe que o presidente da República descarta a possibilidade de tratar José Sarney como "cidadão comum", condena o "denuncismo", acha que os jornais têm "uma predileção pela desgraça" e que há "coisas mais importantes para discutir". Por isso, conclama: "Não vamos fazer disso uma causa nacional".

Cada um pensa o que quer, e a liberdade de expressão, assegurada pela Constituição brasileira, é um dos pilares de qualquer democracia. Mas, como o presidente da República tem enormes responsabilidades sobre cultura política, bons modos e bons exemplos, o que o cidadão comum quer é a opinião dele sobre a lama que jorra do Senado. O que Lula pensa sobre:

1) 663 atos secretos que favorecem os eleitos dos eleitos e prejudicam os eleitores do país, desviando dinheiro público para inventar cargos e pagar R$ 12.000 para motoristas que dão expediente como mordomos particulares?;

2) A transformação de um dos Poderes da República em cabide de emprego de famílias inteiras, desde filhos e filhas até primas distantes e ex-cunhadas -e em que o número dos que entram pela janela é muito superior aos que chegam legitimamente por concurso?

3) A descoberta de contas paralelas de quase R$ 4 milhões do Senado na Caixa Econômica Federal sem que o distinto público que as abastece fique sabendo?

4) A farra das "verbas indenizatórias" com dinheiro público até para renovar banheiros faraônicos e coisas do gênero?

Afinal, cabe ao presidente da República defender aliados a qualquer custo ou cabe a ele pregar e garantir a moralidade pública, os cofres da União e os interesses dos 200 milhões de brasileiros chamados a pagar a conta?

Como Lula não para de falar sobre o Senado, não vale o argumento da "não intromissão em outro Poder". Ou bem se mete pela moralidade, ou bem faria ficando calado.

Revolução na revolução

Demétrio Magnoli
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


"Ouvi disparos repetidamente enquanto as pessoas entoavam Allahu Akbar (Deus é grande) na região de Niavaran", testemunhou um habitante de Teerã no sábado, enquanto helicópteros da polícia sobrevoavam a capital, milicianos alvejavam manifestantes e jornalistas enganavam a censura transmitindo fotos via Twitter. No Irã, insiste o candidato oposicionista Hossein Mousavi, ocorreu uma fraude eleitoral de proporções quase inconcebíveis.

Uma fraude "normal" não poderia inverter a direção de 15% dos votos. Mousavi acusa o regime de promover uma "mágica": no lugar da totalização dos votos, a comissão central eleitoral simplesmente teria lançado resultados finais arbitrários. A hipótese é sustentada por diversos indícios inconclusivos. Entretanto, a revolta popular adquiriu dinâmica própria, escapando ao controle das lideranças políticas e ameaçando a ordem autoritária dos clérigos.

O Irã almejou ser Ocidente durante os 55 anos da dinastia Pahlevi. Desde o complô, tramado nos EUA, que derrubou o primeiro-ministro nacionalista Mohammed Mossadegh, em 1953, o xá Reza Pahlevi alinhou-se com Washington e consolidou um regime autocrático apoiado no serviço secreto. A Revolução Iraniana de 1979 não foi unicamente, como assevera a lenda, um movimento de reação contra o cosmopolitismo moderno. O levante popular que destruiu a monarquia teve um componente desse tipo, personificado pela liderança carismática do aiatolá Ruhollah Khomeini. Mas teve outro componente, nacionalista e democrático, que reivindicava a restauração da Constituição de 1906, expressão do projeto histórico de conciliação entre o Islã e as liberdades políticas numa Pérsia em busca do seu lugar na modernidade.

O equilíbrio entre os dois componentes durou pouco mais de um ano, até a deposição parlamentar de Bani Sadr, o primeiro presidente da República Islâmica. As instituições políticas iranianas, contudo, continuam a refletir, de modo enviesado, a aliança revolucionária original. O poder de Estado, derivado da vontade divina, concentra-se no líder supremo, posição ocupada pelo aiatolá Ali Khamenei, que é assessorado pelo Conselho de Guardiães. O líder supremo é escolhido pela Assembleia de Especialistas, constituída por juristas islâmicos eleitos a partir de uma lista elaborada pelo Conselho de Guardiães. O poder de governo, derivado da vontade popular, concentra-se no presidente e no Parlamento, mas a soberania do povo é limitada pela prerrogativa do Conselho de Guardiães de vetar candidaturas. República Islâmica: entre os dois termos conflitivos que nomeiam o Irã, o segundo subordina o primeiro.

