sábado, 27 de fevereiro de 2010

Centenário de um hábil democrata

DEU NO CORREIO BRAZILIENSE

Tancredo Neves, em 75 anos, cumpriu um destino de homem público, conciliador e defensor da liberdade sem abrir mão de princípios. Como vereador, deputado, ministro, primeiro-ministro, governador e presidente não empossado, a vida dele se confunde com a trajetória da República brasileira no século 20

Patrícia Aranha

Conciliação. Essa é a marca de Tancredo Neves na política. A cientista política Maria Celina Soares D’Araújo, professora da PUC Rio, ressalta que o perfil negociador se destaca sobretudo pela época em que o ex-presidente viveu. “Tancredo era um negociador hábil, no sentido nobre da palavra. Sabia lidar com a diferença, administrá-la e chegar às soluções. É uma grande marca dele num tempo em que o Brasil era intolerante. Tancredo foi uma das poucas figuras que não pregaram golpe de Estado nos anos 1950 e 1960, quando era comum políticos de todos os partidos enxergarem na intervenção militar a saída para os impasses”, afirma.

Identificado por ela como liberal democrata, Tancredo teria sido coerente ao manter por toda a vida um posicionamento de centro, o que lhe permitiu selar um aliança tão ampla para vencer a eleição do Colégio Eleitoral, incluindo todos os partidos de oposição, com exceção do PT, e um candidato a vice-presidente, José Sarney, que havia sido cotado para a chapa da situação, encabeçada por Paulo Maluf.

O homem que costumava dizer que era o primeiro nome a ser lembrado nos momentos de tempestade era um defensor do Estado de direito. “Alguns dizem que Tancredo não tinha ideologia, por não ser um homem de esquerda ou de direita. A ideologia dele era a de manter o Congresso funcionando, defender a regra democrática contra os modelos autoritários. São valores importantes que muitos homens públicos abandonam sob o argumento de estarem empunhando um posicionamento político partidário”, analisa Maria Celina.

Frustração

Para a cientista política, se Tancredo tivesse tomado posse, o país teria evoluído mais rápido.

“A grande frustração é a de que, com ele na presidência, teríamos andado mais depressa do ponto de vista das políticas sociais, porque Tancredo, apesar de não ser considerado perigoso pelas Forças Armadas, não se sentiria pressionado pelo antigo regime, como aconteceu com Sarney”, diz a cientista política, autora de vários livros sobre o regime militar.

A imagem que ficou na memória dos brasileiros foi a do primeiro civil a ser eleito presidente com o fim do regime militar, mas o historiador Rodrigo Patto Sá Motta, professor da UFMG, lembra outras imagens públicas de Tancredo que acabaram se apagando com o decorrer do tempo, substituídas pela do presidente que não tomou posse. “Nos anos 50, a imprensa veiculava imagens mais polêmicas, associando Tancredo a Getúlio e, nos anos seguintes, a João Goulart, o que não era bem visto pelos setores mais conservadores, incluindo os militares”, acentua, embasado nas pesquisas feitas para os livros Jango e o Golpe de 1964 na caricatura e Em guarda contra o perigo vermelho. “Mesmo com posições moderadas como as dele, em alguns momentos da história, Tancredo foi visto com desconfiança por setores conservadores. Nos anos 50, incomodava o fato de ser uma das pessoas mais fiéis a Vargas, que ficou ao lado dele até os últimos momentos. Depois, tentaram queimar a imagem dele, por ser conselheiro político de Goulart. Não à toa, sofreu o risco de ser cassado com o golpe de 64 e acabou optando por um partido de oposição aos militares, filiando-se ao MDB”, explica.

Depoimento

Brilhante negociador
Ronaldo Costa Couto

Ainda me emociona a lembrança do Brasil inteiro enfeitado de verde-amarelo e alegria em 15 de janeiro de 1985 para festejar a quase milagrosa vitória no Colégio Eleitoral do regime militar: 480 votos, contra 180 dados ao situacionista Paulo Maluf. Era a certeza da democracia, depois de quase 21 anos de ditadura. Assisti à votação de pé, abraçado ao escritor e cartunista Ziraldo e ao saudoso jornalista carioca Zózimo Barroso do Amaral. Choramos de pura alegria. Momento encantado. A história acontecendo ali, exibindo-se despudoradamente, escancarando episódio marcante. Tancredo, no discurso da vitória: “Se todos quisermos, dizia-nos, há quase 200 anos, Tiradentes, aquele herói enlouquecido de esperança, poderemos fazer deste país uma grande nação”.

