DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS
PT e PSDB reivindicam a coroa esquerdista, mas não se dispõem a dar, de fato, uma voz aos pobres
A política brasileira tende para o bipartidarismo, uma luta entre PSDB e PT, tendo, porém, no meio o enorme fantasma guloso do PMDB. Com os pés nas duas canoas, esse partido-ônibus impede que aqueles outros dois encontrem um perfil ideológico mais definido. A ideologia fica a cargo do PV, antes de tudo para saciar a voz de nossa consciência. Marina Silva não é alternativa de governo.
A tendência para o centro não é privilégio nosso. Não foi o que aconteceu com a eleição de Barack Obama, que misturou democratas e republicanos num mesmo caldo renovador? Mas, como estamos vendo, a indefinição dura pouco, pois os republicanos e a direita americana voltam a ganhar terreno. Pagando, contudo, o preço da indefinição. Os eleitores de Massachusetts substituíram a régua liberal do senador Teddy Kennedy por um modelo da american beauty.
No Brasil, onde ainda é feio se declarar de direita, PSDB e PT disputam a coroa da esquerda. O senador Sérgio Guerra, presidente do PSDB, em entrevista à Veja semanas atrás, reivindicou essa coroa para seu partido, que se proporia de fato a alterar certas regras do funcionamento do sistema capitalista. Obviamente não diz como. Em contrapartida, o governo, que ainda se diz petista, se prepara para transformar Dilma Rousseff na garantia de continuidade de um programa reformista. Somente com ela seria mantido o esforço de trazer as classes mais pobres da população para uma sociedade de consumo.
Nisso é ajudado por alguns intelectuais. Se houve melhoria no consumo das classes mais pobres no governo de FHC, argumentam eles, isso se deu em virtude da política macroeconômica de combate à inflação, enquanto o aumento de poder econômico dessas classes, no governo Lula, ocorreu graças à determinação e visão pessoal do presidente, resultado de seu compromisso com os pobres e com suas origens populares.
Mas o cerne de uma política de esquerda se resume em tornar menos pobres as classes desvalidas ou em ajudar para que elas adquiram maior voz e poder? Ditaduras podem criar empregos e aumentar o consumo dessas classes. É o que se verifica desde o fascismo até a política de Saddam Hussein. Mais importante, contudo, do ponto de vista político, é a transferência de poder, criar partidos e associações de massa onde essas possam se expressar e fazer valer seus pontos de vista. Justiça social como conquista, não como dádiva.
Isso é tudo que o lulismo não está deixando acontecer. Mas e o "terceiro setor", os programas de democracia deliberativa e os orçamentos participativos? A experiência tem mostrado que essas inovações somente funcionam com a presença de representantes do governo, que fazem a ponte entre as reivindicações populares e os processos de decisão.
Ora, quando os governistas aparecem nesses órgãos é quase sempre para manipular e evitar que vozes dissidentes se façam ouvir.
Num artigo de grande repercussão, André Singer mostra que o lulismo conseguiu atingir as massas mais pobres - o subpropletariado tal como foi conceituado por Paul Singer - graças a uma política explícita de recomposição de renda, em particular com o programa Bolsa-Família. Aqueles que tinham votado, por exemplo, em Fernando Collor de Mello passaram a apoiar o presidente Lula, criando assim a base popular de sua sustentação política.
Cabe, entretanto, retirar as últimas consequências dessa análise. A massa desorganizada politicamente se faz ouvir pelo bonapartismo, por uma ditadura basicamente conservadora que, para fazer avançar os grandes capitais, aceita pagar preço razoável por sua sustentação política. Esse é o clássico esquema de interpretação desenvolvido por Marx no 18 Brumário, sendo conveniente que nos lembremos do texto por inteiro. Um líder provedor não assenta as bases de uma política profundamente transformadora.
Desde suas origens, no século 19, a esquerda hesitou entre privilegiar a igualdade ou a liberdade. O conceito marxista de ditadura do proletariado esperava resolver a tensão, na medida em que a ditadura - no sentido romano de delegação temporária do poder a um militar - de uma classe majoritária seria menos coercitiva que o centralismo representativo da democracia formal. Mas estamos cansados de saber que, em nome da ditadura do proletariado, sempre tem se instalado a discrição burocrática do comitê central.