Num artigo de 1988, o orientalista Bernard Lewis sugeriu que, no lugar da clássica rivalidade entre radicais e moderados, o Irã conheceria um embate entre ideólogos e pragmáticos. Após uma etapa inicial de turbulência, sob o predomínio dos primeiros, a revolução islâmica se aquietaria debaixo da hegemonia dos segundos. Não é pequena a tentação de interpretar desse modo a trajetória oscilante de um país que, depois dos anos loucos de Khomeini, acomodou-se no governo burocrático de Akbar Rafsanjani, tateou o caminho das reformas na presidência de Mohammad Khatami, desviou-se para o "choque de civilizações" de Mahmoud Ahmadinejad e agora volta suas esperanças para o pragmático Mousavi.

Mas Lewis estava errado, pois não quis ver que o Islã não é uma árvore isolada numa clareira da História, mas uma garrafa aberta no oceano do mundo. Desde a Revolução Constitucionalista de 1905, a nação iraniana busca se conectar com a ideia "ocidental" de que as pessoas têm direitos irrevogáveis. Mousavi é realmente um pragmático e no passado, quando primeiro-ministro, fechou uma universidade e assinou ordens cumpridas pela polícia de costumes. Contudo, como Khatami, que hoje o apoia, cruzou uma fronteira proibida e, exprimindo aspirações de milhões de jovens e mulheres, delineou um programa inaceitável para o núcleo teocrático do poder. No seu ano 30, longe de aquietar-se, o movimento revolucionário lança-se contra a censura, a repressão cultural e uma política externa articulada em torno do antissemitismo.

"A doutrina ocidental do direito de resistir a um mau governo é estranha ao pensamento islâmico." A fórmula de Lewis, que está na sua obra mais importante, tolda a visão sobre o que acontece no Irã. O pensador, fonte intelectual da política do governo Bush para o mundo muçulmano, não pode conceber que muçulmanos arrisquem sua vida em nome da liberdade.

Um eco surdo do pensamento de Lewis emanou de ninguém menos que Lula. Logo depois de Ahmadinejad comparar as manifestações a conflitos entre torcidas de futebol, o presidente brasileiro investiu-se da função de boneco de ventríloquo do iraniano e descreveu os eventos de Teerã como "uma coisa entre flamenguistas e vascaínos". De uma estupidez só superada pela sua imoralidade, o comentário veiculava um apoio incondicional ao poder que reprimia os protestos, prendia opositores e censurava meios de comunicação. Mas, inadvertidamente, ele sintetizou uma visão de mundo. De acordo com ela, o "direito de resistir a um mau governo" equivale à baderna, incômoda, mas infantil, de pessoas tomadas por uma paixão cega.

Também na versão oficial do Irã os cidadãos não têm vontade própria - e as manifestações seriam incitadas pelo Ocidente e pela "mídia estrangeira". Lewis registrou que a Revolução Iraniana foi o primeiro movimento revolucionário "midiático" da História, pois Khomeini lançou suas proclamações pela TV, desde o exílio. A revolução na revolução que está em curso não é uma invenção da "mídia estrangeira", mas depende, igualmente, da difusão instantânea e global das notícias. E cada uma das imagens e palavras captadas nas ruas em revolta evidencia uma verdade simples: esses muçulmanos persas não são, afinal, muito diferentes de nós.

Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP.

O incomum

Míriam Leitão
DEU EM O GLOBO

Se uma coluna de economia vai abordar uma crise política, espera-se que ela pondere que a paralisia legislativa, decorrente do escândalo, seja ele qual for, impede decisões que ajudarão a enfrentar problemas econômicos. Mas não é isso que direi. Por um motivo simples: o governo não fez qualquer plano para enfrentar a crise internacional. Segue dando deduções de impostos à sua clientela.

Não há qualquer reforma significativa para se construir uma ponte a uma outra etapa da atividade econômica. Outras crises serviram para avançar. Esta não. O Congresso obviamente não vai votar nada de importante. Se quisesse, haveria reforma tributária realmente relevante para votar? Haveria modernização das relações trabalhistas para criar mais emprego formal? Haveria mudança na estrutura da Previdência que permitisse ao país reduzir o temor de colapso do sistema, diante do inevitável envelhecimento da população? Nada disso está sendo proposto.

