quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Maria Inês Nassif :: Uma ativa fábrica de crises militares

DEU NO VALOR ECONÔMICO

A crise militar fabricada em torno do 3º Programa Nacional de Direitos Humanos tem sabor artificial. A história da elaboração do PNDH-III não justifica toda a comoção criada em torno de sua divulgação, muito menos uma carta de demissão coletiva do ministro da Defesa, Nelson Jobim, e dos comandantes militares das três Forças. A ação de governo foi definida em negociações que envolveram civis e militares e em que estes exerceram todo o poder de pressão a que tinham direito, com relativo êxito.

O PNDH-III é produto de um intenso trabalho de articulação interna do governo, feito desde a 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos, realizada entre 15 e 18 de dezembro de 2008. Basta comparar as propostas da conferência com o texto final do programa para verificar que os militares tiveram poder de voto e veto e o exerceram com eficiência. O relatório final é muito mais arrojado do que o programa anunciado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva às vésperas do Natal, embora se registre algum avanço deste em relação aos PNDHs I e II - o primeiro, aliás, assinado pelo então ministro da Justiça do presidente Fernando Henrique Cardoso, Nelson Jobim, em 1996.

Comparados os textos do relatório final da 11ª Conferência e o finalmente adotado pelo PNDH-III, é possível verificar que foram feitas mudanças substantivas no Eixo 7, que define as diretrizes referentes ao "Direito à Memória e à Verdade". Pelo que vem sendo divulgado desde julho, as alterações que representam um recuo em relação ao relatório final da conferência são as que decorrem das negociações feitas entre a Secretaria Especial de Direitos Humanos - que defendia uma ação mais radical de identificação dos integrantes do regime ditatorial que torturaram e mataram opositores - e o Ministério da Defesa, com a mediação da Casa Civil. Segundo declarou o ministro Paulo Vannucchi, o texto final não foi o de seus sonhos, nem o dos sonhos de Jobim, mas o resultado de concessões de ambos os lados, ao longo de negociações que duraram um ano. Supunha-se que as diretrizes anunciadas pelo presidente Lula no dia 21 de dezembro já era algo acordado pelas partes em disputa.

Nessas circunstâncias, como interpretar a nova rodada de pressões feita pelo Ministério de Defesa e pelos comandos das Forças Armadas? Das duas, uma: ou o ministro da Defesa e seus comandantes estão querendo mostrar ao poder civil que assuntos relativos ao passado devem se submeter exclusivamente aos seus interesses, ou Jobim negociou com os seus colegas da Secretaria Especial de Direitos Humanos e da Casa Civil sem que sua autoridade para isso tenha sido reconhecida pelos comandantes militares que teoricamente a ele estão submetidos. No meio do ano, as negociações em torno da Comissão da Verdade pleiteada pela Secretaria Especial de Direitos Humanos chegaram a um ponto sensível. Jobim, em junho, chegou a falar grosso, em nome das três Armas. "Uma coisa é o direito à memória, outra é revanchismo, e para revanchismo não contem comigo". Desde então, as negociações, antes feitas por representantes dos ministérios, ficaram a cargo dos próprios ministros da Defesa, dos Direitos Humanos e da Casa Civil. Todas as negociações, a partir de então, foram feitas pessoalmente pelos titulares das Pastas - não há, portanto, possibilidade de alguma coisa ter sido acordada sem o conhecimento de Jobim.

A partir dessas conversas, as mudanças operadas nas recomendações do relatório final da 11ª Conferência foram significativas. No relatório, produto do debate de dezenas de milhares de pessoas ao longo de conferências preparatórias até a final, era sugerida a criação de uma Comissão Nacional de Verdade e Justiça com representação majoritária dos movimentos sociais e participação de familiares de mortos e desaparecidos políticos, "com plenos poderes para apuração dos crimes de lesa-humanidade e violação de direitos humanos cometidos durante a articulação para o golpe e a ditadura militar". A comissão, a ser constituída por decreto do Poder Executivo, teria poderes amplos para apuração da responsabilidade por esses crimes, como o de convocação de testemunhas ou acusados (que poderiam responder por crime de responsabilidade se não a atendessem), requisição de qualquer documento público ou privado e acesso irrestrito a qualquer órgão público para buscar informações.

Por pressão do Ministério da Defesa, a comissão, que seria criada por um ato de vontade do Poder Executivo, transformou-se num anteprojeto de comissão: segundo anunciado pelo PNDH-III, será criado um grupo de trabalho composto por representantes da Casa Civil, do Ministério da Defesa, do Ministério da Justiça e da Secretaria Especial de Direitos Humanos para ainda elaborar um projeto de lei instituindo uma Comissão Nacional da Verdade. Os poderes da comissão ainda serão definidos no projeto, que terá de passar pelo rito de aprovação do Legislativo, mas o plano já define que, para requisitar documentos públicos e privados, terá de contar com a autorização do Judiciário. O PNDG-III faz uma clara menção à Lei 6.683, de 28 de agosto de 1979, que instituiu a anistia. Ela é o limite imposto à atuação da Comissão, nas suas atribuições de coletar dados sobre atentados contra os direitos humanos praticados por agentes do poder público no último período ditatorial.

A "crise militar" fabricada em torno de uma Comissão da Verdade já muito esvaziada por pressões anteriores do Ministério da Defesa foi articulada em torno de um pretenso temor militar de que ela seja investida de poderes tais que possam ameaçar os torturadores e agentes de segurança que mataram e fizeram desaparecer opositores do regime ditatorial. Ela vazou rapidamente. Em seguida, foi vazado também o relatório do Ministério da Aeronáutica favorável à compra de um caça sueco, em vez do francês Rafale escolhido pelo presidente Lula. Os dois assuntos eram tratados internamente e negociados com o governo, que conciliava interesses de outras políticas e outras áreas. É uma fábrica de crises militares em franca prosperidade. E não se sabe a quem ela interessa.

Maria Inês Nassif é repórter especial de Política. Escreve às quintas-feiras

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