No fim de sua vida, Engels já percebera que o advento do sufrágio universal alterava o funcionamento da democracia formal burguesa. Hoje fica patente que o reforço dos mecanismos democráticos se torna condição sine qua non de uma política verdadeiramente popular. Se eles não funcionam, não é porque são sorrateiramente subvertidos? Importa abrir o espaço público, criar procedimentos de discussão, assim como evitar a cristalização do poder nas mãos de grupos ensimesmados.
Acredito que uma boa análise das diferenças entre as políticas de Hugo Chávez e de Evo Morales apontaria nesse sentido. Enquanto o primeiro, alegando luta contra o predomínio burguês, não perde uma oportunidade de cercear as liberdades democráticas, o segundo faz todo o possível para que as populações indígenas tenham voz em seu governo.
Mas voltemos aos nossos problemas. Não está definido se o lulismo será bonapartista. Tudo depende de como se processará a sucessão. Se Dilma Rousseff vencer, a despeito dos sinais já dados de seu comportamento autoritário, como vai lidar com os soluços "à esquerda" do atual governo? Além disso, que compromissos manterá com PMDB? Como os velhos caciques da política nacional, os representantes do atraso, coabitarão com uma política estatizante? Sem dificuldades, a não ser que o PT se transforme. Se isso não acontecer, os velhos caciques simplesmente compartilharão dos cargos e das benesses do poder sem criar tensões que possam aprofundar novos ideais democráticos.
Por isso preocupam os novos-velhos rumos do PT. Logo depois da crise do "mensalão" o partido foi sacudido por um movimento de renovação. Quantos não declararam que o partido deveria ser refundado? Essas vozes, contudo, se calaram e os velhos burocratas, aliados a sindicalistas encastoados no aparelho do Estado, voltaram à sua direção. Quais são os compromissos desse grupo com a democracia ainda não o sabemos, mas podemos presumir que não são os mais duradouros.
Por sua vez, pouco adianta o PSDB se proclamar herdeiro da esquerda. Também ele ostenta seus caciques tradicionalistas e ainda não se definiu diante do lulismo. Se o presidente Lula conseguir impor uma campanha plebiscitária, de uma coisa estamos seguros: a questão da democracia não será posta em pauta. Pelo contrário, a tendência é acusar o adversário de ser contra o enriquecimento dos mais pobres e, na disputa, cada parte vai se apresentar como o melhor fazedor.
Note-se a última declaração de João Pedro Stédile, da coordenação nacional do MST, no Fórum Social Mundial. Para ele, José Serra reinstalaria o "neoliberalismo" do governo de FHC. Antes de qualquer acusação desse tipo, não seria importante, contudo, examinar o que foi o dito "neoliberalismo" desse governo e quais as possibilidades de uma política "neoliberal" pós-crise mundial? Ora, mesmo se o governo de FHC fosse basicamente liberal, todo o mundo sabe que José Serra lutou contra essa tendência da equipe econômica. Além do mais, quais são as contribuições do MST para o aprofundamento da democracia no País?
Tudo parece indicar que a campanha, que agora se inicia, será sangrenta e tenderá a ocultar os verdadeiros desafios que atualmente enfrentamos. A tendência é forçar cada candidato a se apresentar como o defensor do bolso do pobre, esvaziando o papel político que ele possa ter. Ora, o maior obstáculo a ser vencido para que tenhamos uma sociedade mais justa e igualitária não vem da péssima qualidade da democracia brasileira? Importa criar possibilidades para que as massas populares tenham voz, capacidade de decidir, controlar e higienizar os meandros do poder. Aprofundar a democracia, eis a questão. Somente assim a oposição entre esquerda e direita terá sentido.