O Congresso está minado. Há propostas para aumentar a área a ser desmatada da Amazônia; há um movimento para derrubar um veto presidencial que pode custar R$38 bilhões ao Tesouro; há uma negociação para acabar com o fator previdenciário, a meia sola que foi feita quando não se conseguiu fazer uma reforma da Previdência.

Esta crise política não é importante por razões econômicas, apesar de acontecer no meio de uma turbulência global. Ela é importante porque é política. E porque parece ter aprisionado o país num beco sem saída. O que fazer quando falta um ano e meio para eleições gerais e o Senado não se aguenta em pé? Esta semana caiu mais um diretor-geral da Casa, e as denúncias continuam diárias.

Por não haver saída, os escândalos na dimensão que aconteceram transformaram-se em crise institucional. E não há saída visível. No parlamentarismo, o primeiro-ministro poderia convocar eleições gerais.

O senador José Sarney (PMDB-AP) disse na semana passada um pedaço da verdade. A crise é do Senado, de fato. A outra parte da frase é falsa porque a crise é dele também. Dos dois. Difícil separa-los, pelo fato de Sarney estar na terceira presidência, pelo fato de ele ter pendurado parentes, contraparentes, amigos, parentes de amigos nos vários galhos dessa frondosa árvore. Porque Agaciel Maia é cria dele. Sarney é um símbolo tão completo da compulsão de tomar como privada a coisa pública que parece caricatura.

O que faz um homem rico, que tem uma ilha, uma mansão em frente ao mar e um sítio em área valorizada, aceitar "auxílio-moradia"? O que o faz, tendo empresas repletas de cargos e salários a preencher, pendurar sua parentela no Senado? É tão antiga essa compulsão que em 1986 a imprensa já publicava que a então jovem e sem mandato Roseana Sarney conseguira um emprego no Senado sem ter feito concurso (vejam no blog http://www.miriamleitao.com/).

O que espanta é a falta de necessidade de tudo o que Sarney fez. Se ele precisasse e fizesse uso privado da coisa pública já seria um erro. Não precisando, é bizarro. O presidente Lula sugeriu que olhássemos o passado do senador. Ele tem um passado marcante. Por 25 anos foi um dos biombos civis de um regime que matou, torturou, censurou, cassou, fechou Congresso, e rasgou a Constituição. Sarney permaneceu fiel a ele. Esse é o passado que o distingue.

O que torna também sua biografia diferente é que ele teve uma saída honrosa. A história, generosa, pôs na frente dele uma porta de saída e ele se tornou o primeiro presidente civil e teve chance de ajudar a construir as instituições democráticas. A honra não lhe coube por méritos, mas pela fatalidade. Sarney tomou algumas decisões valiosas, outras nem tanto. Destacaria três feitos: o fim da conta de movimento do Banco do Brasil, que foi o primeiro passo para o avanço fiscal no país; a criação da Secretaria do Tesouro; a criação do Ibama. Seu programa do leite era puro assistencialismo, mas melhorou a saúde de milhões de crianças. Seu melhor programa de estabilização foi perdido por sua incapacidade de fazer o necessário ajuste fiscal.

Seria mais uma presidência, com erros e acertos, mas o que pesou contra foi sua insistência num quinto ano de mandato.

Até isso teria se desculpado se, ao final da extrema e imerecida honra de presidir o Brasil, tivesse ido tratar de bons afazeres, de preferência ajudando a resgatar o seu Maranhão do destino de pobreza, desigualdade e analfabetismo que o aprisiona desde sempre.

Não com cargos políticos, mas com doação do seu tempo e energia. Mas ele permaneceu no poder e foi neste tempo, de lá para cá, que montou as bases do atual compadrio, dos atos secretos, dos desvios inaceitáveis dos quais tantos senadores se aproveitam.

O Senado está doente. O país não se sente mais representado pelo Congresso. As iniciativas de reforma política são grotescas pelo despropósito. O voto em lista que vez por outra ronda a vida nacional é o aprofundamento da rapinagem. O roubo seria do próprio voto. O Senado que pense em propostas construtivas como a de acabar com o suplente, esta excrescência só comparável aos biônicos e que hoje domina pelo menos 20% da Casa. A crise do Senado e dos senadores é profunda. Séria. Incomum.

