domingo, 17 de janeiro de 2010

Entrevista:''Democracia direta é impossível de realizar''

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Para Rodrigues, conceito que inspira conferências nacionais é forma de uma minoria organizada mobilizar a maioria

Clarissa Oliveira

Usado para fundamentar as conferências nacionais promovidas pelo governo, o conceito de democracia direta ainda custa a ganhar a adesão de alguns estudiosos, a exemplo do cientista político Leôncio Martins Rodrigues. Para ele, a proposta não apenas é "impossível de ser realizada", como representa mais uma fórmula para que uma minoria organizada mobilize a maioria. Foi por trás da tese de contato direto de um líder com a população, argumenta, que nasceram ideologias como o fascismo.

Rodrigues admite que a democracia representativa carrega defeitos e se desmoraliza diante das sucessivas denúncias de corrupção. "Mas as deficiências, na minha opinião, são menores do que se teria na chamada democracia direta."

A exemplo do Plano Nacional de Direitos Humanos, textos surgidos em conferências nacionais causam polêmica. Mas eles representam o que a população quer?

A população tem muito pouca informação a respeito desses textos. Esse programa, em especial, nem membros do governo leram, nem o próprio presidente. E 99% da população não tem interesse, não sabe do que se trata. Há várias leituras possíveis. A primeira é como o programa se apresenta, prometendo atender à população, aumentar a democracia, só bondades. A segunda é o que o programa realmente buscava, antes da intervenção do Lula: aumentar o poder do Estado sobre a sociedade e a força da Secretaria de Direitos Humanos. Seguramente, a imensa maioria das propostas não seria levada à prática. Se fosse, significaria aumentar enormemente a burocracia, o número de empregados e complicar seu funcionamento.

O sr. diz que há uma vontade de aumentar o controle da sociedade pelo Estado. As conferências serviriam de justificativa para isso?

A atuação, valores e intenções de grupos e partidos da esquerda de tipo socialista levam à diminuição da iniciativa da sociedade - embora eles digam o contrário - e ao aumento do controle do partido sobre a economia e todos os aspectos da sociedade. Devemos entender o programa como parte de um esforço do setor de esquerda para impor uma hegemonia ideológica. A esquerda perdeu a guerra militar, mas está ganhando a guerra ideológica.

Essa guerra ideológica está sendo inserida nos textos das conferências nacionais com a roupagem de democracia direta?

Democracia é uma coisa complicada, não é fácil definir. Não há democracia total. A França, antes do governo Vichy, era um governo que dizíamos democrático. Só que mulheres não tinham direito de voto. Nos Estados Unidos, até 1961, 1962, diziam ser uma democracia. Havia restrições à participação dos negros. Vivemos no Brasil situações em que havia democracia, mas a maioria da população não votava. Essa ideia de democracia direta é impossível de ser realizada. A ação política é uma ação de minorias organizadas, que tentam mobilizar maiorias. Afirmam que falam em nome dessa maioria, mas é discutível. Por exemplo, a Comissão da Verdade é um simplismo. Um nome bonito, aparentemente nobre. Um pequeno grupo na luta revolucionária não lutava pela democracia. Queria impor o socialismo. Não sei como ocorreria na prática. Grupos de esquerda não se punham de acordo e provavelmente teríamos um conflito entre eles, como houve em países onde o regime socialista se instalou. Em parte em consequência do próprio retorno à democracia, está havendo uma hegemonia das ideologias de esquerda. No governo Lula é mais complicado, não houve revolução socialista. Para governar, é preciso compor com várias forças. Lula não era socialista, nunca foi. Sempre foi um pragmático. Grupos de esquerda que tinham participado da luta armada, foram presos, desmantelados ou se refugiaram no exterior e voltaram. E fazem pressão dentro do governo.

O presidente tenta dar voz a setores da esquerda que o apoiaram mas não são contemplados por políticas do governo? Afinal, o governo endossa textos que encontram resistência no próprio governo.

Parte das ideias do programa (de Direitos Humanos) responde à ideologia e a um modo de pensar de setores da esquerda. Há modismos no texto, análises chinfrins, primitivas. Uma nova elite de origem plebeia ascendeu com o Lula. Chegou ao poder vindo de baixo. Essa elite não eliminou a outra, ao contrário, fez acordos. Pelo impulso do Lula, que tinha consciência de que precisaria de acordos, com Sarney, Renan. Houve aproximação com a elite conservadora. Engraçado, não houve aliança com a elite moderna, intelectualizada, agrupada em torno do Fernando Henrique.

Mas o discurso da participação direta da população no governo é real ou é de fachada?

Existem certas tendências no PT que acreditam efetivamente que a democracia direta seria "mais democrática" do que a democracia representativa. Mas essa ideia do contato do líder direto com a população e a crítica à democracia representativa, ao parlamentarismo, foi a base do fascismo. O fascismo está muito ligado a isso, ao líder popular de classe média, como o Mussolini.

É uma forma de controle da massa sem intermediários?

Esse corpo intermediário, com regras definidas, nunca representa toda a população e sempre se pode encontrar falhas. Mas as deficiências, na minha opinião, são menores do que se teria na chamada democracia direta. A massa, no seu conjunto, é desorganizada. Se isso acontece, temos um líder com muito mais domínio sobre a população, sobre a massa, do que sobre o Parlamento. Tanto é que a primeira coisa que candidatos a ditador fazem é liquidar o Parlamento. Hitler fechou o Reichstag, Mussolini a Câmara de Deputados. Até na União Soviética a ideia era "todo o poder aos sovietes". Não aconteceu nada disso. Até agora, não se encontrou para a democracia solução melhor do que esses organismos intermediários, com todos os defeitos que possam ter. Infelizmente, no Brasil, representantes do povo são muito ruins. E revelações de corrupção contribuem muito para desmoralizar a democracia representativa.

Não é positivo buscar um equilíbrio, dar um elemento de participação popular adicional no governo?

Não sei. Às vezes, se pensa em recorrer a plebiscitos. O que se tem são minorias que tentam influenciar a população. Usadas com alguma moderação, essas formas de participação direta podem ter um papel importante. Mas o problema do Brasil não está nas leis. Está em fazer cumprir as leis. Penso que poderia ser importante que a população se manifestasse sobre alguns assuntos. Em outros, mesmo a opinião pública - um grupo mais qualificado ou informado - não sabe das coisas.

Programas nascidos das conferências nacionais têm incluído sucessivamente propostas de controle da mídia. Como o sr. reage?

Há uma forte tendência da esquerda em querer um controle da mídia privada. Para contrabalançar, são favoráveis a uma mídia controlada pelo Estado. Acho muito má essa ideia. Os proprietários privados não têm o poder que parecem ter. E, quando se fala em mídia estatal, ela está sob o controle de um grupo político. Não seria mau se pudéssemos ter alguma coisa como uma mídia estatal competente, como a BBC de Londres. Mas a ideia de que a imprensa privada, a mídia privada, jornais e televisão modelam o pensamento dos brasileiros é um equívoco.

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