Professor emérito de filosofia da USP e pesquisador do Cebrap. É autor, entre outros, de Trabalho e Reflexão e Origens da Dialética do Trabalho
PT e PSDB reivindicam a coroa esquerdista, mas não se dispõem a dar, de fato, uma voz aos pobres
A política brasileira tende para o bipartidarismo, uma luta entre PSDB e PT, tendo, porém, no meio o enorme fantasma guloso do PMDB. Com os pés nas duas canoas, esse partido-ônibus impede que aqueles outros dois encontrem um perfil ideológico mais definido. A ideologia fica a cargo do PV, antes de tudo para saciar a voz de nossa consciência. Marina Silva não é alternativa de governo.
A tendência para o centro não é privilégio nosso. Não foi o que aconteceu com a eleição de Barack Obama, que misturou democratas e republicanos num mesmo caldo renovador? Mas, como estamos vendo, a indefinição dura pouco, pois os republicanos e a direita americana voltam a ganhar terreno. Pagando, contudo, o preço da indefinição. Os eleitores de Massachusetts substituíram a régua liberal do senador Teddy Kennedy por um modelo da american beauty.
No Brasil, onde ainda é feio se declarar de direita, PSDB e PT disputam a coroa da esquerda. O senador Sérgio Guerra, presidente do PSDB, em entrevista à Veja semanas atrás, reivindicou essa coroa para seu partido, que se proporia de fato a alterar certas regras do funcionamento do sistema capitalista. Obviamente não diz como. Em contrapartida, o governo, que ainda se diz petista, se prepara para transformar Dilma Rousseff na garantia de continuidade de um programa reformista. Somente com ela seria mantido o esforço de trazer as classes mais pobres da população para uma sociedade de consumo.
Nisso é ajudado por alguns intelectuais. Se houve melhoria no consumo das classes mais pobres no governo de FHC, argumentam eles, isso se deu em virtude da política macroeconômica de combate à inflação, enquanto o aumento de poder econômico dessas classes, no governo Lula, ocorreu graças à determinação e visão pessoal do presidente, resultado de seu compromisso com os pobres e com suas origens populares.
Mas o cerne de uma política de esquerda se resume em tornar menos pobres as classes desvalidas ou em ajudar para que elas adquiram maior voz e poder? Ditaduras podem criar empregos e aumentar o consumo dessas classes. É o que se verifica desde o fascismo até a política de Saddam Hussein. Mais importante, contudo, do ponto de vista político, é a transferência de poder, criar partidos e associações de massa onde essas possam se expressar e fazer valer seus pontos de vista. Justiça social como conquista, não como dádiva.
Isso é tudo que o lulismo não está deixando acontecer. Mas e o "terceiro setor", os programas de democracia deliberativa e os orçamentos participativos? A experiência tem mostrado que essas inovações somente funcionam com a presença de representantes do governo, que fazem a ponte entre as reivindicações populares e os processos de decisão.
Ora, quando os governistas aparecem nesses órgãos é quase sempre para manipular e evitar que vozes dissidentes se façam ouvir.
Num artigo de grande repercussão, André Singer mostra que o lulismo conseguiu atingir as massas mais pobres - o subpropletariado tal como foi conceituado por Paul Singer - graças a uma política explícita de recomposição de renda, em particular com o programa Bolsa-Família. Aqueles que tinham votado, por exemplo, em Fernando Collor de Mello passaram a apoiar o presidente Lula, criando assim a base popular de sua sustentação política.
Cabe, entretanto, retirar as últimas consequências dessa análise. A massa desorganizada politicamente se faz ouvir pelo bonapartismo, por uma ditadura basicamente conservadora que, para fazer avançar os grandes capitais, aceita pagar preço razoável por sua sustentação política. Esse é o clássico esquema de interpretação desenvolvido por Marx no 18 Brumário, sendo conveniente que nos lembremos do texto por inteiro. Um líder provedor não assenta as bases de uma política profundamente transformadora.
Desde suas origens, no século 19, a esquerda hesitou entre privilegiar a igualdade ou a liberdade. O conceito marxista de ditadura do proletariado esperava resolver a tensão, na medida em que a ditadura - no sentido romano de delegação temporária do poder a um militar - de uma classe majoritária seria menos coercitiva que o centralismo representativo da democracia formal. Mas estamos cansados de saber que, em nome da ditadura do proletariado, sempre tem se instalado a discrição burocrática do comitê central.