A política tradicional e Lula, o pragmático

Maria Inês Nassif
DEU NO VALOR ECONÔMICO

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem grande senso prático, como registrou essa semana o presidente americano, Barack Obama. O excesso de pragmatismo, no entanto, incorporou como normalidade ceder (e muito) em negociações - públicas, legislativas - que incluem claros e notórios interesses privados e expor-se constante e publicamente para manter o status quo de setores e personagens ligadas à política tradicional. O senso prático do governo petista acabou resultando numa soma de movimentos contraditórios que em algum momento forçarão Lula a escolhas que tenta evitar.

O resultado dos programas de distribuição de renda foi a surpresa do primeiro mandato. A injeção de recursos em comunidades muito pobres, que tradicionalmente mantiveram as oligarquias regionais com seus votos, provocou uma mudança estrutural. Os ganhos de cidadania nessas regiões, em especial nas de fraca urbanização, minaram o poder da política tradicional. Está se formando uma geração de políticos apartada das lideranças locais e com forte apoio comunitário, ligada a partidos com maior preocupação social. Essa mudança começa a se delinear e se firma numa relação político-eleitoral da qual foi eliminada a mediação dos chefes políticos locais.

O movimento é outro na política institucional. O pragmatismo de Lula evita o confronto direto com os políticos de sua base de apoio. Assim, o mesmo presidente que viabiliza uma revitalização política nas regiões antes dominadas pela política tradicional, retirando o poder de intermediação do seus chefes, reinventa esses políticos quando eles são parceiros na política nacional. Uma vez acomodados na base de apoio parlamentar do governo, os políticos em declínio nas suas bases voltam a elas pelas mãos do presidente.

Cria-se, então, uma realidade em que a política eleitoral é desintermediada pelos programas sociais e enfraquece os chefes locais; eles, no entanto, voltam aos seus antigos redutos, se aliados do governo, como sócios da popularidade do presidente, e disputam os votos de Lula com as novas lideranças que apenas conseguiram espaço, no momento anterior, quando a política tradicional entrou em declínio.

O apoio explícito de Lula ao presidente do Senado, José Sarney, é parte desse pragmatismo político. Os programas sociais do governo são parte muito importante da economia do miserável Maranhão. A popularidade de Lula no Estado, em função disso, foi para as alturas, ao mesmo tempo em que a família Sarney, que domina a política regional há meio século, entrou em declínio político. Em 2006, Roseana Sarney (PMDB) perdeu as eleições para o oposicionista Jackson Lago (PDT) - retomou o poder recentemente não pelo voto, mas com a ajuda de uma Justiça que quase nunca falha para o grupo político, nem no Maranhão, nem no Amapá, o "puxadinho" oligárquico da família. Quando o brilho do patriarca José Sarney começou a se apagar nacionalmente, devido a sucessivos escândalos, o presidente passou a sustentá-lo. "Sarney tem história no Brasil suficiente para não ser tratado como se fosse uma pessoa comum", afirmou Lula, perigosamente, separando o mundo entre aqueles que podem ser responsabilizados por seus erros e os que ganham o direito de não o serem. O presidente tratou da mesma forma perigosa as denúncias contra Sarney e os desmandos das direções do Senado como "coisas secundárias".

Assim, o mesmo governo petista que balançou politicamente o grupo Sarney no Maranhão, quando desintermediou a relação da população pobre com a administração federal, permite que, num segundo momento, o mesmo grupo retome o controle sobre seus antigos redutos, oferecendo uma "sociedade" nos votos destinados a Lula devido aos programas sociais.

Outro exemplo é a relação de Lula com a bancada ruralista, que é muito forte no PMDB. O governo petista tem cedido reiteradamente à bancada. É um outro lado do pragmatismo presidencial. O governo que redefine estruturalmente o jogo de forças na base social, via programas de transferência de renda, jamais comprou uma briga com a grande propriedade. Independente dos vetos que Lula venha a fazer na MP da Grilagem, a desenvoltura com que agiu a bancada ruralista, no plenário da Câmara e do Senado, para impor alterações muito favoráveis ao agronegócio que prosperou em terras públicas da Amazônia Legal apenas encontrou espaço porque o governo manteve uma posição em regra omissa em relação à questão fundiária. As mudanças feitas na MP 458, no Congresso, teriam o poder de legalizar enormes propriedades como se fossem simples posses. De acordo com as alterações feitas, a ocupação de uma propriedade de 15 quilômetros de terras públicas, ou 1,5 mil hectares - o correspondente a 1.389 campos de futebol - seria enquadrável na definição que a lei dá à posse de terra, ou seja, o uso da terra pública por uma pessoa que vive da propriedade para prover a sua sobrevivência e de sua família - e portanto passível de legalização. Da mesma forma, a bancada incluiu na MP a possibilidade de legalização de terras de proprietários que não moram na região, tem mais de uma propriedade ou que mantiveram terras nas mãos de laranjas.