Foi o coroamento de uma das trajetórias políticas mais importantes e brilhantes do Brasil. Nascido em São João del-Rei, em 4 de março de 1910, graduou-se em direito em 1932. Vereador mais votado de São João del-Rei em 1934, perdeu o mandato e a chefia da prefeitura com o golpe do Estado Novo, em 1937. Voltou à advocacia, pelejou contra a ditadura varguista, chegou a ser preso. Em 1945, filiou-se ao recém-nascido PSD. Elegeu-se deputado à Assembleia Constituinte Mineira, de que foi relator geral.

Deputado federal em 1950, assumiu o Ministério da Justiça do governo Vargas em 1953. Com o suicídio do presidente, em 24 agosto de 1954, retomou o mandato. No governo Kubitschek (1956-1961), foi diretor e presidente do então BNDE. Com a renúncia do presidente Jânio Quadros, em 1961, encontrou solução política para perigosa crise militar. Imaginou engenhosa saída, que deu na improvisação de um governo parlamentarista. Goulart assumiu como chefe de Estado, Tancredo como primeiro-ministro. Com o golpe de 31 de março de 1964, o então deputado federal recusou-se a votar no marechal Castello Branco para presidente, apesar de ser seu amigo. Entrincheirou-se na oposição.

Entrou e saiu de listas de cassação de mandatos e direitos políticos. Reelegeu-se em 1970 e 1974, conquistou o Senado em 1978. Em 1979, criou e presidiu o Partido Popular (PP), de centro, abatido pelos casuísmos da ditadura em 1981. Em 1982, finalmente, o tão sonhado governo de Minas. Belo Horizonte se tornou referência da política nacional, inclusive da sucessão presidencial. Nos meses iniciais de 1984, mergulhou na campanha das Diretas Já, derrotada em abril seguinte. Em agosto de 1984, candidatou-se a presidente, com o maranhense José Sarney de vice. Costurou a aproximação com estrelas dissidentes do PDS, como Aureliano Chaves, José Sarney, Antonio Carlos Magalhães, Marco Maciel, Jorge Bornhausen, Thales Ramalho. Conciliou, compôs, negociou sem descanso. Mas sem abrir mão de princípios. Ensinava: “Sempre que você transige em princípios, ganha num episódio, mas apenas num episódio. Perde em substância e permanentemente”.

Ganhou o coração do povo, bateu Maluf na urna do Congresso. Definiu o ministério, visitou oito países em 16 dias, concedeu a primeira entrevista coletiva de um presidente brasileiro em mais de 20 anos. Dois meses depois da mágica vitória, a desastrada internação em hospital público de Brasília. Foi o início de 38 dias de agonia. Sete cirurgias, espetacularização da doença e do tratamento. Morreu no 21 de abril do mártir da Independência, Tiradentes, seu ídolo e conterrâneo da comarca do Rio das Mortes. A outra grande admiração política, me disse várias vezes, era Getúlio Vargas. Dizem que JK foi o melhor presidente que o Brasil teve e Tancredo Neves o melhor presidente que o Brasil não teve. Concordo.

Ronaldo Costa Couto é escritor, economista pela UFMG e doutor em história pela Universidade de Paris-Sorbonne (Paris IV). Foi governador de Brasília, ministro do Trabalho e ministro-chefe do Gabinete Civil da Presidência da República (governo José Sarney). Autor de Matarazzo (2004), Tancredo vivo (1995), História indiscreta da ditadura e da abertura (1998), Memória viva do regime militar (1999), A história viva do BID e o Brasil (1999) e Brasília Kubitschek de Oliveira. Membro da Academia Mineira de Letras e da Academia Brasiliense de Letras

"O meu será um governo de centro, com tendências para a esquerda conservadora

(Em 1961, ao ser escolhido primeiro-ministro por João Goulart)

"Nação sem Constituição oriunda do coração de seu povo é nação mutilada na sua dignidade cívica, violentada na sua cultura e humilhada em face de sua consciência democrática

(Em 1983, ao deixar o Senado para assumir o governo de Minas Gerais)

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