No fim de sua vida, Engels já percebera que o advento do sufrágio universal alterava o funcionamento da democracia formal burguesa. Hoje fica patente que o reforço dos mecanismos democráticos se torna condição sine qua non de uma política verdadeiramente popular. Se eles não funcionam, não é porque são sorrateiramente subvertidos? Importa abrir o espaço público, criar procedimentos de discussão, assim como evitar a cristalização do poder nas mãos de grupos ensimesmados.
Acredito que uma boa análise das diferenças entre as políticas de Hugo Chávez e de Evo Morales apontaria nesse sentido. Enquanto o primeiro, alegando luta contra o predomínio burguês, não perde uma oportunidade de cercear as liberdades democráticas, o segundo faz todo o possível para que as populações indígenas tenham voz em seu governo.
Mas voltemos aos nossos problemas. Não está definido se o lulismo será bonapartista. Tudo depende de como se processará a sucessão. Se Dilma Rousseff vencer, a despeito dos sinais já dados de seu comportamento autoritário, como vai lidar com os soluços "à esquerda" do atual governo? Além disso, que compromissos manterá com PMDB? Como os velhos caciques da política nacional, os representantes do atraso, coabitarão com uma política estatizante? Sem dificuldades, a não ser que o PT se transforme. Se isso não acontecer, os velhos caciques simplesmente compartilharão dos cargos e das benesses do poder sem criar tensões que possam aprofundar novos ideais democráticos.
Por isso preocupam os novos-velhos rumos do PT. Logo depois da crise do "mensalão" o partido foi sacudido por um movimento de renovação. Quantos não declararam que o partido deveria ser refundado? Essas vozes, contudo, se calaram e os velhos burocratas, aliados a sindicalistas encastoados no aparelho do Estado, voltaram à sua direção. Quais são os compromissos desse grupo com a democracia ainda não o sabemos, mas podemos presumir que não são os mais duradouros.
Por sua vez, pouco adianta o PSDB se proclamar herdeiro da esquerda. Também ele ostenta seus caciques tradicionalistas e ainda não se definiu diante do lulismo. Se o presidente Lula conseguir impor uma campanha plebiscitária, de uma coisa estamos seguros: a questão da democracia não será posta em pauta. Pelo contrário, a tendência é acusar o adversário de ser contra o enriquecimento dos mais pobres e, na disputa, cada parte vai se apresentar como o melhor fazedor.
Note-se a última declaração de João Pedro Stédile, da coordenação nacional do MST, no Fórum Social Mundial. Para ele, José Serra reinstalaria o "neoliberalismo" do governo de FHC. Antes de qualquer acusação desse tipo, não seria importante, contudo, examinar o que foi o dito "neoliberalismo" desse governo e quais as possibilidades de uma política "neoliberal" pós-crise mundial? Ora, mesmo se o governo de FHC fosse basicamente liberal, todo o mundo sabe que José Serra lutou contra essa tendência da equipe econômica. Além do mais, quais são as contribuições do MST para o aprofundamento da democracia no País?
Tudo parece indicar que a campanha, que agora se inicia, será sangrenta e tenderá a ocultar os verdadeiros desafios que atualmente enfrentamos. A tendência é forçar cada candidato a se apresentar como o defensor do bolso do pobre, esvaziando o papel político que ele possa ter. Ora, o maior obstáculo a ser vencido para que tenhamos uma sociedade mais justa e igualitária não vem da péssima qualidade da democracia brasileira? Importa criar possibilidades para que as massas populares tenham voz, capacidade de decidir, controlar e higienizar os meandros do poder. Aprofundar a democracia, eis a questão. Somente assim a oposição entre esquerda e direita terá sentido.
Professor emérito de filosofia da USP e pesquisador do Cebrap. É autor, entre outros, de Trabalho e Reflexão e Origens da Dialética do Trabalho
Obrigado, Professor Gianotti, pelo maravilhoso texto!
ResponderExcluirMarco Túlio de Carvalho Rocha.