Nesses movimentos contraditórios, Lula tem o poder de dar uma contribuição à modernização da política brasileira com uma mão e tirar esses avanços com a outra. O resultado final disso será conhecido no final de seu segundo mandato, com grande risco de sair do governo sem ter alterado de forma substancial os arcaismos políticos que sobrevivem nos rincões do país. Na política não há milagres: não existem mudanças efetivas se o governante não correr alguns riscos.

Maria Inês Nassif é editora de Opinião. Escreve às quintas-feiras

Polícia para o golpe no Senado

Vinicius Torres Freire
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Um Poder era manipulado pelo conluio de burocratas com senadores; MP e PF têm de entrar a fundo no caso

ESTÁ CLARO agora que senadores, não se sabe quantos muitos, eram pelo menos cúmplices e beneficiários da malversação dos recursos postos à disposição do Senado. Os benefícios eram pecuniários ou indiretos, na forma de serviços ou de empregos para parentes e clientelas. Eram também benefícios políticos, na forma de sustentação de um esquema de favores e financiamento de agregados, na manutenção do pessoal de "escritórios" políticos ou similares.

Mais importante, eram benefícios políticos num sentido maior e mais grave: um grupo de burocratas que servia de esquadrão de apoio à cúpula dos senadores, àqueles que mandam na casa faz 15 anos. Por meio de favores e, aparentemente, chantagens desse grupo de burocratas, a cúpula do Senado manipulava recursos financeiros e administrativos a fim de manter seu poder na Casa, sobre a bancada parlamentar e, assim, sobre parte da República.Isso é tanto um caso vulgar de polícia, como, difícil de qualificar, um golpe institucional crônico, digamos. Além de privatizar bens públicos para benefício diretamente pessoal, o conluio de senadores de cúpula com a burocracia eternizada no comando administrativo do Senado servia à manipulação institucional.

No caso, manipulação de uma bancada que aprova emendas constitucionais, leis, CPIs, endividamento de entes federativos etc.

Mandantes, cúmplices, omissos ou com telhado de vidro, os senadores por ora pretendem limitar os danos do escândalo. Derrubam apenas, a muito custo, burocratas da bandalha. Não há, talvez nem possa haver, dada a amplitude do escândalo, investigação no sentido de cortar cabeças no Senado. Não há, pois, outro meio de fazer uma limpa na casa que não seja chamar a polícia, medida que conta com o apoio dos senadores Cristovam Buarque (PDT) e Álvaro Dias (PSDB), pelo menos. O Ministério Público, mas também a Polícia Federal, tem de agir de modo muito mais enérgico. Sem investigação independente, os senadores vão privatizar também a Justiça.

O Ministério Público do Distrito Federal instaurou inquérito para investigar a bandalha dos atos secretos do Senado, assunto que será conduzido pela procuradora Anna Carolina Resende Maia, que já investiga o uso irregular de passagens aéreas por parlamentares. O procurador do Ministério Público no TCU, Marinus Marsico, investiga também os atos secretos. A procuradora da República Eliana Pires Rocha investiga as exorbitâncias das despesas médicas do Senado. Mas ainda é pouco, muito pouco.

É preciso instaurar inquéritos para investigar toda a cadeia de comando que criou benefícios tanto para burocratas como para senadores. É preciso investigar a denúncia de chantagem feita pelo senador Arthur Virgílio (PSDB). É preciso investigar ainda a possível compra de votos e lealdades, paga com os favores da direção do Senado. Não se trata de mera malversação episódica de fundos ou de desvios administrativos. Trata-se de um caso de privatização de recursos públicos com o objetivo de manipular ações de um Poder da República. Como observou Janio de Freitas, nesta Folha, trata-se talvez de um caso ainda mais grave que o do mensalão.